O sangue rosa dos teus lábios me manchava Eu, quase homem, quase bicho, urrei na toca. E quis morrer da solidão que o amor provoca E, então, perdi o fio de razão que me restava.
Desci ao inferno para ver se te encontrava; Lugar ardente e saboroso – era tua boca? -, Onde a paixão passeia nua, e tudo evoca Por mais paixão em meio a dor e fogo e lava.
Mas tu fugiste em disparada rumo ao nada, Lá onde o som de amor é surdo e a luz, difusa; Onde a ilusão se fantasia de verdade.
E tu sumiste pelo tempo, estabanada; E te escondeste no vitral da luz confusa, E eu te perdi na bruma espessa da saudade.
Mil novecentos e setenta e sete. A surrada Yashica-Mat 6×6 escreveu a imagem no mural do tempo.
Aos vinte anos de vital idade não me eram visíveis os motivos da preocupação e eu parava o tempo em seu pequeno espaço entre a farra e a cimitarra da ressaca.
Hoje lembro de tudo e de todos. A pesar ou com saudade. O velho trombone polonês continua escrito na parede.
Ninguém se enxerga no escuro, O futuro É atrasado, O relógio anda ao contrário, Os dias no calendário Dormem no breu do passado, E, nesse andar anti-horário, Ninguém se sente seguro. De um lado Ou doutro do muro.
Ninguém se abraça no medo, O segredo É ser estranho. A bruxa agora é queimada Na solidão da calçada, Marcada feito rebanho, No chão da praça em segredo, No sono da madrugada, No banho Ardente em degredo.
Ninguém se ajuda na guerra, Quem berra, Quem se reclama No pavor da noite escura, Quem sofre a dor da tortura Sabe o quanto a chaga inflama E quanto lhe pesa a terra… Já afundamos na loucura Da lama Que nos enterra.
I Ainda que a mão guie O rápido correr do atleta O pé equilibra a perseguição da pelota e seu couro Tal como o ouro em seu brilho Desperta e arrisca o assombro à cobiça No fado de explodir a bola Num voo atômico em direção à rede.
II O atleta – certeiro – atinge o alvo duas vezes Pé e cabeça se harmonizam nesse objetivo E mais vezes, mais os olhos se guiam à rede – incansável, Mistura de inseto, soldado, animal de testa larga Arranca cem vezes o grito da torcida enlouquecida.
III É azul, preto e branco, vermelho O gosto da loucura ecoante De rugidos da selva, de cantares da alvorada E de sangue guerreiro de norte a sul do Brasil: É Bira de Nueva Andaluzia, paraoara, Dos pampas, das alterosas, Do espiritu sancto do gol, das vitórias domingueiras Das tardes ensolaradas, crepúsculos festivos Da tela não-pintada de Michelangelo (Alegoria de Deus que entrega a bola a Adão No leve tocar de dedos) Como um contrato entre as partes no Éden tupiniquim.
IV É Bira, príncipe da arte de chutar no gol Viajante contumaz do oco da bola Onde moram os querubins do futebol
V No contato da chuteira e a bola Centelhas rompem imperceptíveis aos olhos da torcida Mas ali, na trajetória da pelota ensandecida Girando em curva ou reta Corre o chute mágico do atleta uBIRAtan Que trave alguma, vento algum, goleiro algum, É capaz de parar ante o fundo da rede, o seu destino.
VI É certo que o tempo, implacável como o goleador Também abre ruas no rosto em movimento Ventos empoeirados surgem abruptos dos logradouros Como quem logra a vida em ciclos imemoriais.
VII Onde se vê de novo o voo rasante dos quero-queros Sobre verde do gramado? Talvez no espelho da lembrança Porque a fama, efêmera e fugaz Faz da vida o templo da memória, onde se clama O que ficou para trás Onde os cantares se repetem em rituais Para abençoar a glória dos que vencem Em tempos que escrevemos nosso esquecimento.
VII A voz grossa dos que torcem e glorificam Deixam grandes silêncios na alma Cobram-se cobranças, cobram-se castigos A falta, a mão, o pênalti E o gol, que para sempre é objetivo Resta, então, a festa da massa em labaredas Em gritos, confetes e bandeiras (ou o desterro infausto em outros horizontes) VIII Entretanto o pé-de-ouro arrisca Em balés de pés-de-lã/ pés-de-moleque Pés-de-pato sob as gotas de um pé-d’água na neblina Nas estações mais aziagas das paisagens-penitências
E realiza seu trabalho de cerzir o tempo e as camisas coloridas
IX Ora, a inveja é um olhar sinistro Que se movimenta sobre a dádiva Ofertada aos talentosos É um ovo só Saído das entranhas da serpente, Para reduzir a alma que alimenta com seu ranço
X Ora, o futebol não se limita a homens Em seus campos de lama e de gramas aparadas Há um árbitro, há rivais que se trajam de esperança Oponentes opulentos em nervos eriçados Quando a bola cintilante gruda ao pé do craque E ele mergulha nas funduras do seu rio Onde cardumes geram suas eternidades E esperam uma coreografia não ensaiada Para, enfim, soltar a voz contida em milênios de partida
XI Ah, a pira dos deuses parece penetrar em águas abissais De onde irrompe o grito final do campeão
XII Quem não viu não mais verá. Nem ouvirá O clamor dos ribeirinhos do Amazonas, o eco da baía de Guajará O som ferrífero da serra do Curral e o brado dos gaúchos do Guaíba. Quem não viu não sentirá A poesia refletida na potência do olhar, da mira Da luz mágica do Bira e seu bólido de vidro e luz Transformando-se em espelho pela última vez.
XIII E nós aqui tal degredados em nossa própria aldeia Apenas com as imagens do passado e nosso orgulho Fomos os pés, os pés do Bira Quando o chute governava a bola E a noite vigorava um brinde A mais um campeonato ganho na história Pelos pés do nosso ídolo De sonho e de memória.
Fernando Canto
* Poema para Ubiratan do Espírito Santo, o “Bira”, craque maior do futebol amapaense
Minutos após meu pai ter fenecido [carpido pelas unhas truanescas das sombras] seus olhos indagaram-me e abarrotaram-se de temor.
Horas após meu pai ter fenecido [afundido por intensos vendavais] aguardei que naus assombradas o trouxessem de volta… indumentado como um rejuvenescido flibusteiro castelhano.
Dias após meu pai ter fenecido [levado para a região dos anoiteceres com sol] eu morri um pouquinho… absorvendo suaves porções de impassibilidade – sepultando anseios e veleidades em desmesuradas valas-comuns de medo.
Semanas após meu pai ter fenecido… eu fui com ele um bocadinho disfarçado de astronauta de elastômero para lhe auxiliar na tomada de posse [de seu novo condado].
Ó pai, mil invernos até que te ache! vestido com paletó bem cortado… solvendo um apropriado bordeaux na calçada de um modesto café parisiense.