Mais um dia: Ronaldo Rodrigues se sentindo um pouco Charles Bukowski

Ronaldo Rodrigues & Charles Bukowski

Mais um dia. Acordo com uma puta vontade de mandar tudo à merda. Vontade de abrir a janela e mandar todo mundo se foder. Mas é muito esforço para minha combalida figura. E a humanidade, decididamente, não vale a pena. A humanidade vai continuar aí, venerando dinheiro, trabalhando duro para meia dúzia de filhos da puta. A humanidade vai continuar fedendo pelo longo dos anos. Até acabar a merda da areia da ampulheta. Foi assim por todos esses malditos anos. Será assim pelo terceiro milênio afora. Duvido que haja um quarto milênio para a humanidade purgar.

Mais uma cerveja na companhia desses idiotas que infestam a festa nefasta deste bar. Um bar cheirando a mijo. Mas é preciso ser social (leia-se hipócrita) de vez em quando. Tanto faz morrer de tédio em casa ou na mesa do bar. Posso até fingir que assisto a uma decadente sessão de cinema.

Poesia para todos! Pérolas aos porcos! Os especialistas de coisa nenhuma estão pontificando. É impressionante. Eles conseguem me provar que não basta saber coisas interessantes para se tornar alguém interessante. Todos têm algo a dizer, muito a dizer. Só que suas palavras rebuscadas e, geralmente, equivocadas não têm nada a dizer. Antes que tudo isso me enlouqueça, aperto o gatilho na minha testa e descubro que o outro lado da vida é do mesmo jeito que este. Então era isso? A condenação já tinha começado? Droga!

*Bebedeiras fazem parte da vida de um escritor. Tá, tudo bem! Nem de todo escritor. Eu, que me sinto escritor (às vezes) e beberrão (sempre), curto a embriaguez de ser um escritor beberrão. Muitos sabem que gosto de me sentir Charles Bukowski. Quer dizer: poucos sabem e quase ninguém se importa, mas sempre que leio Bukowski recebo a entidade Bukowski e as únicas coisas que me interessam nesses momentos são uma garrafa de cerveja ou vinho barato, um cigarro mais barato ainda e uma puta bem puta mesmo.

Ronaldo Rodrigues

O primeiro poema – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

O tinteiro, a pena e o papel estavam lá, à minha frente, sobre a pequena escrivaninha, herança de meu avô. Eu estava tranquilo e os ruídos que chegavam da rua não me perturbavam. Lá fora, uma noite agradável se estendia sobre a cidade.

Eu procurava uma maneira de iniciar o desafio que me foi imposto pela vontade de extravasar os sentimentos por tanto tempo guardados no peito. Naquela noite, eu me preparava para escrever um poema.

Eu nunca havia escrito um poema antes, sequer pensado nisso, e aquela súbita ideia me pareceu absurda. Ela me atingiu no ônibus que vinha lotado de passageiros suados e cansados, assim como eu, depois de um dia extenuante de trabalho. O ônibus era trepidante e barulhento, mas o desejo de escrever um poema me fez flutuar ao som de uma linda sinfonia, que não sei de onde vinha, e nem notei que o percurso da viagem era tão longo.

Tomei um banho demorado, curtindo as bolhas de sabão que dançavam à minha volta e, pela primeira vez, observei os desenhos herméticos que as idas e vindas das formigas formavam no branco do azulejo.

Saí do banheiro e vesti a roupa mais simples. Fui ao quintal e reguei as plantas, conversando com cada uma. Depois, alimentei os cães e os gatos vadios que às vezes iam me visitar. Mudei a disposição dos objetos da casa e coloquei cortinas novas nas janelas.

Agora estava eu ali, na velha escrivaninha de meu avô, tendo à minha frente o tinteiro, a pena e o papel. E a firme determinação de escrever o primeiro poema de minha vida.

Quarta-feira (que já foi) de cinzas – Crônica de um estranho Carnaval de Ronaldo Rodrigues

Ilustração de Ronaldo Rony

Crônica de um estranho Carnaval de Ronaldo Rodrigues

Nesta quarta-feira (que já foi) de cinzas, abro a janela para o dia e não estou cansado de ter sambado na Banda. Este ano a Banda não passou e deixou meu coração folião ressacado de saudade. E olha que nem sou um folião fanático. Apenas, de vez em quando, deixo meu espírito se fantasiar e saio a bailar ao som de qualquer batucada ou mesmo embalado pela tradição de grandes sambas que o Brasil ostenta. Isto me tira um pouco do trauma que é não saber sambar sendo do País do Carnaval. Desculpa aí, gente! Já me basta a carga de ser do País do Futebol e não ter a mínima intimidade com a redonda. E antes que me perguntem você samba de que lado, de que lado você samba, você samba de que lado, de que lado você samba, de que lado, de que lado, de que lado você vai sambar, já adianto que o samba está em mim de todo lado, pois meus domingos infantis e juvenis tiveram a trilha sonora de Paulinho da Viola, João Nogueira, Clara Nunes, Alcione. Como ficar imune ao feitiço desse gingado e dessas letras que vão fundo no que é mais profundo?

Porque é Carnaval e não é Carnaval, o samba vem à tona. Em qualquer esquina eu paro, em qualquer botequim eu entro. O samba é revolucionário e rebelde, porque ouço samba no som de Sérgio Sampaio e Tom Zé (e se for além, em Raul também). Então o samba me leva, me eleva e, a quem pergunta onde estou, diz que fui por aí. E desde que o samba é samba é assim.

Mesmo sendo um cara um tanto do rock, minha alma batuca numa caixinha de fósforos, onde cabe toda uma bateria de escola de samba. Alcanço até os acordes de um tamborim que me arrebatam os sentidos. O pandeiro estica no couro a malemolência de quem me diz para não deixar o samba morrer, não deixar o samba acabar. O samba pulsando no asfalto, nos vozeirões dos Jamelões, intérpretes de samba-enredo das escolas de samba deste meu Brasil, que me faz tirar o chapéu para Cartola e abraçar a Vila de Martinho e Noel.

O Carnaval não deixou de rolar, pois é possível celebrar a vida em qualquer situação, ainda mais nesta onda de pandemia que decretou o nosso não encontro com o Rei Momo. A caixa de som do celular me acompanhou por todo o período que seria do Carnaval e ainda agora, nesta quarta-feira (que já foi) de cinzas, ela dispara os ritmos carnavalescos que não devem silenciar até o fim da semana, porque nessas horas sou meio de Salvador, meio de Olinda e levo o folguedo até as últimas consequências.

Vamos segurando a onda este ano para que tenhamos Carnavais com mais saúde e com mais futuro, com mais encontros etílicos ou somente na base da sagrada água, a bebida mais forte, que nutre e abençoa. Porque é hoje o dia da alegria (todos os dias) e a tristeza nem pode pensar em chegar.

Para compor esta crônica, me vali de várias citações: Samba de lado (Chico Science) / Diz que fui por aí (Hortêncio Rocha e Zé Keti) / Desde que o samba é samba (Caetano Veloso) / Não deixe o samba morrer (Edson Conceição e Aloísio Silva) / É hoje – Samba-enredo da escola de samba União da Ilha (RJ), 1982, (Didi e Mestrinho).

Poesia de agora: Coleção de vinil – Poema de Ronaldo Rodrigues ilustrado por Ronaldo Rony

Coleção de vinil

podem me chamar
de arcaico antiquado
ultrapassado inatual

podem achar que faço média
ou que vivo na idade média

podem me chamar de avô
do homem de neanderthal

que sou o cara mais mala
que já se viu

mas eu não me desfaço
da minha coleção de vinil

podem me tachar de antigo
digam que estou no passado

que sou o cara mais quadrado
deste mundo

mas nessa onda eu vou fundo
e grito pra quem ainda não ouviu

eu não me desfaço
da minha coleção de vinil

também tenho coleção de cd
podem crer

eu tô ligado plugado conectado
sei lá mais o quê

mas me deixem ouvir abafado
chiado riscado o meu lp

eu prefiro mudar de planeta
fugir do Brasil

mas eu não me desfaço
da minha coleção de vinil

Poema de Ronaldo Rodrigues ilustrado por Ronaldo Rony

Paranoias de quem sente o tempo passar – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ilustração de Ronaldo Rony

Crônica de Ronaldo Rodrigues

De vez em quando, batem algumas paranoias, tipo o medo de perder o movimento do braço direito. Para quem é destro, ficar com esse braço fora de combate é um pesadelo. Dia desses, bateu esse medo, que era mais do que medo, era a absoluta certeza de que eu amanheceria sem conseguir desenhar ou escrever.

Alguém pode sugerir que eu passe a escrever com a mão esquerda. Isso não é tarefa difícil no teclado do computador, só é mais demorado. Acontece que eu só começo a escrever no computador depois de ter rabiscado no papel grande parte do texto.

Mas a preocupação de não poder usar a mão direita está relacionada mais à prática do desenho do que da escrita. Pois é. Quando bateu a certeza, no meio da madrugada, de que eu amanheceria com o braço direito inerte, passei a desenhar freneticamente. Na minha cabeça, eu tinha que produzir tudo o que me restava para desenhar e concluir a minha carreira de cartunista.

Ao acordar, conferi de imediato minha habilidade com a mão direita e respirei aliviado. Ainda teria mais algum tempo para produzir os meus cartuns. Minha carreira não estava encerrada. O que bom disso é que, forçado a criar e depois de passar o crivo, vi que muito desenho legal tinha surgido dessa paranoia.

Na madrugada seguinte, a cisma foi outra. Achei que poderia acordar cego. E toca a ler, escrever e desenhar tudo o que podia, aproveitando os últimos clarões de uma visão que já não é lá essas coisas.

No dia seguinte, para meu consolo e júbilo, meus olhos ainda estavam aqui, me servindo, precisando ainda da muleta dos óculos, mas intactos.

Que paranoias são essas que o passar do tempo vai colocando em nossa existência, como numa corrida com barreiras que precisamos saltar? Ops! Neste momento, bateu mais uma dessas: tenho a firme convicção de que vou perder completamente a memória, que já há algum tempo vem dando sinais de pane.

Licença aí que eu vou fazer tudo o que consigo lembrar. Se for só paranoia, a gente se fala depois, em outra crônica. Ok? Tchau!

(O que é que eu vou fazer mesmo?)

Enquanto espero – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Arte: Ronaldo Rony

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Esperando um amigo no banco, que foi resolver uma bronca monetária, jurídica e tal. Está demorando, já passa de uma hora e meia de espera. Já estou há tanto tempo neste banco que os clientes me pedem informações achando que trabalho aqui. E eu estou tentando satisfazer às necessidades desses clientes, na medida do possível, dada a minha total inexperiência neste setor. Pretendo ficar por aqui por mais alguns anos, até que tenha tempo suficiente pra jogar o banco na Justiça. Veio gente me pedir ajuda no desbloqueio do cartão, perguntar como funciona esse negócio de pix e como fazer transferência sem ter um puto no bolso. Sou uma pessoa de boa vontade e se soubesse fazer essas coisas até faria, mas sou extremamente inútil quando o assunto é ser útil nesses assuntos.

Nunca pensei em ser bancário, mas já estou me afeiçoando a esta atividade. Será que tem vaga pra gerente? Vejo uma senhora vindo de lá de dentro toda satisfeita por ter desenrolado o seu lado. Não resisto à curiosidade:

– Foi tudo bem, minha querida? – pergunto, demonstrando um legítimo interesse, já me sentindo parte do quadro de funcionários.

Ela responde, quase me afogando num imenso sorriso:

– Sim, sim, tudo resolvido! Sua dica foi perfeita! O trabalho de vocês é ótimo!

Agradeço, resistindo a perguntar que dica tão bacana assim foi essa que dei e da qual não faço a menor ideia, e passo a atender outro cliente. Realizo mais um atendimento nota mil, já posso me candidatar a funcionário do mês, e volto a fazer anotações para esta crônica na minha surrada caderneta. O vigilante estranha um cara um tempão ali anotando coisas numa caderneta e passa um rádio pra central. Devo ser preso a qualquer momento e o pior de tudo é que não tenho desculpas a dar, pois ninguém acredita na existência de escritores. A tropa de elite dos vigilantes chega e nem pergunta o que tanto anoto na caderneta. Se perguntasse, eu pensaria três vezes e diria a verdade, nada mais que a verdade, ainda que óbvia:

– Estou escrevendo porque sou escritor!

Pronto! Agora já vejo minha foto nos blogs, sites e redes sociais e a manchete: preso por falsidade ideológica e alegação de atividade não provável. Acho que este último crime não existe, mas, se existir, com certeza eu estou enquadrado nele.

O meu amigo finalmente consegue ser atendido, depois de duas horas e meia, e vem ao meu encontro e dos vigilantes ao meu redor, esclarecendo que não sou um bandido fazendo planos pra assaltar o banco. Vamos embora, eu, livre, e meu amigo devidamente cadastrado no programa de auxílio emergencial ou algo parecido. Nós dois, brocados, vamos a um restaurante pra lá de carnívoro e pedimos uma bela e suculenta costela de porco. Até que lembro que sou vegano e peço um pudim de jambu.

Acho que chega por hoje. Minha aventura do dia rendeu uma crônica e minha carreira de escritor está momentaneamente salva. E aí, Elton? Publica mais essa no De Rocha!?

Viver e respirar – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Foi o que pensou Neurinha, adentrando os 19 anos e achando que, naquela idade, seria bom começar a pensar nessas coisas. Seria bom pensar em alguma coisa. Qualquer coisa.

Mas o pensamento mais louco mesmo ela teve depois:

– Será que consigo morrer SEM parar de respirar?

Seu cachorro respondeu que não, ao que o ursinho de pelúcia disse que sim:

– Viver e respirar são coisas completamente díspares, conflitantes. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Tenho dito!

O cachorro de Neurinha ponderou que aquela maneira de falar do ursinho de pelúcia deixaria Neurinha ainda mais sem entender nada.

Neurinha, por sua vez, continuou sem nada entender. Paciência. Era sua natureza. Não entender qualquer coisa era a única coisa ao alcance de qualquer coisa que Neurinha pudesse entender. Entendeu? Nem eu!

Neurinha procurou os sábios conselhos de seu antílope de estimação, Clodoaldo, que entendia muito bem dessas questões, quando não estava ocupado em beber, fumar e levar mulheres para o apartamento.

Clodoaldo passou a contar a história de um tatu que fez greve de respiração em protesto contra a proliferação de armas nucleares e morreu em poucos minutos, ainda a tempo de ordenar a seus seguidores que invadissem a Casa Branca e incendiassem a provisão de amendoim.

Claro que Neurinha não entendeu e parou de se questionar. Resolveu passar à ação e cometer o ato de parar de respirar.

Segundo o método dos ninjas, Neurinha girou o nariz como se fosse uma torneira e parou de respirar.

Você, caríssimo leitor, já sacou que Neurinha era bem tontinha. Pois é. Até hoje ela não sabe se morreu.

Diário de bordo – Crônica retroativa de Ronaldo Rodrigues

Crônica retroativa de Ronaldo Rodrigues

Hoje, segunda-feira, 21 de dezembro de 2020 (ufa! Tá quase pra acabar!) estou no barco/navio/casca de noz a caminho de Belém. Férias, finalmente!

Eu aqui entre os passageiros, o único entregue à estranha atividade de escrever. Alguns já me olharam de forma estranha, mas é compreensível; talvez eles nunca tenham visto uma pessoa escrevendo.

Confiro de relance os coletes salva-vidas e os botes. Por que não me causa estranheza ou pânico saber que nem os botes nem os coletes salva-vidas serão suficientes caso os deuses do destino resolvam fazer um remake de Titanic?

O livro que trouxe para a viagem é Rita Lee – Uma autobiografia, uma leitura bem legal. Engraçado é que, sempre que vou lanchar ou dar uma volta, deixo o livro na rede e não aparece ninguém pra roubar…

Fico olhando a extensão do rio e penso o quanto somos agraciados por essa visão. Observo os pássaros que vão atrás do navio por um longo trecho do rio. Eles fazem piruetas e se divertem muito. Fico pensando qual seria o nome desses pássaros. Sei que não são gaivotas e, pensando nisso, me vem outro questionamento: por que não estudei biologia, já que essa curiosidade sobre os animais sempre esteve presente em mim?

Penso na importância de alargar a visão, deixar o olho percorrer os quilômetros de água. Penso nas pessoas que têm esse privilégio e não o usufruem. Vivem suas vidas numa cidade à beira do rio (simplesmente o maior do mundo) e não reservam 10 minutos de sua rotina para a contemplação desse rio.

É muita água, galera! E muita mata! Penso no quanto tudo isso que nos rodeia é gigantesco e, triste, penso também que só não é maior que a ganância humana, que pode nos arrasar.

Pouco depois de deixarmos o porto de Santana, os celulares ficam sem serviço, interrompendo uma internet que já é capenga. Perdemos contato com Houston, com a torre de controle, mas a nossa nave não está à deriva. Amanhã estaremos desembarcando no Porto Líder, no Jurunas, bairro do Rancho Não Posso me Amofiná, tradicionalíssima escola de samba da Cidade das Mangueiras.

Agora, 19h45. A noite trouxe o frio, que a tarde tinha desfeito diante do maior calorão. Penso no deserto que, dizem, tem o dia escaldante e a noite gelada.

Aqui e ali aparecem luzes no meio do breu. São casas isoladas e pequenas cidades. Pequenas mesmo, seis a oito casas. Um povoado, um vilarejo, um pequeno distrito, mas eu sempre chamo de cidade. E, claro, no meio da escuridão, as luzes de algo que nada tem a ver com iluminação: queimadas.

Avisto os prédios de Belém brotando no horizonte e essa visão sempre me emociona. Aí escuto a música Chegada, de José Maria Villar, cantada por Fafá de Belém: “Belém estou chegando agora / chapéu molhado e grosso fumo / eu vim no pipocar das ondas / no dobrar da ponta / no fim do estirão…”.

Em Belém, sou levado ao encontro de pessoas e momentos que ficam na memória do afeto, como a hospitalidade de uma casa de alegria, sorrisos e muitos, muitos livros da minha irmã Socorro; o amigo Cuité, que compõe e canta carimbó; o amigo Walter Túlio, que está aprendendo mandarim; o cunhado Sérgio, que constrói miniaturas de caravelas; a irmã Renilda, grande leitora, que em 2020 bateu a marca de 136 livros devidamente devorados; o amigo Thomé, que pouco encontro em Macapá e que me leva, com suas sobrinhas, à maravilha da Terra do Meio; o amigo e também cartunista Paulo Emmanuel, que me presenteia com uma Nossa Senhora de Nazaré feita de miriti, obra dele. Fora o almoço de peixe frito no Ver-O-Peso, o açaí do grosso, a degustação da manga caída na Praça da República, o rolê pela Marambaia e o passeio pela minha cidade natal, Curuçá. Tudo dentro dos protocolos e distanciamentos necessários.

*** *** *** *** *** ***

Hoje, domingo, 3 de janeiro de 2021, estou chegando a Macapá depois de um upgrade na alma. Voltando de navio, pois as companhias aéreas descobriram que sou milionário e passaram a cobrar preços astronômicos por um voo que não passa de cinquenta minutos.

Observei meu entorno durante a viagem e deixo aqui registrado os perfis de alguns passageiros, companheiros de viagem: o pai cuidadoso com sua esposa e seu bebê de colo; a artesã Maria Aparecida que veio fazendo uma boneca de crochê chamada Bianca; um garotinho muito esperto, falante e perguntador; um rapaz que deu as costas para o rio e ficou grudado em seu notebook; e um casal usando shorts com escudos do Paysandu (ela) e do Clube do Remo (ele).

Bem-vinda, Macapá! Até a próxima, Belém!

O primeiro poema – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

O tinteiro, a pena e o papel estavam lá, à minha frente, sobre a pequena escrivaninha, herança de meu avô. Eu estava tranquilo e os ruídos que chegavam da rua não me perturbavam. Lá fora, uma noite agradável se estendia sobre a cidade.

Eu procurava uma maneira de iniciar o desafio que me foi imposto pela vontade de extravasar os sentimentos por tanto tempo guardados no peito. Naquela noite, eu me preparava para escrever um poema.

Eu nunca havia escrito um poema antes, sequer pensado nisso, e aquela súbita ideia me pareceu absurda. Ela me atingiu no ônibus que vinha lotado de passageiros suados e cansados, assim como eu, depois de um dia extenuante de trabalho. O ônibus era trepidante e barulhento, mas o desejo de escrever um poema me fez flutuar ao som de uma linda sinfonia, que não sei de onde vinha, e nem notei que o percurso da viagem era tão longo.

Tomei um banho demorado, curtindo as bolhas de sabão que dançavam à minha volta e, pela primeira vez, observei os desenhos herméticos que as idas e vindas das formigas formavam no branco do azulejo.

Saí do banheiro e vesti a roupa mais simples. Fui ao quintal e reguei as plantas, conversando com cada uma. Depois, alimentei os cães e os gatos vadios que às vezes iam me visitar. Mudei a disposição dos objetos da casa e coloquei cortinas novas nas janelas.

Agora estava eu ali, na velha escrivaninha de meu avô, tendo à minha frente o tinteiro, a pena e o papel. E a firme determinação de escrever o primeiro poema de minha vida.

Temos Rei! – Conto de Ronaldo Rodrigues

Conto de Ronaldo Rodrigues

No ponto seguinte, embarcou o cego. Movia-se com tal desenvoltura que se poderia jurar não se tratar de um cego. Orientava-se com um tosco cajado e trazia na mão direita uma taça:
– Eu me chamo Samuel! Por favor, não tenham medo de mim!

Samuel falava de uma maneira extremamente solene, uma característica marcante, que ganhava maior autenticidade ao entrar em choque com sua pobre indumentária, uma túnica suja e esfarrapada até as últimas fibras:
– Venho das páginas sagradas de um livro muito antigo! Estou aqui para sagrar o Rei!

Eu sabia da existência de Samuel através de algumas pessoas minhas conhecidas que comentavam sobre um mendigo cego e louco visto todos os dias nos ônibus da cidade em busca de um Rei:
– Este povo ingrato, a quem tenho a missão de guiar, resolveu ignorar as palavras daquele que me enviou! Não querem mais o Rei semeador de jardins espirituais! O Rei utópico, o Rei onírico, não querem mais! Querem um Rei que possam tocar com as mãos e beijar os pés! Querem um Rei para lhe pagar tributos e esperar sua proteção, sua misericórdia! Se assim querem, assim terão!

Agora eu estava ali no ônibus constatando pessoalmente a presença de Samuel, ouvindo suas palavras, que me pareciam lúcidas demais.

Num dado momento, Samuel ergueu sua taça e um silêncio arrasador foi sentido no interior do ônibus, como uma presença física:
– Vejam todos! Dentro desta taça, trago o óleo perfumado que irá ungir o Rei, que deve estar entre vocês, passageiros deste ônibus que cruza esta metrópole!

Samuel percorria o ônibus procurando o Rei, olhando detidamente cada passageiro. Ninguém escapava daquele olhar opaco, parado nas órbitas, perdido no caos, mas que tinha uma iluminação diversa de qualquer outra luz.

Eis que seu olhar parou exatamente na minha direção. O meu olhar tentou fugir, por não se considerar digno de um olhar tão sábio. Nesse momento, Samuel ganhou grande vivacidade:
– Encontrei! Encontrei o que tanto procurava!

Fiquei perplexo e isso se estampou em todo o meu ser. Senti que todos os olhares se fixaram em mim. E não só os olhares das pessoas que se encontravam naquele ônibus. Me senti sendo visto por todas as pessoas do mundo.

Samuel ergueu sua taça e derramou todo o seu conteúdo sobre minha cabeça. Um óleo que exalava o mais agradável odor que já pude sentir. A voz de Samuel ganhou proporções acústicas de uma gigantesca trombeta:
– Temos Rei! Temos Rei! Temos Rei!

Imediatamente, o trânsito parou e todas as pessoas que estavam no ônibus se ajoelharam diante de mim, em adoração. Fato esse seguido por todos os que se encontravam nos outros carros e também pelos pedestres que enchiam as ruas, pessoas que estavam nos edifícios, nos comércios, nas casas.

Seguindo essa corrente, percebi que já o bairro inteiro fervilhava em aclamações ao Rei, isto é, eu. E não demorou um segundo até o país e o mundo inteiro se fazerem ouvir numa só voz:
– Temos Rei! Temos Rei! Temos Rei!

Quando eu já havia percebido que não se tratava de um sonho e, investido de toda a responsabilidade e autoridade que aquele cargo me conferia, desci do ônibus, com a temerária tarefa de governar aquela gente instável, desordenada e confusa.

Samuel, designado por sagrada decisão daquele que o enviou, seria meu conselheiro supremo. Ele havia, no momento da revelação do meu destino, retomado sua faculdade de enxergar.

Sentei no meu trono triunfalmente, aclamado pela infinita multidão, apenas uma pequena parcela do povo que eu deveria conduzir sem nunca mais poder olhá-lo novamente, pois, no exato momento em que Samuel recuperava sua visão, eu perdia a minha. Para o resto da vida.

Sociedade dos Boêmios Mortos – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Noite dessas, saí agarrado à intenção de rever pessoas e situações. Até aí tudo bem, se as pessoas e as situações não estivessem para além da fronteira da vida, aquilo a que se convencionou chamar de “morte”.

Fui, então, a uma reunião de uma confraria que há muito suspeitava de sua existência: a Sociedade dos Boêmios Mortos.

Cheguei ao Quiosque Norte & Nordeste, na Praça Floriano Peixoto, que atendia pelo simples nome de Bar da Floriano. O som que me recebeu vinha de uma vitrola e quem estava no comando era o Gino Flex, colocando as músicas mais descoladas da imensa coleção de discos de vinil.

Logo em seguida, um poeta louco subiu numa cadeira e passou a declamar poemas de Vinicius de Moraes. Era o Fred Lavoura, que conhecia tudo do Poetinha e nem esperava que batessem palmas. Ele mesmo liderava os aplausos depois da apresentação de mais um poema.

Enquanto isso, o Brô contava uma história em que ele se destacava como o grande herói, é claro. Ao seu lado estava o Banana, que, sejamos justos com esse momento único, não aprontou confusão alguma. O Pururuca e o Foa passaram por lá, mas ficaram pouco tempo, já que tinham compromissos em seus trabalhos de mototaxista.

Uma turma mais antiga deu o ar de sua graça. Os poetas Alcy Araújo e Isnard Lima e o artista plástico Estêvão Silva. Claro que o trio nunca esteve no Bar da Floriano, que não existia quando estes grandes personagens viviam no mesmo plano que nós. Mas puxo da minha cartola esta licença literária e os coloco no mesmo ambiente para que a minha homenagem se estenda a essa geração de loucos geniais, sonhadores e personalidades ímpares que Macapá produz.

Eu não sei se, devido à instabilidade de temperamento de artistas e boêmios, seria possível um encontro dessas pessoas. Pode ser que alguns dos citados fossem desafetos de outros e jamais admitissem estar na mesma mesa ou no mesmo bar. Mas corro esse risco, mesmo porque, se houvesse alguma briga, ninguém mataria ninguém, já que todos estão mortos.

Ah, sim. Já ia esquecendo. O Valério Campos, mais conhecido como Kadáver, estava lá também, mas, apesar do nome artístico, era, além de mim, o único ser vivo.

Um dia vou te convidar, caro leitor, para dar essa volta. Topas?

Cemitério dos elefantes – Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sempre curti cemitérios. Gosto de passear pelos corredores, admirar a arquitetura de alguns túmulos, observar as datas de nascimento/falecimento. Quanto mais antigas as datas, tanto melhor.

Em Curuçá/PA, a casa da minha família era bem próxima ao cemitério. Eu tinha uns quatro anos e ia muito lá. Deve ter vindo daí minha predileção por cemitérios e um senso de humor que, vez por outra, tem muito de mórbido. Depois, na adolescência, já morando em Belém, sempre que passava férias em Curuçá, o cemitério era um de meus locais preferidos de passeio.

Em Belém, frequentava o cemitério da Soledade, que tinha/tem um ar de abandono, cenário para filmes góticos, e o de Santa Isabel, o último lar de figuras como Eneida de Moraes, escritora e militante política. Sempre à frente de seu tempo, Eneida desafiou os padrões de sua época, liderando greves e atuando no jornalismo das décadas de 1920/30, quando esta atividade era considerada exclusivamente masculina.

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No cemitério de Santa Isabel, encontramos também túmulos que são recordistas de visitação em dias como os de hoje, 2 de novembro. Alguns mortos dali são considerados santos pela tradição popular, como o cirurgião Camilo Salgado, que fez muita filantropia em vida; Severa Romana, uma moça de 19 anos assassinada grávida, em 1900, a quem muitos atribuem milagres; e Josephina Conte, morta em 1931, que se transformou numa lenda urbana da cidade das mangueiras: a Moça do Táxi.

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Se e quando for a Paris, minha primeira visita não será à Torre Eiffel nem ao Arco do Triunfo. Será ao cemitério do Père Lachaise, o mais famoso do mundo, pela sua beleza arquitetônica e pela lista de hóspedes. Veja apenas alguns: Delacroix, Balzac, Oscar Wilde, Marcel Proust, La Fontaine, Allan Kardec, Modigliani, Isadora Duncan, Albert Camus, Molière, Chopin, Maria Callas, Edith Piaf e Jim Morrison.

Aqui em Macapá, minhas visitas aos cemitérios se fizeram mais raras, mas ainda dou minhas voltas pelo cemitério de Nossa Senhora da Conceição, o mais antigo da cidade.

Enquanto não me transformo em morador de um lugar desses, vou curtindo sua tranquilidade e suas histórias, sempre com muito respeito pelos que ali estão. Até que eu morra e vá descobrir, finalmente, onde fica o tal cemitério dos elefantes.