A viagem poética/literária de Bruno Muniz – Capítulo II

Resolvi sair bem cedo, sem me despedir, às pontas dos pés pra que não me fizesse notar. Arrumei numa sacola o que achei de primeira necessidade: uma barraca, saco de dormir e utensílios de limpeza. Peguei o sapato mais macio, que pela beleza é certo que há muito não se fazia notar, mas que seria de muita valia a um andarilho iniciante. Coloquei no bolso todo o dinheiro que guardara há dias – já no intuito da viagem – e deixei um bilhete pra que não se preocupassem:

“Tão logo a mudez dos fiapos desaparecer, me postarei de pé. Quem quererá um poeta de versos caiados? pousado à folha alaranjada. Porém calo esguio. Quixote. A conspirar meu idear feliz. Mas a bem da verdade, das palavras, prefiro as que descem-me à rua com olhos de sal”.

Entrei no trem logo às primeiras horas da manhã, sem destino algum. Iria pra cidade mais distante que pudessem me levar e começaria dali a minha caminhada; sabe lá pra onde, mas a bem saber por quê.

Bruno Muniz

Poema de agora: O barco e o artilheiro do sol (Para Luiza Azevedo) – @juliomiragaia

O barco e o artilheiro do sol (Para Luíza Azevedo)

I
certa vez,
um barco
de pele azul
mergulhou
em pausa
muda
na luz
do pôr do sol,
no chão da Praia
do Areal.

as ondas
e a areia
colhiam impotentes
os pés de um menino-deus
(artilheiro do sol)

II
não por deus,
nem pelo
decreto dos homens
o menino-deus era deus
(do sol, artilheiro)

era deus
pela bola
que mirava
em direção ao sol
de Mosqueiro

III
o garoto,
com a camisa onze,
nas costas e no coração,
mirou no abismo do céu
e chutou
na solidão das águas
(como Messi, Romário ou Ganso)

acertou o nada
como se tudo fosse
e tudo se foi
no coração
do artilheiro
do sol
(o menino-deus)

suas chuteiras de areia
empurravam ao vento
o plástico
amarelo
que nas paredes do vento
morreu
sua força

morreu destro
o chute-anfíbio
que viveu todo um campeonato
naqueles segundos

IV
o barco olhava e
guardava consigo.

V
o barco é
na verdade
um velho
armário de histórias
que, outra vez,
jamais se contarão

VI
o menino abriu seu esqueleto
em direção ao pôr do sol
e celebrou infinito
o gol que se perdia no vento

VII
as fotos
que colheste
daquele
pequeno-longo
fim de tarde
em teu semântico-olhar
gravaram
para sempre
o que o barco
não dirá

VIII
o barco de pele azul
guarda consigo
tantos outros
dias,

bem como
outros barcos
guardam
e guardarão
consigo
a saudade
que arde
no horizonte
e na garganta
do peito

no céu, era possível ver que a mistura do sol com as nuvens formava um pequeno mapa de um país indecifrável. os garotos, artilheiros do sol, jogavam bola entre a areia e as águas da praia, num anfíbio campeonato de luz.
tudo naquele dia se banhava de luz enquanto era possível fugir do cansaço, das tristezas e da solidão.

eram pequenos dias de fim de ano. de ser deus porque não cabia ali sofrer como um homem-cidade que se afoga no trabalho, na rotina e nos amores perdidos e invertebrados que insistem em sobreviver.
fez-se noite, manhã e tarde. porém, o tempo foi domado pela luz da fotografia.

Júlio Miragaia

*do livro O Estrangeiro de Pedras e Ventos (2014)

Poema de agora: MUNDO CÃO [bramidos que vem de mim] – Marven Junius Franklin

MUNDO CÃO [bramidos que vem de mim]

I

o mundo cão [que vislumbro]
repleto de enfloras fenecidas
– flui em alfobres de sombras –
e abrolha
canções funestas
em antecâmaras de terror

II

o mundo cão [que habito]
abarrotado de estrela colapsadas em quintais de sombras
– faz sinfonia com sinistras madrugadas –
e concebe em seu interior
tiranias e genocídios

III

o mundo cão [que jazo]
adornado com corpos em decomposição
– enterra inocentes em sinistras covas rasas –
e massacra em celas enfadonhas
quem contrasta com sua escuridão

IV

ah, mundo cão!
em tuas esquinas desalumiadas
o medo faz fundeadouro
e os abutres executam a dança do aniquilamento

Marven Junius Franklin

Poeta amapaense tem poema publicado em Antologia no Salão do Livro de Turim, na Itália – @alcinea

Nesta segunda-feira (10), a querida jornalista, poeta e escritora amapaense, Alcinéa Cavalcante, anunciou que um poema seu foi publicado em uma Antologia “Olhar Bilateral”, lançada há poucos dias no Salão do Livro de Turim (ITA). Reconhecimentos nacionais e internacionais não são novidade para a poetisa, filiada a Rede de Escritoras Brasileiras (Rebra), coordenadora do Movimento Boca da Noite e com conto publicado nos livros “Melhores Obras do Século” e “Vozes Portuguesas”.

Ela é uma dessas grandes figuras que me gabo de ser amigo. Meus parabéns a poeta, que é um dos maiores expoentes de nossa arte literária, pois representa muito bem o Amapá nacional e internacionalmente. Congratulações, Néa!

Leiam o belo poema publicado na antologia e antes disso, aqui neste site: 

Eu e minha amiga poeta Alcinéa Cavalcante

Poema para o Amigo

É possível que eu te conte
uma história de príncipes e fadas
que escutarás com o olhar perdido na infância.
Ou que te conte uma piada tão engraçada
que rolaremos de tanto rir.
Nossas gargalhadas contagiarão os passantes
e de repente todo mundo estará rindo
sem nem saber por que.
É possível
que eu faça um café com tapioca e te chame
pois café, tapioca e amigo tem tudo a ver.
É possível que eu chegue na tua casa sem avisar
só pra te ofertar uma rosa que acabara de nascer
e te oferecer um Johrei.
É possível que eu te ofereça uma música no rádio
ou te mande, pelo Correio,
uma carta numa folha de papel almaço.
É possível que eu te ligue
no meio da noite
no meio do dia
a qualquer hora
– mesmo na mais imprópria –
só pra dizer:
Amigo, eu amo você.

(Alcinéa Cavalcante)

Elton Tavares

Poema de agora: Beijo-passaporte no indicativo – @juliomiragaia

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Beijo-passaporte no indicativo

Cobres os meus gestos
Com teus gestos
De serpente-norte

Tu, que despes o cansaço
Escrito nos meus olhos
De demônio velho

Navegues noturna
E limpa nas transbordações
De peito e boca

E entardeces
As rugas e as flores
Como quem quer
O amanhã

Devastes com ardor
E também beijes cada
Canto

Da pele,
Dos incêndios
E das chuvas

E Cobres
Com teus beijos
Meu cansaço

Como quem voa
E não pede
Passaporte

Júlio Miragaia

Poema de agora: GUERREIROS DE TERRACOTA – Marven Junius Franklin

GUERREIROS DE TERRACOTA

ao amanhecer
uma locomotiva voadora
pousa em um certo quarto acanhado

além dos motorneiros
ela transporta guerreiros de terracota
equipados de belicosas
armas mediévicas
que atacarão um país inimigo
em uma hipotética incursão militar

de repente
ao fundo
escutar-se
um grito de advertência:

filho
é hora do banho
você tem escola agora!

e os corajosos guerreiros
voltam ao velho baú!

Marven Junius Franklin

Poema de agora: Minha composição poética – Marven Junius Frankli

Imagem: Eugenia Loli

Minha composição poética

I

minha composição poética
é o brado que insinua ternura
– arde no ouvido abotoado do despotismo –
combatendo embustes
com verborrágicos hinos de retidão

II

minha composição poética
é a probidade ferrenha versus a iniquidade estabelecida
– propõe devastar muralhas de desamor –
germinando girassóis
em fronts de guerras sem sentido

III

minha composição poética
é o grito que ecoa latente em desertos de sombras
– vocifera bramidos de abnegação –
suavizando em cores claras
a palidez doentia do esfomeado

IV

oh, a minha composição poética!
Almeja – com sua lâmina amolada de altruísmo –
talhar uma nova feição
na face assombradora do fascismo

Marven Junius Frankli

CEU das Artes receberá movimento do Cinema Possível com exibições de vídeos-poemas

O Tatamirô Grupo de Poesia, em parceria com o CEU das Artes, efetiva mais uma sessão itinerante do Pium Filmes, movimento do Cinema Possível que visa divulgar produções audiovisuais independentes feitas nos mais diversificados e alternativos suportes de mídia, com a projeção do curta-metragem “Cidade à Contraluz” e da seleção de vídeos-poemas “Liberdade Poética”. A sessão ocorrerá nesta quinta-feira, 29, às 19h, na área externa do CEU.

Baseado no poema homônimo escrito a quatro mãos pelos poetas Herbert Emanuel (AP) e Jiddu Saldanha (PR), o curta-metragem “Cidade à Contraluz” transporta o espectador para uma metrópole caótica da América Latina, onde uma mulher de vermelho, sofisticada, mistura suas lembranças com os contrastes e a solidão da cidade, ao mesmo tempo em que busca entender seus próprios sentimentos mais profundos. O curta é uma realização da Escola de Cinema Darcy Ribeiro (RJ).

Na sequência dos vídeos-poemas de “Liberdade Poética”, de Jairo Fará (MG), o público terá um momento de contemplação de composições criativas que visualmente a palavra possibilita, sobretudo, quando faz a desconstrução bem-humorada de alguns produtos de consumo da sociedade contemporânea, uma referência a uma espécie de “Pop Arte Poética”. A exibição do curta-metragem e dos vídeos-poemas tem como propósito enfatizar a importância do diálogo entre literatura e cinema.

Serviço:

Data: 29/06 (quinta-feira)
Local: CEU das Artes
Endereço: Avenida Carlos Lins Cortês, s/n, bairro Infraero II
Classificação: livre
Duração: 30 minutos

Coordenadoria de Comunicação/PMM
Contato: 99189-8067

Poema de agora: Versos de Morte (Fernando Canto)

VERSOS DE MORTE (Para serem declamados no cemitério às 06h00 da manhã, sob um temporal amazônico)

(Coro)                                                                                                                                    (Solo)

1 – Sobre a forma  original

Da ortodoxa
oficina
à paradoxa
doutrina

2 – Sobre a ordem                                                                                                                     Do assombro
oficial                                                                                                                                              dos aflitos
aos escombros
dos conflitos

3 – Sobre o culto                                                                                                                          Da embriaguez
liberal                                                                                                                                             dos alcoólatras
à avidez
dos idólatras

4 – Sobre a vista                                                                                                                           Do desconexo
casual                                                                                                                                                     duelo
ao perplexo
flagelo

5 – Sobre o sonho                                                                                                                            Da folia
angelical                                                                                                                                              dos arlequins
à franquia
dos querubins

6 – Sobre a razão                                                                                                                               Do concêntrico
ritual                                                                                                                                                          desígnio
ao excêntrico
signo

7 – Sobre a idéia                                                                                                                                    Da avareza
venal                                                                                                                                                           mercenária
à rudeza
sedentária

8 – Sobre a paixão                                                                                                                                  Do augúrio
coloquial                                                                                                                                                         ignorado
ao espúrio
legitimado

9 – Sobre o objeto                                                                                                                                   Da abrasível
social                                                                                                                                                            cibernética
à corrosível
dialética

10 – Sobre a paz                                                                                                                                       Do sortílego
ancestral                                                                                                                                                           asceta
ao sacrílego
esteta

11 – Sobre o resíduo                                                                                                                                   Da lógica
banal                                                                                                                                                                 hemofilia
à escatológica
ossaria

12 – Sobre a arte                                                                                                                                        Do inamovível
sazonal                                                                                                                                                                    refúgio
ao crível
subterfúgio

                                                                                  Fernando Canto

Poema de agora: Do gostar e do sentir – Bruno Muniz

Do gostar e do sentir

Acho que nunca gostei da vida da maneira que ela gostou de mim.
Tudo bem, eu gosto da vida.
Gosto tanto que nem sei o quanto;
mas não sei se gosto verdadeiramente;
e acho também que verdades não se misturam aos advérbios,
nem por modo, nem por medo.
Sentir é tão diferente de gostar.
Prefiro sentir a vida.
Sentir é algo reflexo.
Você pode gostar sem ser gostado,
mas você só consegue sentir se for sentido.
É coisa de alma.
Gostar é querer sempre o mesmo caminho.
Sentir é contornar cada caminho pra descansar o tempo.
Não vou comemorar cinquenta anos do meu casamento
se eu não for a razão de cinquenta sorrisos de consentimento.
Quero um cupido a cada vontade
e uma vontade a cada manhã.
Quero a nuvem que renega o céu
pra se casar com a chuva.
Quero alma inculta, alma de criança.
Aí sim,
podem até dizer que não gostei da vida como ela gostou de mim.
Eu não ligo.
Eu sinto.
Então ficamos combinados assim,
não mude o status do relacionamento a cada gostar.
Gostar passa.
Mude a cada sentir.
Sentir fica,
mesmo quando acaba.
Sinta cada momento como o mais louco dos homens
e viva como o mais feliz.

Bruno Muniz