Poema de agora: Saudade – Luiz Jorge Ferreira

Saudade

Tu precisas te tratar desta saudade.
Tu precisas deixar de mergulhar os olhos neste monte de lágrimas.
Hoje é Domingo!
Tu precisas deixar de arrumar delicadamente quase todos os dias, a roupa do teu filho que já cresceu.
Tu precisas deixar de recordar beijos e abraços, entremeados de adeus.
Tu precisas olhar a chuva caindo como coisa feita para molhar os jardins, e não barulho, que adormeça a alma.

Hoje é Domingo.

Tu precisas cantar as Canções antigas, sem dançar com o tempo.
O tempo já fez seu caminho, e o que ficou nas fotos, foram sorrisos felizes, e cabelos em desalinho.

Tu precisas ficar de bem, com o hoje.
Tu precisas encontrar contigo, ali , saindo correndo da escola, ou na mesa tosca do bar de sempre, batucando com os dedos um antigo Samba…

Aqui em Outubro, o Domingo se espreguiça…
E boceja.
A vida não esta, corre sem dar tréguas.
Égua, mano, que lindo!
Tu precisas te tratar desta saudade.

Luiz Jorge Ferreira

*Do livro “Nunca mais sairei de mim, sem levar as asas”.
**Luiz Jorge Ferreira é amapaense, médico que reside em São Paulo e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

Poema de agora: Nômade – (@cantigadeninar)

 
Nômade
 
Nasci circense;
Nem americana,
Nem amapaense:
Sem morada.
Conheci apenas,
A duras penas,
O pé na estrada.
E, como passe de mágica,
Vi-me numa peça
Épica, romântica ou trágica:
Estava presa
Por vontade própria
Na cidade ilusória
De teus lábios.
No picadeiro
Estava entregue por inteiro
Em teus braços.
Depois de rodar tantos bares,
Estava eu ali,
Alvo de teus malabares,
Como vítima que ri
De seus azares.
Nunca caí do trapézio:
Meu truque é ser alada.
Mas no fim, dei-me por vencida…
Todos disseram: “palhaçada”!
Julgaram-me descabida
E seguiram viagem
Enquanto eu escolhi a vida
Sem quilometragem.
 
Lara Utzig

Poema de agora: [De]composição do silêncio – Marven Junius Franklin

[De]composição do silêncio

I

Há lembranças que chegam com o silêncio – trazidas
pelos meus mortos que – volta & meia – se atrevem
em meu jantar

(sabemos – querida irmã – pois as deixamos esquecidas
dentro de nossos olhos & de nossos armários de incoerências).

II

A solidão chega pelos espelhos cavos & em nuances
doentias que se decompõem na bruma
& nos brincos-de-princesa.

III

É madrugada agora!
Sentado no alpendre do apartamento fico a ver navios

(lembrando deusas – travestidas de brisa
dimanando [esplêndidas] pelo rio).

IV

Meu pai dizia
que a morte desce dos quadros distendidos em
paredões de envelhecidos casarios portugueses
doBoulevard Castilho França
& evaporam [solenes] defronte ao Solar da Beira.

(assim – cara irmãzinha – adormeço
para ver se os querubins sobrevoam minha cabeça
de pedra).

Marven Junius Franklin

Poema de agora: Oráculo – (@cantigadeninar)

Oráculo

nas linhas pálidas de minha mão
o quiromante leu:
criarás filhos que não
são teus.

terás três amores
incompatíveis,
predecessores
de uma solidão incrível.

experimentarás sucesso,
brilhante carreira,
livros reimpressos
enchendo estantes
[de poeira

viverás, pois,
para a esfera profissional.
trabalho, dinheiro, de dois em dois
[anos pares
publicação na Bienal.

família, âmbito nuclear:
fragmentado, interrompido.
mãe, pai, lar
limitado, fechado, contido.

teu sobrenome
fenecerá contigo.
sem herdeiros,
apenas Caronte e o coveiro.

com a morte,
cessará tua linhagem.
subsistirás forte
embarcando em várias viagens.

não partirás cedo.
não partirás tarde.

nas linhas lívidas de minha mão
o quiromante leu minha ventura tardia.
nas linhas coralinas de meu coração
pulsa alguma profecia?

Lara Utzig

Poema de agora: Desarrumando a Tarde – Luiz Jorge Ferreira

Desarrumando a Tarde

Não é porque chove sobre as telhas manchadas das sombras dos aviões, e urubus.
Que eu não possa descer os degraus da escada de dois em dois, enquanto Deus junta duas placas tectônicas sobre o Oceano Pacífico.
E lá no Curiaú, um caranguejo limpa as patas sobre o corpo seco de um camarão.
Eu pretendo ser o dicionário chinês em braille…
Para isso cegarei meu olhar com o leite de um murere…
Mas quando lembro…Chove!
Guardo os pensamentos dentro de um saco de supermercado…
As mãos eu lavo.
Porque não falei sobre gavetas emperradas…garrafas vazias… telegramas empoeiradas…selos umedecidos… retratos de Pinóquios…Poemas de Bocage…traduzidos em Birmanês…
Tenho um chinelo de recordações gastas.
Um travesseiro cheio de vestígios de sonhos.
E um cobertor comprado a prazo …pago com vida, e alguns planos que desejei tê-los…
Mas como chove…sempre os ponho a salvo…no depois!

Luiz Jorge Ferreira

Poema de agora: Licença reverbera – Maria Ester

Licença reverbera

Pincelei todas as cores
do
céu
e
as letras
do Alfabeto
aqui

Aquela tatuagem ainda grita
quer existir…

No papel a lágrima
secou
Naquele
papel de cartas acolhido
na lixeira.

Só cada um sabe de
si,
de sua história,
de sua dor…

O passado espia o presente

Assim mesmo: obrigada.
Agradeço.
Deus sabe o que faz.

Não gosto de palavras
feias
e no meu infinito universo particular nem deveriam
existir
Rezo para isso…

Gosto de leveza,
por exemplo gosto da palavra algodão
pois, nunca tenho os pés no chão.

As palavras bonitas, sim, devem nascer, crescer, viver, transcender e
quiçá

até voar

Precisam ser benditas
assim será
reverberado
o
que o mundo
tenta a todo
custo
rechaçar
apagar
macular

Perdão, não sei porque lembrei de um hino que cantarolava na volta da Escola Alexandre Vaz Tavares

“Salve o lindo pendão da Esperança!
Salve o símbolo Augusto da
Paz!
…”

Aí sim, palavras bonitas
vivas:
perdão,
pendão,

A Vida pede licença
e passa …

Maria Ester

Poema de agora: Autobiografia – (@cantigadeninar)

Autobiografia

O poeta é um escultor.
Modela tão perfeitamente
Que chega a dar forma à flor
Oculta no mármore bruto e dolente.

E os que veem a pedra fria,
Na imagem da rocha enxergam mal,
Não a palavra crua a se tornar poesia,
Mas só o valor do resultado final.

E assim na roda da fortuna
Inquieta, a atordoar tato e visão,
Essa grande lacuna
Que se chama inspiração.

Lara Utzig

Poema de agora: CASA AMARELA – Luiz Jorge Ferreira

CASA AMARELA

Alheio aos passos do gato no telhado.
Alheio a lua minguante esparramada no vaso de plantas.
Eu ralho com Deus.Por que me fez?
Alheio a noite sobre a mesa.Alheio ao sol no prato de parede.
Eu caio em mim.
Alheio á sexta década daqui a vinte semanas.
Alheio a necessidade de um Captopril e dois AAS(s).
Eu Solo I Mio.

Nenhum dos meus passos me trouxe de volta.
Nem a reta torta, nem a veia solta, nem a língua trôpega.
Nem a palavra amarga deixou de ser o que era.
Nem os perfumes retornaram no bico dos pintassilgos, nem os filhos foram semelhantes.
Ninguém desfez, e refez os nós, os sós, os cós, os calafrios e os catiripapos.
No entanto, por muito tempo, a minha vida habitou em mim.
Como uma musica que eu fingi não ouvir.
Como uma intrusa que achei melhor não notar.
Eu um andarilho.
Com poucos metros de trilha, na imensidão de uma ilha.
E uma vontade imensa de não prosseguir.
Escrevo.
Todas as noites, aqui nesta tela estéril e vazia de um computador.
Abrigo os meus monossílabos.Que nem silabas são, nem papel ela é.

Alheio a mim e ao fim. Desaparecerei.
Restarão quilos de Captopril, toneladas de AAS.
Para serem consumidas por outros hipertensos ansiosos.
Poetas solitários, que ouvirão pisadas distantes de gatos.
Apenas gatos, andando cabisbaixos no telhado, de uma velha casa amarela.

Luiz Jorge Ferreira

*Luiz Jorge Ferreira é amapaense, médico que reside em São Paulo e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

Poema de agora: PERFEIÇÃO – Marven Junius Franklin

Imagem: Rafael Silveira (artista mistura o real e o surreal, criando um mundo mágico e cheio de cor).

PERFEIÇÃO

Por acaso
o entardecer
alamedas coalhadas
de rosas brancas
(Dona Isabel
varre o alpendre
do velho casarão).
No fio de eletricidade
as andorinhas
dialogam sobre destinos
(a lua espia
o silêncio e eu durmo
pleno de poesia).

Marven Junius Franklin

Poema de agora: Verbete – (@cantigadeninar)

Verbete

Tu és quase-ser-mítico
figura eternizada pelo tempo
desejo ilícito
prólogo da ciência:
és instante.
Momento.
Resultado de imagem para poesia verbete
Tu és quase-lenda
– passada geração a geração –
que abre uma fenda
entre múltiplas dimensões:
és portal.
Invenção.

Tu és quase-metáfora
fogo fátuo que não queima
catarse que explora
recônditos da consciência:
és seiva.
Néctar.

Tu és quase-musa
Marília de Dirceu
de Pitágoras, hipotenusa
palavra-linguagem:
és lírico (eu?)
Poesia.

Lara Utzig