Pela janela azul do manicômio – Crônica porreta de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Um mundo ainda não corrompido se estende pelas ramificações da cidade, em alamedas de flores, que atravessam o grande oceano. É o mundo não corrompido que vejo pela janela azul do manicômio.

Um mundo desprovido de césares e eunucos, de tédio e de policiais. Onde foram abolidas todas as penas, de morte e de vida. Em cujas praças, esquinas e avenidas olhares se atrevem, se atravessam e se comunicam com os segredos da vida, sem colisão de pensamentos. Esse mundo quer existir para todas as pessoas através de mim. Esse mundo me quer como mensageiro de sua paz cotidiana, de respeito mútuo, de fraternidade.

Eu necessito urgentemente de uma caneta para descrever esse mundo, anotar sua fórmula. Corro em direção à escrivaninha em busca de caneta. Quero deixar registrado esse mundo fabuloso, que me acena na noite, pela janela azul do manicômio. Quero dizer que esse mundo existe e pode ser por nós alcançado.

Abro as gavetas, uma por uma. Reviro os papéis na escrivaninha e não encontro caneta, lápis, qualquer coisa com que se possa escrever. Não acredito! Não pode ser! Nunca fiquei sem caneta em toda a minha vida e justo agora que mais preciso…

Começo então uma busca frenética. Remexo pastas. Violo armários. Coloco pelo avesso os bolsos de todas as roupas. Atropelo objetos. Mas tudo é inútil! Não encontro uma caneta sequer e o mundo ainda não corrompido aguarda lá fora, navegando na noite.

Lembro que na esquina da rua do manicômio azul há um boteco onde poderei comprar uma caneta ou quantas eu quiser ou puder ou precisar. Abro a porta do quarto, desço as escadas, pulo a janela do andar térreo e saio correndo pela rua em direção ao boteco. Os enfermeiros de plantão logo são avisados e partem em meu encalço. Não há tempo para explicar a eles que não se trata de uma fuga. Eles não entenderiam a urgência de se comprar uma caneta em plena madrugada.

Continuo correndo em direção ao boteco, o último, o único aberto na noite, em todo o planeta. Acelero a marcha porque o sonolento dono do boteco, sem desconfiar da importância daquele ato, fecha va-ga-ro-sa-men-te a porta antes que eu consiga alcançá-la. Inutilmente, fico batendo desesperado na porta do boteco que abriga vários e vários pacotes de caneta.

Os enfermeiros chegam, trazendo uma camisa de força. Eu me rendo e sou conduzido de volta ao quarto. Me aplicam um tranquilizante e eu fico inerte na cama, observando pela janela azul do manicômio um mundo ainda não corrompido se dissipando na noite.

Peixe-Tabaco – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ele colocou a cabeça pra fora d’água e pediu um trago do meu cigarro. Achei bem estranho um peixe pedindo um trago de cigarro. Olhei para os lados para me certificar que estava sozinho na sala e que aquele peixe estava falando comigo mesmo. Encostei o cigarro em sua boquinha de peixe de aquário, esses peixinhos ornamentais que você juraria que fumar jamais passaria pela cabeça de um ser que irradia tanta pureza.

Ele tragou suave e longamente, curtindo aquele momento com muita intensidade. Quando a última baforada saiu e a fumaça já se dissipava, ele mergulhou rapidamente, pressentindo a chegada de alguém, e continuou com seus graciosos movimentos. Esse alguém que entrou na sala foi a minha amiga, a dona da casa em que eu estava. Dona da casa, do aquário, do peixe. Ela me sentiu um tanto desconfiado, como alguém que foi interrompido fazendo algo errado, e me perguntou:

– Você não deu nada pra esse peixe, deu?

Respondi que não, enquanto ela me mostrava uma placa, que eu não tinha visto ainda, acima do aquário. A placa dizia “não alimente os vícios do peixe”.

– É que ele sempre pede alguma coisa para as visitas.

Ah, bem.

Olhei para o peixe, que tranquilo estava e mais tranquilo ficou, me lançando uma piscadela de cumplicidade.

Por onde andará Áurea Líbia? – Crônica (memória e ficção) de Ronaldo Rodrigues

Crônica (memória e ficção) de Ronaldo Rodrigues

Em Curuçá, no Pará, onde ouvi esse nome pela primeira (e única) vez, Áurea Líbia não está. Se um dia eu for a Pasárgada, procurarei pelo endereço de Áurea Líbia. Desconfio que em Pasárgada ela estaria bem colocada. Posso mesmo interrogar os carteiros para saber onde ela mora.

Áurea Líbia é um nome que ficou na minha memória de infância e me segue até hoje. Lembro de tê-lo ouvido (ou talvez tenha sonhado com ele) numa brincadeira em que ela estava fantasiada de santa, fantasia que se constituía de um lençol branco a envolvendo. Era uma mocinha e eu um menino bem mais novo, creio que o mais novo de toda a criançada em volta da santa. Em minha lembrança, que não passa de um lampejo, ela está falando alguma coisa, interpretando um papel, vestida e investida de sua personagem. Será que ela se tornou atriz de teatro? Creio que ela estava brincando de teatro nessa única lembrança que tenho.

O nome ficou na minha mente, mesmo depois que minha família se mudou de Curuçá para Belém e eu cresci. Passei a imaginar Áurea Líbia como uma professora de Literatura. Sonhei em ser seu aluno e me gabar de tê-la conhecido quando eu era criança e ela adolescente. Esfregava na cara dos meus colegas o privilégio de ter participado, com a professora, de uma brincadeira de teatro há muuuuuuuito tempo. Claro que ninguém acreditava e a professora não confirmava nem desmentia minha história.

Quando a via nessa lembrança de infância, eu brincava de adivinhar: ela se tornaria uma mulher meio misteriosa, seria uma leitora voraz e saberia contar muitas histórias. Ou não? Não tenho nada que possa comprovar, mas a imaginação compensa onde a realidade possa falhar.

Creio que Áurea Líbia era amiga das minhas irmãs, era filha ou neta de uma amiga da minha mãe, numa cidade pequena (menor ainda naquela época), onde todos se conheciam.

O engraçado é que nunca ouvi o nome que eu achava tão bonito ser pronunciado no decorrer da vida. Mesmo que tenhamos ido morar em Belém, as pessoas que ficaram em Curuçá, e mesmo as que foram também morar em Belém, eram lembradas nas conversas cotidianas. Se foi falado alguma vez, eu não estava presente.

Imagino Áurea Líbia dirigindo uma moto em Curuçá num tempo em que moças pilotando motos em cidadezinhas representavam um escândalo. Penso em Áurea Líbia no trapiche, sozinha, com um olhar infinito para o rio. Na verdade, posso colar esse nome, se ninguém reivindicar, em qualquer perfil interessante que eu achar de mulher.

Não, não sou apaixonado por Áurea Líbia (pela combinação e sonoridade desses dois nomes, sim). Não tenho vivido todos esses anos procurando possibilidades para o destino, ou que nome tenha, colocar eu e Áurea Líbia no mesmo momento e espaço. Não contratei detetives para encontrar pistas do paradeiro de Áurea Líbia. Ela só existe como uma mocinha de nome solar, coberta por um lençol, representando uma santa ou um anjo ou alguma coisa bem diáfana, simples, pura, etérea.

O que aconteceu com Áurea Líbia não me interessa, no sentido de “Putz! E agora? O que vou fazer sem ela?”. E também não é no sentido de “Dane-se, Áurea Líbia!”. Nem pensar. Seu nome, a única coisa que restou dela para mim, não se encaixa em xingamentos. O nome mais parece uma profecia benfazeja. Gosto de senti-lo como um fio de luz que me liga a um passado bonito, lá de Curuçá da minha infância.

O evangelho segundo eu – Conto de Ronaldo Rodrigues

Conto de Ronaldo Rodrigues

Quando Jesus reuniu os apóstolos para a Santa Ceia, a proposta já estava firme em sua mente. Para espanto geral dos apóstolos, Jesus falou muito diferente, sua voz soou num tom bem acima do que costumava ser:

– Pois bem, senhores. Esta reunião é bem mais que uma ceia. É neste momento que começa a grande revolução.

Pedro sentiu o assombro nos olhos dos outros apóstolos e falou:

– Mas, mestre… O que o senhor está dizendo? A grande revolução já começou há muito tempo, quando o senhor passou a falar do amor que deve existir entre os seres humanos.

Com os olhos resplandecentes, com um fulgor muito mais forte do que o de costume, Jesus ordenou que retirassem os pães e o vinho que seriam consumidos na ceia e desenrolou um pergaminho sobre a mesa:

– Eis o plano. Tudo foi meticulosamente arranjado. A tarefa de cada um de nós, os horários e os locais de cada ação. Tomaremos o poder e libertaremos nosso povo da servidão que o Império Romano vem nos submetendo há tanto tempo.

Tomé, que estava um pouco apartado do grupo, se aproximou do pergaminho:

– Perdão, mestre, mas o senhor sabe: só acredito vendo.

E passou a examinar o pergaminho. A cada ponto que se aprofundava na estratégia ali determinada, sua perplexidade aumentava.

Os demais apóstolos também reagiram dessa forma, exceto Judas, que tomou a palavra:

– Então, mestre, o senhor chegou à conclusão de que a nossa vitória se dará através da espada e não da palavra, aquilo que o senhor sempre defendeu? Eu não precisarei entregá-lo ao exército romano e à sanha da elite judaica, para que o senhor, se sentindo pressionado, tome a rédea da situação? Meu nome na história não será sinônimo de traição?

– Isso mesmo, Judas. Seu nome será coberto de glória. Você será lembrado como um dos maiores comandantes desta guerra.

E distribuindo as espadas entre os apóstolos, falou com a autoridade de quem tem Deus ao seu lado:

– Vamos à rebelião, senhores! E podem acreditar: ainda hoje entraremos triunfais no paraíso!

Malhando os malhadores (Crônica porreta de Ronaldo Rodrigues)

Semana Santa. Sempre que chega esta data fico pensando no sentido de justiça de certas pessoas. Elas pegam Judas e fazem o diabo com ele. Malham o cara de todo jeito. Dizem que é a única forma de fazê-lo pagar pelo crime de ter traído Jesus. Isso é o que mais me preocupa. Se tudo já estava escrito, segundo a própria Bíblia, qual é a culpa de Judas? Se há culpa, é de quem escreveu.

Prefiro acreditar que Judas foi um elemento para que a história se cumprisse da forma que se cumpriu. Judas foi um aliado de Jesus e agiu daquela forma para que tudo saísse segundo o roteiro do Todo (Todo é como chamo o Todo-Poderoso na intimidade). Ora! Parem com esse negócio de associar o nome de Judas à traição. E parem de fazer essa justiça esquisita que comporta todo tipo de torpeza que vocês veem no cara, que condenam nos outros, mas que em vocês é aceitável.

Traidores são vocês! Traidores da palavra de Deus! (vocês são quem vestir a carapuça). Na verdade, sou a favor da reabilitação de todas as figuras malditas da Bíblia, pelo mesmo motivo: não foram elas responsáveis por seus destinos. Como dizem os árabes: maktub! (estava escrito!).

Portanto, Judas, Caim, Lúcifer, Barrabás, Pilatos, Herodes etc. devem ser vistos como personagens desempenhando seus papéis. Aí algumas pessoas dizem que há o livre-arbítrio, que esses personagens poderiam ter tomado outro caminho. E como ficaria a palavra do Todo?

Na verdade, os cristãos (a maior parte deles) confundem tudo. Esse papo de dizer que Jesus morreu para nos salvar acho exagero e injusto com o cara. Cada um tem que fazer por si, pela sua salvação, e não achar que está tudo bem, bastando ir à igreja rezar que – abracadabra – estamos salvos. Muito confortável, não acham?

Agora vou me despedir porque tem uma multidão de fanáticos correndo atrás de mim querendo me linchar. E olha que eles nem leram esta linhas. É que estou com barba e cabelo grandinhos e estão me confundido, claro, com Judas. Por que não me confundem com Jesus Cristo? Ah, daria no mesmo! Só que, em vez de me linchar, eles me colocariam na cruz. Ó my God!

Ronaldo Rodrigues

Férias em casa – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Não sou de planejar muito as coisas da minha vida, mas saí um pouco desse método (ou não método) e passei a me imaginar de férias em Belém, com a família daqui indo ao encontro da família e amigos de lá. Julho foi o mês acertado e tava tudo OK. Até chegar esse vírus e acabar com a porra toda (imagine aqui um emoji desconsolado…).

Agora tanto faz. Hoje ou em julho, não vou poder viajar mesmo por um bom tempo. Precisamos aguardar até termos segurança para viagens. Mas já que as férias foram antecipadas, num período em que até ir à esquina é arriscado, vou aproveitar para fazer um tour pela minha casa. Já li em algum lugar – estou com preguiça de procurar onde – que a poeta Cecília Meireles fazia isso. Ela e as filhas se vestiam para passear… pela própria casa. Claro que a casa dela era bem maior que a minha e o passeio devia durar algumas horas. Para visitar minha casa, creio que dez minutos bastam.

Por onde começar? Poderia ser pelo terraço, mas não há. Atar uma rede na varanda para ler ou simplesmente ficar à toa? Até que rede tem, livros também, assim como a vontade de ficar largado. O que falta é a varanda. Um mergulho na piscina seria bom, não fosse o inconveniente de que não existe piscina. O lance é curtir o que tem. Dei uma volta pela sala e, com cinco passos, já estava na cozinha. Abri a porta e andei pelo quintal (um chagão de poucos metros e com piso de lajota, nada de grama ou areia). Parei para admirar a beleza arquitetônica de uma teia de aranha e prossegui. Fui até o quarto à procura de um recanto não explorado e descobri que todos os recantos já foram explorados, assim como toda a casa.

Terminei meu passeio e organizei minha rotina de férias em casa, onde estão livros e filmes a serem devorados. Com parcimônia, pois falta de tempo não é problema neste momento. Vou desenvolver textos e desenhos, rever alguns projetos engavetados e fazer algo essencial para a manutenção da saúde mental: me desviar do excesso de notícias ruins, sem me desligar do que é realmente importante saber nos noticiários. Eu já estava sem beber e fumar antes mesmo da quarentena e vou continuar assim. Também estou mantendo a barba curta e parei de roer as unhas. Eu sempre brinco comigo mesmo que sairei outra pessoa deste período.

No mais, alguns exercícios físicos leves, continuar me alimentado de forma regulada e curtir a minha casa, que é pequena, mas a imaginação e o coração são imensos. O carinho, o amor e a amizade não tiram férias. Sigamos em frente que vai ficar tudo bem!

Escritos sonâmbulos – Alguns textos avulsos de Ronaldo Rodrigues

Alguns textos avulsos de Ronaldo Rodrigues

· Pronto. Já montei o álibi. Agora é só cometer o crime perfeito.

· Ficar sem conexão por dez segundos já deixa a criançada furiosa ou triste. E a minha geração, que passou a infância toda sem internet?

· O tempo vai mudando a gente. A gente vai mudando de tempo.

· Tomara que ele não venha tomar satisfações comigo, mas acho o Super-Homem um personagem superchato.

· Quando a gente vai ao médico e paga pra ele detectar nossas doenças não é um tipo de delação premiada?

· Fico aqui pensando coisas do tipo: se Noé colocou na arca todas as espécies de animais, colocou também o cupim. Olha o risco que ele correu de a arca ter afundado…

· Não, eu não sou velho. Sou um jovem de muuuuuuito tempo.

· Sou um vaidoso ao contrário. Fico horas na frente do espelho, conferindo cabelo, sapato e roupa. E só saio de casa após me certificar de que tudo está devidamente esculhambado.

· Continente é uma ilha muito grande. Tão grande que cabem nela vários países.

· Julgamento no tribunal divino? Sei não… E se no dia do juízo final a sua ida ao inferno ou ao paraíso for decidida no cara ou coroa?

· Fome é uma palavra que devora.

· Um dia a gente vai virar a mesa nessa porra se essa porra não virar.

· Conheço muita gente que pra ser podre de rica só falta ser rica.

· Avanço da tecnologia: os filósofos de botequim foram substituídos pelos analistas de redes sociais.

· Estou com uma estranha vontade de fazer as pazes com quem nunca briguei.

· “Todos esses que aí estão / Atravancando meu caminho / Eles que se fodam!”. Eu bem sei que Mario Quintana não aprovaria essa paródia de seu Poeminho do Contra, mas deu uma vontade de desabafar um pouco…

Entre a vida e a vida – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Fui diagnosticado com uma úlcera braba e uma gastrite meio leve. Mas calma aí, galera! Não estou aqui para me lamuriar. Vim para mostrar que pode haver coisas bacanas atrás de notícias ruins.

O médico foi taxativo ao olhar os exames e me encarar, falando sem rodeios:
– Você tem que fazer uma escolha entre duas coisas: a vida ou a vida!

– Como assim, doutor? – Tive vontade de perguntar, mas eu sabia muito bem o que ele estava dizendo.

– Sim! A vida ou a vida! – Ele continuou – Ou seja, a vida: o prolongamento da sua existência, a perspectiva de mais alguns anos entre os seus entes, a possibilidade de várias realizações. Ou a outra vida: essa vida louca de bebedeiras e madrugadas. As duas coisas não podem conviver!

Como ele soube que eu bebia muito? Ah, sim. Eu havia dito (rsrsrs). Achei que ele pegou pesado, mas melhor assim, pois o efeito foi imediato. Eu, que já havia deixado a cerveja e o cigarro para fazer os exames que ele solicitou, resolvi naquele momento prolongar o saudável jejum de álcool e nicotina.

Saibam, meus caros leitores, que estou seguindo à risca o que o médico aconselhou (ou ameaçou?), com os remédios receitados e também tirei da minha dieta itens como refrigerantes, sucos industrializados e agora estou só nos alimentos integrais, como pão, arroz, macarrão e comidas temperadas da forma mais natural possível. Para não ficar muito longe da cerveja, estou tomando cevada, que pode ser sorvida da mesma forma que o nosso precioso café.

Por falar em cerveja, parei de beber e até agora não sofri nenhuma crise de abstinência nem o desejo incontrolável por um trago. Também não estou evitando amigos que bebem nem fugindo de ambientes onde circula bebida. E aí me veio a constatação de que não sou alcoólatra, como suspeitava (e as muitas noites de bebedeira indicavam). O abandono do cigarro também não causou dependência física e também não preciso me afastar de amigos tabagistas. O que ficou abalado foi o Bar do Seu Jaime, pois as minhas noitadas de farra garantiam quase a metade do faturamento (rsrsrs). Mas ainda vou lá jogar bilhar, beber água e bater-papo com os parceiros.

E as receitas caseiras que me chegam? Basta saber que estou em tratamento de estômago que muita gente passa a me receitar chás, ervas e outras especialidades da medicina popular. É importante – dizem essas pessoas – não ficar só nos remédios da farmácia e no conhecimento dos médicos, mas inserir também a sabedoria dos nossos ancestrais. E o que acho disso? Eu boto fé!

E aqui vou eu experimentando a lombra da normalidade e, pode acreditar, tá sendo o maior barato! Saúde!

Mais um dia: Ronaldo Rodrigues se sentindo um pouco Charles Bukowski

Mais um dia. Acordo com uma puta vontade de mandar tudo à merda. Vontade de abrir a janela e mandar todo mundo se foder. Mas é muito esforço para minha combalida figura. E a humanidade, decididamente, não vale a pena. A humanidade vai continuar aí, venerando dinheiro, trabalhando duro para meia dúzia de filhos da puta. A humanidade vai continuar fedendo pelo longo dos anos. Até acabar a merda da areia da ampulheta. Foi assim por todos esses malditos anos. Será assim pelo terceiro milênio afora. Duvido que haja um quarto milênio para a humanidade purgar.

Mais uma cerveja na companhia desses idiotas que infestam a festa nefasta deste bar. Um bar cheirando a mijo. Mas é preciso ser social (leia-se hipócrita) de vez em quando. Tanto faz morrer de tédio em casa ou na mesa do bar. Posso até fingir que assisto a uma decadente sessão de cinema.

Poesia para todos! Pérolas aos porcos! Os especialistas de coisa nenhuma estão pontificando. É impressionante. Eles conseguem me provar que não basta saber coisas interessantes para se tornar alguém interessante. Todos têm algo a dizer, muito a dizer. Só que suas palavras rebuscadas e, geralmente, equivocadas não têm nada a dizer. Antes que tudo isso me enlouqueça, aperto o gatilho na minha testa e descubro que o outro lado da vida é do mesmo jeito que este. Então era isso? A condenação já tinha começado? Droga!

*Bebedeiras fazem parte da vida de um escritor. Tá, tudo bem! Nem de todo escritor. Eu, que me sinto escritor (às vezes) e beberrão (sempre), curto a embriaguez de ser um escritor beberrão. Muitos sabem que gosto de me sentir Charles Bukowski. Quer dizer: poucos sabem e quase ninguém se importa, mas sempre que leio Bukowski recebo a entidade Bukowski e as únicas coisas que me interessam nesses momentos são uma garrafa de cerveja ou vinho barato, um cigarro mais barato ainda e uma puta bem puta mesmo.

Ronaldo Rodrigues

Verônica, a submersa (conto porreta de Ronaldo Rodrigues)

Quando Verônica chegou em casa eu era uma criança a mais numa família de noventa e oito irmãos. Naquela cidade eram comuns famílias numerosas, que envelheciam muito cedo.

Verônica, quieta, tranquila, limitava-se a permanecer no fundo do tanque que lhe fora destinado. Comia pouco, apenas algumas algas que brotavam nas paredes do tanque. Parecia resignada, mas havia algo de resoluto em seus movimentos. Uma silenciosa determinação. Uma calma revolucionária, que tanto afligia quanto encantava. Sua diáfana presença a tornava forte, intacta.

Verônica gostava da minha companhia. Nos entendemos bem desde o primeiro olhar. E sem trocar palavras. A cumplicidade de nosso silêncio nos bastava. E nos fortalecia.

O silêncio selou um pacto entre nós. Eu arquitetei um plano para tirá-la daquela casa onde aprisionavam lindas mulheres em tanques frios e não davam a mínima atenção. Deixavam lá, no fundo do quintal, como prova de algo que eu não conseguia compreender.

Verônica era altiva e simulava distância de sua condição de prisioneira. Quando eu entrava para dormir, ficava imaginando Verônica entre as pedras do tanque. Linda. Enigmática. Verônica.

Finalmente, chegou o dia de realizar o plano. Acordei bem cedo, antes de todos. A casa era enorme e foi trabalhoso atravessá-la no escuro, desviando de tantas redes.

Eu estava fugindo de casa levando Verônica num aquário gigantesco, roubado no dia anterior. O aquário, preso a uma plataforma com rodinhas, era frágil, mas daria para chegar até o rio.

Rapidamente, Verônica foi remanejada do tanque para o aquário. Tudo aconteceu conforme o plano e chegamos ao rio antes que dia clareasse. Eu estava esgotado pelo esforço de empurrar aquele aquário imenso pelas trilhas tortuosas da floresta. Verônica me animava com seu olhar completo, inquebrantável.

E foi com o olhar que Verônica me fez compreender que nossa história de amor era impossível. Eu não poderia acompanhá-la, por não poder viver dentro d’água. Ela não poderia ficar comigo, por não poder viver fora d’água. Era uma barreira definitiva. Eu precisava compreender.

E compreendi. Verônica foi lançada ao rio e mergulhou bem fundo até desaparecer. Antes, acenou com os olhos, que transbordavam lágrimas iguais às minhas. A lembrança de seus olhos ficou comigo pelo caminho de volta para casa e por toda a minha vida.

Outras mulheres foram morar no velho tanque, ao longo dos anos. Belas e silenciosas como Verônica, que também precisavam de liberdade. Mas eu já estava velho demais para pensar em libertá-las. Como disse no começo desta história, envelhecia-se muito cedo naquela cidade.

Ronaldo Rodrigues

Dois textinhos para eu não perder o emprego neste site (crôniquetas de Ronaldo Rodrigues)

 

Crôniquetas de Ronaldo Rodrigues

Sabe aqueles macacos que são usados como cobaias de experiências científicas? Zé Chimpanzé era um desses, um dos mais procurados por cientistas malucos de todos os quadrantes. Ele era um superstar da categoria. Seu cachê era o mais alto. Zé Chimpanzé ganhou tanta notoriedade que sua agenda vivia lotada. Zé Chimpanzé era uma celebridade, sua fama atravessava fronteiras, sua fuça era vista com muita frequência na National Geografic.

Mas um dia, cansado de tanta bajulação a que os grandes astros são expostos, entediado com os holofotes e já sem paciência com os paparazzi, Zé Chimpanzé isolou-se em seu castelo à beira-mar e nunca mais quis saber de ser cobaia de cientista maluco. Imitando Greta Garbo, Zé Chimpanzé repetiu a célebre frase da diva – “ I want to be alone!” – e entrou numa reclusão que dura até hoje.

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Sempre que Mona Lisa sorria enigmática, Leonardo errava a pincelada. A cada retoque, a Mona Lisa, a pintura, se parecia menos com a Mona Lisa, a mulher. Após dar por terminada a tela, uma das mais famosas do mundo, Leonardo teve que fazer uma cirurgia plástica na modelo, usando sua perícia como grande estudioso da anatomia humana, para que ela ficasse parecida com a figura retratada na pintura.

Foi tanta a euforia de Leonardo com a experiência que ele passou a se dedicar a retratos femininos, como o que fez de Marilyn Monroe, deixando para que Andy Warhol, já no extinto século 20 assinasse. Coisas de gênio.

Fantasia real – Crônica de carnaval do Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

No Carnaval, saí fantasiado de mim, de eu, de eu mesmo. Ninguém me reconheceu. Andei pelos lugares que frequento, pelo Caos, pelo Formigueiro, pelo Bar do Nego, pelo Underground. Nessa ordem. Eu estava com minha fantasia intitulada “Eu, Eu, Demasiadamente Eu, Absolutamente Eu” e ninguém sacou quem era aquela pessoa ali fantasiada. Quase cheguei ao ponto de gritar para aquela multidão de foliões:
– Ei! Sou eu que estou aqui!

Só não fiz isso porque achei que, mesmo assim, não se levantaria um cristão sequer a me apontar o dedo pra fazer a revelação que eu precisava, gritando no mesmo tom do meu grito:
– Olha só! Descobri quem está por trás dessa fantasia! É ele!

Acompanhei a Banda, na esperança quase desesperada de que alguém me descobrisse, e nada. Quando, finalmente, rasguei a fantasia, me desnudando totalmente, mesmo assim não ouvi o que tanto desejava há tantos Carnavais. Que alguém, se descobrindo, me descobrisse:
– Sou eu! É ele!

Ao fim do Carnaval, que se estendeu pra muito além do calendário, desisti da ideia de que me revelassem. Voltei pra casa, já quase em cinzas, e um cachorro de rua chegou a mim, retornando também de sua quadra carnavalesca. Tirando a fantasia de cachorro e ainda permanecendo cachorro, ele rosnou de uma forma que não sei se foi de raiva, carinho, surpresa ou alerta. Ou todas as respostas anteriores. Esse rosnado eu traduzi assim:
– Ei! Eu sei quem tu és!

Ele se calou, contrariando a minha vontade de que aquele cachorro fizesse um comentário mais longo, mais abrangente. Ficamos em silêncio e o nosso segredo se sagrou, sangrou, se cristalizou. Quem sabe se, no próximo Carnaval, a gente se revela…

Alegria é lei – Crônica legal de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Noite de Carnaval, uma das Mil e Uma Noites de Carnaval, e eu diante da televisão. Em retiro espiritual? Nem tanto. Estava olhando as bundas rebolativas maravilhosas, reais e artificiais, que desfilavam nos sambódromos e passarelas deste carnavalesco Brasil.

Meu programa de folião se resumia a isso. Mas, depois que a exuberância bundística cansasse meu tarado, porém inofensivo, olhar, eu iria me entregar ao resto do programa: um bom livro e uma xícara de chá, embaixo do meu solitário edredom. O Rei Momo dominava o resto do Brasil e só eu me encontrava enclausurado nesta ilha que é o meu quarto. Que maravilha!

Mas ei que a campainha tocou. Quem estaria a estas horas longe da esbórnia cívica nacional? Abri a porta e me deparei com um pierrô, uma colombina, um arlequim, um pirata do Caribe, um sheik e cinco Fridas Khalo, que este ano estiveram em alta, disparadas na preferência de muitas pessoas. E tinha também um delegado de polícia. O delegado era delegado mesmo, não uma fantasia. E foi ele quem falou pelo grupo:

– Boa noite, cavalheiro! Viemos informar que o senhor está infringindo vários artigos do Código Civil. Onde já se viu uma coisa dessas?

– Mas o que foi que eu fiz?

– A questão não é o que o senhor fez e, sim, o que o senhor não fez!

– E o que foi que eu não fiz?

– O senhor, em pleno período de Carnaval, neste país, que é, nada mais nada menos, que o País do Carnaval, está recolhido aos seus aposentos. Os seus vizinhos, aqui representados por estes cidadãos, que prezam as tradições do lugar em que vivem, exigem que o senhor troque esse pijama por uma fantasia qualquer, o seu chá por uma bebida alcoólica e o seu livro por um adereço de mão. E venha para a rua pular, cantar, festejar a alegria e a liberdade de um país que decreta feriado nacional, universal e intergalático para que seus filhos possam se jogar, sem temor, nos braços da felicidade.

O grupo de foliões aplaudiu o delegado, que estufou o peito em resposta, muito satisfeito de seu discurso. Eu protestei:

– Já que o senhor falou em liberdade, será que uma pessoa não é livre para escolher se quer participar das festas? Assim como as pessoas que aqui estão têm o direito de dançar, eu tenho o direito de não dançar, de ficar no meu canto sossegado e….

O delegado, que procurava algo para me incriminar, me interrompeu:

– Aí é que está, cidadão! O senhor está sossegado no seu canto. Os seus vizinhos afirmam que o seu silêncio está atrapalhando o barulho que eles estão fazendo com tanta dedicação!

Aí foi que eu me confundi mesmo! Já sem força, nem raciocínio, para protestar contra aquele absurdo, me limitei a perguntar, já procurando minha carteira para uma providencial propina:

– E o que devo fazer para reparar esse dano?

– O senhor escolhe: pagar uma multa altíssima, ser recolhido ao xadrez ou cair na folia com seus semelhantes.

Escolhi a última opção. Vocês viram um folião todo desajeitado por aí? Era eu.