Poema de agora: A FUGA – Ori Fonseca

A FUGA

O sangue rosa dos teus lábios me manchava
Eu, quase homem, quase bicho, urrei na toca.
E quis morrer da solidão que o amor provoca
E, então, perdi o fio de razão que me restava.

Desci ao inferno para ver se te encontrava;
Lugar ardente e saboroso – era tua boca? -,
Onde a paixão passeia nua, e tudo evoca
Por mais paixão em meio a dor e fogo e lava.

Mas tu fugiste em disparada rumo ao nada,
Lá onde o som de amor é surdo e a luz, difusa;
Onde a ilusão se fantasia de verdade.

E tu sumiste pelo tempo, estabanada;
E te escondeste no vitral da luz confusa,
E eu te perdi na bruma espessa da saudade.

Ori Fonseca

Poema de agora: TUA COMPANHIA – Ori Fonseca

Foto: Facebook do poeta Ori Fonseca

TUA COMPANHIA

Havia um tempo em que uma fantasia
Valia mais que a própria realidade,
Um tempo de surpresa e de saudade
Latente de encontrar tua companhia.

No Bar do Parque, a noite, feito dia,
Brilhava em fogos de uma liberdade
Que nunca se alcançou mais co’a idade,
Longe do aroma de tua companhia.

E houve uma noite que se fez verdade,
E a Praça da República fervia,
E um coração de carimbó batia

Na noite que virava eternidade,
Como se o tempo não tivesse idade,
E amar só fosse amar tua companhia.

Ori Fonseca

Poema de agora: ELO PERDIDO – Pat Andrade

ELO PERDIDO

passo ao largo dos eventos
as pessoas me evitam
os olhares se evadem
me desvio dos lugares

a vida me faz
reinventar o caminho
cada vez mais
me recuso ao carinho
saio sempre de fininho
e não volto atrás

abomino o óbvio
virei entrave,
me vejo estorvo
nesse elo perdido
pseudomundo
onde penso que vivo

PAT ANDRADE

Poema de agora: BORRÃO – Ori Fonseca

BORRÃO

Não vejo mais teus olhos, minha amada,
Não lembro a página em que te deixei,
Quão doce era teu seio que beijei,
Minha memória é turva e desfocada.

Sonho contigo, mas, evaporada,
Mudas de face, e teu nome eu não sei.
Perdi o calor do corpo que abracei,
Nada restou de ti, querida, nada!

Saíste ao ver o sol pela janela,
E eu, que dormia, nunca mais te vi.
Seria tudo sonho o que senti?

Tua boca ardente é só um borrão na tela:
A confusão do tempo não revela
Qual o sabor da língua que mordi.

Ori Fonseca

Poema de agora: TEMPO CINZA – Fernando Canto

TEMPO CINZA

Por esperar
como eu espero
nada se perde
ou se esconde

Todo aço
se desgasta

Qualquer papel
se recicla

Espero.
Meu tempo passa
como as águas
deste rio.
É uma inscrição
no granito,
é uma paixão
que não dorme

Espero.
Meu tempo é cinza
sobre o fogo
que jaz brando,
oculto,
mas vivo e bruto
tal como a fera
à tua espreita

Fernando Canto

Poema de agora: FOTOGRAMA – Obdias Araújo

FOTOGRAMA

Mil novecentos e setenta e sete.
A surrada Yashica-Mat 6×6
escreveu a imagem
no mural do tempo.

Aos vinte anos de vital idade
não me eram visíveis
os motivos da preocupação
e eu parava o tempo em seu
pequeno espaço entre a farra
e a cimitarra da ressaca.

Hoje lembro de tudo e de todos.
A pesar ou com saudade.
O velho trombone
polonês continua
escrito na parede.

Mas o mel
de Jataí
é outro!

Obdias Araújo

Poema de agora: ANTITEMPO – Ori Fonseca

ANTITEMPO

Ninguém se enxerga no escuro,
O futuro
É atrasado,
O relógio anda ao contrário,
Os dias no calendário
Dormem no breu do passado,
E, nesse andar anti-horário,
Ninguém se sente seguro.
De um lado
Ou doutro do muro.

Ninguém se abraça no medo,
O segredo
É ser estranho.
A bruxa agora é queimada
Na solidão da calçada,
Marcada feito rebanho,
No chão da praça em segredo,
No sono da madrugada,
No banho
Ardente em degredo.

Ilustração: Lú Valverdi

Ninguém se ajuda na guerra,
Quem berra,
Quem se reclama
No pavor da noite escura,
Quem sofre a dor da tortura
Sabe o quanto a chaga inflama
E quanto lhe pesa a terra…
Já afundamos na loucura
Da lama
Que nos enterra.

Ori Fonseca

Poema de agora: O Elogio do Pé – (Fernando Canto para Ubiratan do Espírito Santo, o “Bira”, craque do futebol amapaense)

Bira – Foto: Camisa 33 ( no Facebook)

O ELOGIO DO PÉ

I
Ainda que a mão guie
O rápido correr do atleta
O pé equilibra a perseguição da pelota e seu couro
Tal como o ouro em seu brilho
Desperta e arrisca o assombro à cobiça
No fado de explodir a bola
Num voo atômico em direção à rede.

II
O atleta – certeiro – atinge o alvo duas vezes
Pé e cabeça se harmonizam nesse objetivo
E mais vezes, mais os olhos se guiam à rede – incansável,
Mistura de inseto, soldado, animal de testa larga
Arranca cem vezes o grito da torcida enlouquecida.

III
É azul, preto e branco, vermelho
O gosto da loucura ecoante
De rugidos da selva, de cantares da alvorada
E de sangue guerreiro de norte a sul do Brasil:
É Bira de Nueva Andaluzia, paraoara,
Dos pampas, das alterosas,
Do espiritu sancto do gol, das vitórias domingueiras
Das tardes ensolaradas, crepúsculos festivos
Da tela não-pintada de Michelangelo
(Alegoria de Deus que entrega a bola a Adão
No leve tocar de dedos)
Como um contrato entre as partes no Éden tupiniquim.

Foto: Camisa 33

IV
É Bira, príncipe da arte de chutar no gol
Viajante contumaz do oco da bola
Onde moram os querubins do futebol

V
No contato da chuteira e a bola
Centelhas rompem imperceptíveis aos olhos da torcida
Mas ali, na trajetória da pelota ensandecida
Girando em curva ou reta
Corre o chute mágico do atleta uBIRAtan
Que trave alguma, vento algum, goleiro algum,
É capaz de parar ante o fundo da rede, o seu destino.

Foto: site Memória do Inter

VI
É certo que o tempo, implacável como o goleador
Também abre ruas no rosto em movimento
Ventos empoeirados surgem abruptos dos logradouros
Como quem logra a vida em ciclos imemoriais.

VII
Onde se vê de novo o voo rasante dos quero-queros
Sobre verde do gramado?
Talvez no espelho da lembrança
Porque a fama, efêmera e fugaz
Faz da vida o templo da memória, onde se clama
O que ficou para trás
Onde os cantares se repetem em rituais
Para abençoar a glória dos que vencem
Em tempos que escrevemos nosso esquecimento.

Foto: site Memória do Inter

VII
A voz grossa dos que torcem e glorificam
Deixam grandes silêncios na alma
Cobram-se cobranças, cobram-se castigos
A falta, a mão, o pênalti
E o gol, que para sempre é objetivo
Resta, então, a festa da massa em labaredas
Em gritos, confetes e bandeiras
(ou o desterro infausto em outros horizontes)
VIII
Entretanto o pé-de-ouro arrisca
Em balés de pés-de-lã/ pés-de-moleque
Pés-de-pato sob as gotas de um pé-d’água na neblina
Nas estações mais aziagas das paisagens-penitências

E realiza seu trabalho de cerzir o tempo e as camisas coloridas

Foto: site Arquibancada Colorada

IX
Ora, a inveja é um olhar sinistro
Que se movimenta sobre a dádiva
Ofertada aos talentosos
É um ovo só
Saído das entranhas da serpente,
Para reduzir a alma que alimenta com seu ranço

X
Ora, o futebol não se limita a homens
Em seus campos de lama e de gramas aparadas
Há um árbitro, há rivais que se trajam de esperança
Oponentes opulentos em nervos eriçados
Quando a bola cintilante gruda ao pé do craque
E ele mergulha nas funduras do seu rio
Onde cardumes geram suas eternidades
E esperam uma coreografia não ensaiada
Para, enfim, soltar a voz contida em milênios de partida

Foto: O Canto da Amazônia

XI
Ah, a pira dos deuses parece penetrar em águas abissais
De onde irrompe o grito final do campeão

XII
Quem não viu não mais verá. Nem ouvirá
O clamor dos ribeirinhos do Amazonas, o eco da baía de Guajará
O som ferrífero da serra do Curral e o brado dos gaúchos do Guaíba.
Quem não viu não sentirá
A poesia refletida na potência do olhar, da mira
Da luz mágica do Bira e seu bólido de vidro e luz
Transformando-se em espelho pela última vez.

XIII
E nós aqui tal degredados em nossa própria aldeia
Apenas com as imagens do passado e nosso orgulho
Fomos os pés, os pés do Bira
Quando o chute governava a bola
E a noite vigorava um brinde
A mais um campeonato ganho na história
Pelos pés do nosso ídolo
De sonho e de memória.

Fernando Canto

 

* Poema para Ubiratan do Espírito Santo, o “Bira”, craque maior do futebol amapaense

Poema de agora: O OLHAR DO JOÃO – Bete Ramos

Foto encontrada no site Templo Cultural Delfos

O OLHAR DO JOÃO
(Para João Cabral de Melo Neto)

O Olhar do João
Passeia agora pelo sertão
Pelo Nordeste quente
Pelas pedras do agreste

O olhar do João
Vê aquele indigente
E não fica indiferente
À miséria de sua gente

O olhar do João
Pousa no cidadão (cidadão?)
Pousa no homem ossudo
Cliente da fome
Eterno viver à procura da sorte

O olhar do João
Não embaça com a lama negra
Com o pó da aridez
Com os detritos do rio

Esse olhar
Ele transforma em pedras
Atirando-nos sutilmente
Mandando a gente pensar.

Bete Ramos

* Poesia em homenagem ao poeta João Cabral de Melo Neto, que faria cem anos hoje (poema vencedor do I Festival Amapaense de Poesia, em 1998). 

Poema de agora: ASTRONAUTA DE ELASTÔMERO de Marven Junius Franklin.

Imagem: Katanaz

ASTRONAUTA DE ELASTÔMERO

Minutos após meu pai ter fenecido [carpido pelas unhas truanescas das sombras]
seus olhos indagaram-me e abarrotaram-se de temor.

Horas após meu pai ter fenecido [afundido por intensos vendavais] aguardei que naus assombradas o trouxessem de volta… indumentado como um rejuvenescido flibusteiro castelhano.

Dias após meu pai ter fenecido [levado para a região dos anoiteceres com sol] eu morri um pouquinho… absorvendo suaves porções de impassibilidade – sepultando anseios e veleidades em desmesuradas valas-comuns de medo.

Semanas após meu pai ter fenecido… eu fui com ele um bocadinho disfarçado de astronauta de elastômero para lhe auxiliar na tomada de posse [de seu novo condado].

Ó pai, mil invernos até que te ache!
vestido com paletó bem cortado… solvendo um apropriado bordeaux na calçada de um modesto café parisiense.

Marven Junius Franklin.

Poema de agora: CALENDÁRIO ANTIGO – Pat Andrade

CALENDÁRIO ANTIGO

dos meus anos primeiros
carrego memórias sutis
beijos tímidos em janeiro
mãos dadas em abris

nas minhas melhores lembranças
sinto saudades juninas
costas queimadas em julhos
e depois agostos de alegrias

também tive desencantos
à beira do rio Tocantins
vi meu coração partido
amanheciam novembros gris

saudade maior dos dezembros
mas o que se foi, já esqueci
parei de tentar lembrar
para poder brincar de ser feliz

PAT ANDRADE