Pela janela azul do manicômio – Crônica porreta de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Um mundo ainda não corrompido se estende pelas ramificações da cidade, em alamedas de flores, que atravessam o grande oceano. É o mundo não corrompido que vejo pela janela azul do manicômio.

Um mundo desprovido de césares e eunucos, de tédio e de policiais. Onde foram abolidas todas as penas, de morte e de vida. Em cujas praças, esquinas e avenidas olhares se atrevem, se atravessam e se comunicam com os segredos da vida, sem colisão de pensamentos. Esse mundo quer existir para todas as pessoas através de mim. Esse mundo me quer como mensageiro de sua paz cotidiana, de respeito mútuo, de fraternidade.

Eu necessito urgentemente de uma caneta para descrever esse mundo, anotar sua fórmula. Corro em direção à escrivaninha em busca de caneta. Quero deixar registrado esse mundo fabuloso, que me acena na noite, pela janela azul do manicômio. Quero dizer que esse mundo existe e pode ser por nós alcançado.

Abro as gavetas, uma por uma. Reviro os papéis na escrivaninha e não encontro caneta, lápis, qualquer coisa com que se possa escrever. Não acredito! Não pode ser! Nunca fiquei sem caneta em toda a minha vida e justo agora que mais preciso…

Começo então uma busca frenética. Remexo pastas. Violo armários. Coloco pelo avesso os bolsos de todas as roupas. Atropelo objetos. Mas tudo é inútil! Não encontro uma caneta sequer e o mundo ainda não corrompido aguarda lá fora, navegando na noite.

Lembro que na esquina da rua do manicômio azul há um boteco onde poderei comprar uma caneta ou quantas eu quiser ou puder ou precisar. Abro a porta do quarto, desço as escadas, pulo a janela do andar térreo e saio correndo pela rua em direção ao boteco. Os enfermeiros de plantão logo são avisados e partem em meu encalço. Não há tempo para explicar a eles que não se trata de uma fuga. Eles não entenderiam a urgência de se comprar uma caneta em plena madrugada.

Continuo correndo em direção ao boteco, o último, o único aberto na noite, em todo o planeta. Acelero a marcha porque o sonolento dono do boteco, sem desconfiar da importância daquele ato, fecha va-ga-ro-sa-men-te a porta antes que eu consiga alcançá-la. Inutilmente, fico batendo desesperado na porta do boteco que abriga vários e vários pacotes de caneta.

Os enfermeiros chegam, trazendo uma camisa de força. Eu me rendo e sou conduzido de volta ao quarto. Me aplicam um tranquilizante e eu fico inerte na cama, observando pela janela azul do manicômio um mundo ainda não corrompido se dissipando na noite.

Mais um dia: Ronaldo Rodrigues se sentindo um pouco Charles Bukowski

Ronaldo Rodrigues & Charles Bukowski

Mais um dia. Acordo com uma puta vontade de mandar tudo à merda. Vontade de abrir a janela e mandar todo mundo se foder. Mas é muito esforço para minha combalida figura. E a humanidade, decididamente, não vale a pena. A humanidade vai continuar aí, venerando dinheiro, trabalhando duro para meia dúzia de filhos da puta. A humanidade vai continuar fedendo pelo longo dos anos. Até acabar a merda da areia da ampulheta. Foi assim por todos esses malditos anos. Será assim pelo terceiro milênio afora. Duvido que haja um quarto milênio para a humanidade purgar.

Mais uma cerveja na companhia desses idiotas que infestam a festa nefasta deste bar. Um bar cheirando a mijo. Mas é preciso ser social (leia-se hipócrita) de vez em quando. Tanto faz morrer de tédio em casa ou na mesa do bar. Posso até fingir que assisto a uma decadente sessão de cinema.

Poesia para todos! Pérolas aos porcos! Os especialistas de coisa nenhuma estão pontificando. É impressionante. Eles conseguem me provar que não basta saber coisas interessantes para se tornar alguém interessante. Todos têm algo a dizer, muito a dizer. Só que suas palavras rebuscadas e, geralmente, equivocadas não têm nada a dizer. Antes que tudo isso me enlouqueça, aperto o gatilho na minha testa e descubro que o outro lado da vida é do mesmo jeito que este. Então era isso? A condenação já tinha começado? Droga!

*Bebedeiras fazem parte da vida de um escritor. Tá, tudo bem! Nem de todo escritor. Eu, que me sinto escritor (às vezes) e beberrão (sempre), curto a embriaguez de ser um escritor beberrão. Muitos sabem que gosto de me sentir Charles Bukowski. Quer dizer: poucos sabem e quase ninguém se importa, mas sempre que leio Bukowski recebo a entidade Bukowski e as únicas coisas que me interessam nesses momentos são uma garrafa de cerveja ou vinho barato, um cigarro mais barato ainda e uma puta bem puta mesmo.

Ronaldo Rodrigues

O dia em que consertei a bagunça – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Muito bem! Posso dar por encerrado o trabalho e descansar eternamente. Afinal, eu mereço. Criar o mundo, com tudo o que tem nele, cada detalhe, foi uma tarefa muito difícil. Não fosse eu o Todo-Poderoso creio que jamais teria conseguido sem consumir pelo menos uns cinco séculos. Levei apenas seis dias e vou já inventar o sétimo dia, o do meu divino descanso. A natureza e todas as suas criaturas estão aí, prontas para dar início a uma história de perfeita sincronização entre tempo e espaço, o equilíbrio exato entre rios, florestas, animais, o ar mais puro que fui capaz de criar, a movimentação do universo, a sequência perfeita das estações do ano… Creio que nada mais falta no meu paraíso.

Mas espera um pouco. Que tal eu dar um toque final? Criar um ser que possa compreender, fiscalizar e preservar a minha obra, livrá-la de todo o mal que, apesar do meu cuidado em criar o mundo, possa ter me escapado. Isso mesmo! Bem pensado! Vou criar esse ser, também um animal, que seja superior em inteligência aos outros animais. Será um tipo de gerente deste mundo, que foi criado com tanto zelo e carinho. Vou chamar este ser de homem e, como sei que ele não se contentará em ser o único de sua espécie, criarei sua companheira, a mulher. Era só o que faltava, ainda bem que lembrei.

Criei os dois, vi que tudo estava bem e parti para meu justo descanso. Mas esse descanso não durou quase nada. Foi só o tempo de os dois seres mais inteligentes começarem a fazer das suas. Primeiro, comeram do fruto do qual tanto alertei para que mantivessem distância. Foi a primeira desobediência que cometeram e isso foi só o começo de uma sequência de erros que continua até hoje. Resultado: o paraíso que criei virou um inferno. O ar puro que existia está misturado a gases poluentes, as florestas estão queimando, os animais morrendo e os rios secando. Os seres que acreditei serem os mais inteligentes se revelaram mesquinhos, egoístas e os mais ignorantes, pois são os únicos que põem em risco sua própria existência e a do planeta inteiro.

Falha minha. Por que não deixei do jeito que estava? Por que tive a ideia, no último momento, de criar mais essa espécie? A que eu acreditei que iria conviver com as outras espécies na maior calma e com todo o respeito. Aí eu poderia ficar tranquilo no meu descanso. Mas isso não ficará assim, pois já tenho a solução!

Pronto! Voltei àquele sexto dia da criação e poderia, simplesmente, riscar esse item da minha lista, deletar a existência dos seres humanos. Mas não serei cruel, como muitos deles se mostraram no decorrer da história. Vou apagar sua faculdade de pensar e eles ficarão observando os outros animais, como muitos desses animais são mais emotivos, mais íntegros e muito mais racionais do que os seres humanos. Agora, eles serão estagiários, observadores das outras existências, para que possam, em algum momento, ganhar elevação, grandeza, bondade. Só assim haverá uma esperança de que a vida na terra tenha equilíbrio e que se faça a luz!

Agora, sim! Vou tranquilo para o meu descanso.

Minha vida sempre foi um mar de rosas – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Minha vida sempre foi um mar de rosas. Plantado no sertão de minhas noites. Fincado no coração de meus dias. Um mar de rosas que me afoga em suas mulheres. Desertos que atravesso e esqueço após o sono. Só para continuar um outro sonho, quando acordo.

Minha vida um mar de rosas. Rochas róseas, ígneas, indecifráveis. Perdido na infância doce dolorosa. Na tranquilidade das tormentas. Rasgando os versos que como com o pão matinal. Sorvendo a brisa que vem do mar de rosas que minha vida me deu de mão beijada e ainda me cobra o devido crédito.

Contando com o tempo que ainda tenho para melhor viver esse mar de rosas, que chega até a janela da casa que não possuo, no sítio que não habito, no tempo em que não me encontro, e bate e não obtém resposta.

Minha vida um mar de rosas pétreas, um mar de rosas revoltosas revoltadas devotadas, ainda não derrotadas, ainda não ceifadas, mas seladas com o timbre da morte que um dia/uma noite virá transformar esse mar de rosas em tempo nenhum. Minhas cinzas num cofre, meus olhos num horizonte de labirintos, minhas certezas e dúvidas passeando de mãos dadas num jardim completo de chegadas e repleto de despedidas. Minhas pegadas na areia que o vento leva para o espaço tempo talvez quando agora já onde porque como quando sei lá.

a última canção de susana san – Conto de Ronaldo Rodrigues

conto de ronaldo rodrigues

• ela está parada sentada na pedra em frente ao mar
• ela ouve o som do vento, do vento, do vento que entra pelo labirinto da concha de sua orelha
• ela e o violão antigo deixado de herança por um tio-avô excêntrico, esquisitão mesmo, que morava numa caverna
• ela, susana san, canta uma canção, um trecho ouvido no dia do enterro de sua mãe
• ela toca o violão e algumas gotas d’água (e de lágrima) chegam às suas pernas
• susana san sente a pedra afundar, ou melhor: o mar subir
• ela esquece a música, depois lembra, ela esquece o namorado que partiu pra guerra, depois lembra, ela esquece o pai, não poderia ser diferente, já que ele nunca voltou de uma viagem interminável
• ela esquece tudo, depois lembra, mas agora é tarde para lembranças e esquecimentos
• o mar já chega aos seus seios
• o violão vai ficando cheio d’água e ela perdeu a vontade de ir embora
• ela sabe que não adianta tentar se salvar, já que nada detém o mar (mas esquece)
• hoje sou eu que estou na pedra à beira do mar pensando ouvir a última canção de susana san trazida pelo mar, pelas gaivotas, pela lembrança daquele portão velho de madeira do fundo do quintal
• ouço a última canção de susana san e me despeço da pedra
• agora já é amanhã, ou seja: hoje
• retornei, sempre retorno na esperança de que o mar e o vento tenham aprendido a última canção de susana san para fazer o mundo aprender
• e se libertar

Pedalando e cantando – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Meu veículo preferencial, depois dos livros, que me levam a qualquer lugar, é a bicicleta. É a bordo da magrela, do camelo, que faço o caminho de casa para o trabalho e vice-versa. E também quando saio desse percurso para me encontrar com amigos.

Enquanto pedalo e a bike me leva, vou pensando o quanto esse ato me traz a sensação de liberdade. O corpo vai se exercitando em meio ao burburinho urbano, vou vencendo a distância como se eu voasse, planasse, pairasse, algo assim. E a certeza de pilotar um veículo não poluente ajuda a despoluir a mente. No caminho, solto as asas do meu poder criativo, ou ele é liberto pelo pedalar, e vou cantarolando canções já existentes, minhas e de outros autores. Tento criar letras e ritmos, penso no texto que preciso fazer quando chegar ao trabalho, olho pessoas em seus afazeres cotidianos, lamento pelas infrações no trânsito, grito palavrões (às vezes, apenas imaginários) ao motorista que atenta contra minha existência e contemplo o majestoso rio Amazonas, quando resolvo sair do meu caminho de pedras e estender o olhar até onde os olhos possam chegar.

A minha indignação diante do que não entendo das decisões políticas também tem vez em comentários que não chegam a estragar meu dia, mas reforçam o fato de que a mobilização urbana é algo que precisa ser muito bem pensado e executado. Aí saem pensamentos assim: “Caramba! Quando é que estas obras vão acabar? E, se já acabaram, pelo visto, por que deixaram tudo quebrado, sujo, poeirento no sol e lamacento na chuva? Cadê a ciclovia?”.

A magrela já foi tema de várias crônicas minhas e continuo pensando nela com pureza. Sinto a bicicleta como uma ilha de lirismo em meio às buzinas e chiados de pneus de um trânsito caótico, como um sonho de serenidade na contramão de uma realidade que insiste num dinamismo da vida moderna que, muitas vezes, é somente pressa.

Enquanto não convenço pelo menos a metade do mundo a sair por aí de bicicleta, vou ao encontro dos entusiastas desse esporte, filosofia, estilo de vida. Ou saio pedalando solitariamente pelos meus pensamentos. Fazendo analogia entre pedalar e viver, sei que vou chegar a algum lugar e, apesar de não saber onde é esse lugar e quando será minha chegada, vou apreciando as belezas do caminho, sentindo o vento no rosto e sorvendo minhas doses diárias de felicidade.

Vale terminar citando a música Tesouro da Juventude, de Tavinho Moura e Murilo Antunes, cantada por Beto Guedes: a pedalar / camisa aberta no peito / passeio macio / levo na bicicleta o meu tesouro da juventude… piso no pedal do sonho / e a vida ganha / mais alegria.

Macapá em mim – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Era 1997, o século XX se aproximando do fim e eu chegando ao meu recomeço.

Foi a primeira vez que andei de avião, cantarolando internamente a música de Beto Guedes e Ronaldo (meu xará) Bastos: “Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos…”.

O Sol de Primavera brilhou para mim, ainda que eu tenha chegado na madrugada, e o primeiro de setembro ficou sendo um marco, o Marco Zero do Equador da minha nova vida, que começava naquele momento, nesta cidade que alargou meu coração para caber nele, juntamente a Curuçá e Belém, formando as três cidades que trago no peito.

Logo novas palavras foram chegando e se materializando em minha nova vida. Marabaixo, Curiaú e o rio Amazonas, já conhecido dos livros escolares e agigantado mais ainda quando o vi e fui abraçado pelo volume das suas águas. São elementos que foram se associando, se misturando, me arrebatando e hoje fazem parte do que sou.

As pessoas da cidade foram surgindo, interagindo e integrando meus círculos de amizade. E é tanta gente que podemos imaginar um Banco da Amizade em toda a extensão da Fortaleza de São José para caber meus amigos.

Hoje, faço 23 anos como amaparaense (não está escrito errado. Sou um paraense que vive no Amapá, logo um amaparense) e celebro tantos momentos de alegria, confraternizações e realizações artísticas.

De Macapá, tenho saudade dos domingos em que não fui (porque o tempo e o espaço eram outros) assistir a um filme no Cine João XXIII, depois tomar um sorvete e paquerar as meninas no trapiche. Tenho saudade de não ter ido à praia da Fazendinha com uma turma de amigos e só voltar quando a madrugada já anunciava um novo dia. Saudade do Bar Caboclo que não frequentei e da gonorreia que não peguei. Gostaria de ter me curado da tosse braba ou erisipela pelas ervas do Mestre Sacaca. Tenho saudade de figuras como Alcy Araújo, Isnard Lima, Estêvão Silva. Saudade do Gino Flex, que conheci e brindei à vida com ele, e agora saudade que me assalta no meio desta escrita comemorativa e tira um pouco do ânimo, pois Lula Jerônimo acabou de partir.

São vinte e três anos de Macapá em mim neste primeiro de setembro. Várias voltas do sol em torno de mim e por dentro da vida. E por falar em vida, termino com um trecho de Carlos Drummond de Andrade, poeta da minha vida: “a vida é bastante / que o tempo é boa medida, / irmãos, vivamos o tempo”.

Obrigado, Macapá!

Menina Legal – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Dentro do olho plantei um grão de areia, um cisco que deixei ficar no cantinho do olho, de propósito. De tanto regar esse grão de areia com lágrimas e gotas de chuva, ele foi se transformando em duna. Depois de alguns meses, já era uma praia completa, com coqueiros & conchinhas.

Passei a levar essa praia para todo lugar que ia. Quando me encontrava de folga, invocava o sol e convocava Menina Legal para curtir essa praia. Dava uma esfregadela no olho, muito lentamente, para não irritar a paisagem, e deixava cair uma cascata de areia branquinha, que ia se estendendo pelo chão, feito um tapete. Aí, eu deitava & rolava com Menina Legal, nos bronzeando nus do umbigo pra cima e completamente pelados do umbigo pra baixo.

Quando a tarde caía, colocava o outro lado da lua na vitrola, respirando música misturada ao som da blusa estendida no varal. Menina Legal olhava longamente/farolmente para o horizonte e deixava o barquinho de papel navegargalhar sobre a ponte do infinito, atravessando um puríssimo azul, resto do dia que ia e promessa da noite que chegava. O coração pegava carona no barquinho de papel e alçava voo de gaivota sobre os edifícios cinzentos da Avenida Crepuscular. Deixava cair uma clave de sol no mar. Mostrava ao trânsito engarrafado a saída do labirinto urbano. Devolvia à Cidadela do Carnaval o despertar da folia. A fauna & a flora dos bares & becos ecoavam na TV seu grito de fera.

Na manhã seguinte, o paraíso se dissipava. MeninaLegal colocava uma flor verdemelha no longo cabelo e ia embora, trabalhar de fada encantada de feira de artesanato. À noite, passava um batom lilás e assumia sua identidade secreta: esposa de executivo com golpe armado pra cima do marido.

Solitário, só me restava recolher ao olho minha praia portátil, distribuir meus últimos dólares entre os bêbados do boulevard e seguir para a Caverna Central, em busca de um drops de dicionário antigo. Só assim eu conseguiria entender o significado da minha dor e talvez falar a linguagem dos ratos da Biblioteca de Alexandria.

2020 – Pequena crônica de Ronaldo Rodrigues

Pequena crônica de Ronaldo Rodrigues

Estive pensando sobre este ano que, em vez de passar, está a nos atravessar. Antes de 2019 chegar ao fim (lembram dele? Inocentes, nem desconfiávamos do que viria), comentei com um amigo designer gráfico que o número 2020 é legal de trabalhar. Dá pra fazer um selo ou uma vinheta com esse número redondo. E redondo duas vezes: 20 e 20.

Outra coisa que sempre falo a cada ano que chega, com uma certa carga de tédio, é que lá vamos nós repetir tudo. E lá vem Carnaval, Páscoa, São João… Para tudo se repetir no próximo ano e no próximo e no próximo. Aí chega 2020, só deixando o Carnaval e cancelando ou adiando todo o nosso calendário. O restante a gente foi e está levando do jeito que dá, né? Houve uma interrupção que foi muito além do meu desejo de que as coisas não se repetissem.

Ironia do destino: o que eu achei que seria um número redondo, bom para virar uma peça gráfica, me enganou redondamente. E agora virou um ano já marcado pelo coronavírus, alimentado por outros vírus tão letais quanto, como a sabotagem às medidas de segurança, o negacionismo da pandemia, a minimização da importância do combate ao coronavírus, o aproveitamento da situação para desvio de dinheiro público etc. Ainda bem que, para contrabalançar, tem gente empenhada em diminuir o impacto, fazendo trabalhos voluntários em que a solidariedade se faz presente num mundo em que o amor pelo próximo está tão ausente.

Tomara que a gente aprenda alguma coisa. Por exemplo: que os pais e mães, que entenderam que a rotina dos professores não é moleza, passem a respeitar e valorizar esses profissionais quando a vida retomar seu curso (quase) normal. Eu mantenho minha esperança no ser humano, mesmo sabendo que a maioria das pessoas não vai aprender nem a lavar a mão.

É, 2020! Não leva a mal, creio que não tenhas culpa. Digamos que seja apenas uma coincidência nefasta. Tá vendo só? Nem consegui fazer uma crônica legal. Mas para não terminar de baixo astral, ainda aguardo uma virada de mesa, lá pelo apagar das luzes, na dobrada para o próximo ano. Já vejo até as felicitações para 2021:

– Feliz Ano Novo! Feliz mesmo, hein!

Eu de uber, quem diria? – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Quem acompanha minhas crônicas sabe que sou um ser analógico tentando sobreviver nesta floresta tecnológica. Há uns cinco meses, arrisquei esquentar um rango no micro-ondas e – pasmem! – não é que consegui? E sozinho! Postei até um vídeo na internet relatando o fato.

Pois é, eu sou assim: minha atuação mais elementar nesta selva de aparelhos, aplicativos e programas é um avanço enorme no meu currículo de pessoa conectada com este presente já com cara de futuro. Ou que tenta se conectar, já que não há outro jeito. Aí eu alardeio aos quatro ventos dos quatro cantos do meu mundinho real e virtual qualquer coisa que uma criança teria feito sem dificuldade alguma. Já recebi comentários tipo este: – Tá vendo? Todo mundo consegue. Até tu! kkkkkkkkk

A minha última façanha (não a última, a mais recente) nesse campo foi baixar o aplicativo de uber. Tive que comprar um celular decente, já que o anterior não comportava quase nada, um aparelho que nunca tinha ouvido falar em download. Outra coisa que me diziam sempre: – Quando é que vais tomar vergonha nessa cara e comprar um celular de verdade?

Pronto! Comprei o tal celular de verdade! Aí baixei o aplicativo, com o auxílio luxuoso de esposa e filho, e venci mais uma batalha. A próxima prova foi chamar um uber. Também com o auxílio da família, fiz a primeira viagem e tudo saiu do jeitinho que deve ser. Hoje, já me desenrolo fácil e os amigos, curiosos e incrédulos, me enchem de perguntas: – E aí? Qual a sensação de pertencer ao mundo? – Achavas que ias ficar imune aos encantos da tecnologia? – Não te falei que era fácil? – Já aprendeste a avaliar o motorista?

Pra mim, avaliar o motorista é facílimo. Faço a seguinte ponderação: como os tempos estão meio violentos e alguém pode muito bem se passar por motorista de uber pra roubar as pessoas, se não sou assaltado, o cara já ganha cinco estrelas. Só vou avaliar o motorista com menos que isso se ele me assaltar, me bater, me expulsar do carro ou me deixar num lugar bem distante de onde eu queria ficar. Neste último caso, a culpa é mais do GPS, que insiste em mudar minha rota e eu tenho que ficar orientando o motora.

Um outro quesito é a trilha sonora, a seleção musical. Geralmente é música que eu não aprecio, mas como o volume é baixo e ninguém pediu minha opinião, não tem problema e nem por isso o cara deixa de ganhar as cinco estrelinhas. Outro dia até quis que a avaliação passasse de cinco estrelas, tal foi o grau de contentamento que tive. Pois do som do carro não vinha nenhum cantor chorando, falando vulgaridades, gritando ou esmurrando a língua portuguesa. Vinha, sim, um inglês britânico acompanhado de alguns instrumentos que uns garotos de Liverpool tocavam com toda a vontade. Isso mesmo! Também custei a acreditar que os Beatles estavam ali, executando suas primeiras músicas, acompanhando eu e minha esposa na volta pra casa. Quando o carro parou diante de uma faixa de segurança, vi os quatro atravessando, como naquela famosa foto na Abbey Road, em Londres. Mas aí era sonho.

Na descida, agradeci e elogiei o gosto musical do motorista. Ele ganhou as cinco estrelas e entramos em casa pra ouvir mais umas sessões de Beatles: I wanna hold your hand / I wanna hold your hand…

Poesia de agora: Solidário com a solidão, poema de Ronaldo Rodrigues ilustrado por Ronaldo Rony

Solidário com a solidão

chego em casa sozinho
sem pão sem circo sem vinho
pra quebrar o silêncio
só a música ruim do vizinho
e o latido maldito do cão

não sei o que fazer
não tenho onde me esconder
já que na casa não tem porão

me jogo no sofá
da sala de mal-estar
e ligo a televisão
sem dar crédito
ao assédio do tédio

tentando talvez em vão
ser solidário
com a solidão

Poema de Ronaldo Rodrigues ilustrado por Ronaldo Rony

Apenas um sábado agradável – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ocrides é um personagem do Ronaldo Rony, cartunista paraense radicado no Amapá que, dizem, parece muito comigo e ilustra minhas crônicas. O personagem é inspirado num amigo nosso, cujo nome verdadeiro vou deixar entregue à curiosidade dos meus leitores.

O Ocrides deveria ser nome de rua em Macapá, a exemplo de seu pai e de seu padrinho. Mas a notabilidade do Ocrides se deve a qualidades, digamos, pouco salutares e nem tanto dignas que, imagina-se, não devem ser atributos para quem empresta seu nome a ruas, praças e outros logradouros públicos.

O que se destaca no Ocrides é a capacidade de participar de histórias que bem poderiam constar no repertório de um escritor bastante imaginativo. Ocrides é, como disse Nelson Motta a respeito de Tim Maia, um personagem real e único, que nenhuma ficção poderia criar.

Com relação a ter pai e padrinho com nomes de rua, certa vez perguntei ao Ocrides se ele não tinha o desejo de um dia virar também nome de rua. Ele me respondeu, com sua pachorra e seu peculiar senso de humor:

– Ah, meu amigo. Acho que, no máximo, no máximo, eu conseguiria ser nome de um beco. E de um beco sem saída.

Mas vamos a um fato ocorrido com o Ocrides e, quem sabe, eu busco mais histórias na minha fraca memória e inicie uma série de crônicas tendo o Ocrides como protagonista. Vamos lá!

Certa manhã, o Ocrides saiu para trabalhar, pronto a encarar um expediente maneiro até meio-dia e depois tomar umas biritas e jogar um bilhar, como pede um bom sábado de sol. Ao sair, passou por três homens que portavam pincéis, latas de tinta, escada e outros apetrechos. Como ele não é de se importar muito com o que ocorre ao seu redor, entrou no carro e ganhou as ruas de Macapá.

Cumpriu seu expediente, no trabalho e no bar, e retornou ao santo lar, calibrado pelas cervejas, já no comecinho da noite. Quando seu carro percorreu o quarteirão de sua casa, Ocrides identificou todas as residências, menos a sua. Achou que tinha errado o caminho, mas o ambiente lhe era familiar e fez o retorno:

– Mas eu nem bebi tanto assim! – disse para si mesmo, sem se dar muito crédito. – Como é que não consigo encontrar minha casa?

E, depois de retornos e mais retornos, sua mulher, que estava na janela só observando aquelas idas e vindas, veio até a frente da casa e o chamou:

– Ei, Ocrides! Para de rodar que nem um peru bêbado! A nossa casa é esta aqui!

Aí ele percebeu o que havia ocorrido. Enquanto esteve fora, a mulher mandara pintar a casa de uma cor totalmente diferente da antiga:

– Ah! Agora entendi aqueles caras chegando com tinta e pincel… Bom, depois de tanto rodar, o jeito é tomar umas. Bora?

Sua esposa, que também não era lá muito equilibrada das ideias, entrou imediatamente no carro e foram procurar um bar na beira-rio para comemorar a pintura da casa.

Teorias, teorias… – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Outro dia, pelas ondas desta onda chamada internet, encontrei um velho amigo (velho mesmo, já que o tempo está correndo mais que o Bolt, tanto para o amigo quanto para mim). Falamos sobre os desastres do momento: pandemia, nuvem de gafanhotos, gestão escrota. Aí ele me falou de mais uma teoria, das tantas que coleciona, e me saiu com esta:
– Os vírus existentes no mundo e todas as bactérias e fungos e tantos seres invisíveis são os legítimos habitantes deste planeta! Tô te dizendo!

– Sério? – respondi, sem muito o que dizer.

– Seríssimo! Veja bem: os vírus malignos mesmo, os que perpetram as maiores atrocidades, somos nós, os seres humanos! É o ser humano que toca fogo na mata, que joga lixo nos rios, que torna insuportável a vida na Terra. Aí, a natureza, que sabe muito bem o que faz, tem seus momentos de reação. E quando a natureza reage, mano, não tem ser humano que segure! E sabe como ela reage? Através de vírus, de praga de gafanhoto, de ciclone, de tsunami, de erupção vulcânica. É isso!

Pensei um pouco e vi que ali tinha um tanto do que acredito. Mas tentei argumentar:
– O problema é que, no meio de tanta gente ruim, morre muita gente legal…

Meu amigo estava com a corda toda:
– Sim, concordo! Mas olha só: os maus morrem por serem maus e os bons morrem por não conseguirem deter os maus! Não evitam, e aqui eu coloco eu e tu, que o planeta seja maltratado, não impedem a degradação da Terra!

A conversa me interessava, mas já estava me levando para uma certa deprê. Aí eu tentei fugir do assunto, porque, nestes tempos de pandemia, dar terreno para a depressão, definitivamente, é um péssimo negócio.

Nos despedimos e prometemos nos encontrar quando tudo passar:
– Por falar em quando tudo passar – disse meu amigo –, já viste essa galera que não sai da rua? Tem uma porção de gente saindo de casa sem necessidade alguma! E fazendo churrasco, tomando cerveja, se aglomerando, sem máscara, cuspindo perdigoto pra todo lado! Por que esse pessoal não faz que nem o Elton, que toma a cervejinha dele na casa dele, sem incomodar ninguém? Eu fico é mordido logo! Se essa galera, que é o verdadeiro vírus, ficar zanzando por aí, sem nada de importante pra fazer na rua, essa pandemia não vai passar nunca!

Antes que meu amigo desenrolasse mais uma teoria, e como eu estava propenso a concordar com ele (é um perigo: toda vez que concordo muito com ele, acabamos brigando rsrsrsrs), me despedi, alegando que estava na hora de assistir a alguma live.

Agora estou aqui, pensando que a teoria do meu amigo talvez não seja tão absurda: e se formos mesmo o vírus maligno deste planeta?

Se outro nome – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

E se um dia eu acordasse com meu nome sendo outro nome? Outro nome, outro codinome, outra vida, outras vidas, uma vida por dia, várias vidas ao mesmo tempo, no mesmo dia.

Se de repente eu percebesse que meu nome é Marco Polo, René Magritte, Clarice Lispector?

E se alguém perguntasse meu nome e, quando eu fosse dizer o nome que sempre me acompanhou, saísse outro nome: Arthur Antunes Coimbra, Theda Bara, José Mojica Marins.

E se eu acordasse Albert Sabin, Penélope, Humphrey Bogart? Se de manhã fosse Tim Maia, Pola Negri ou Pepe Mujica e, ao meio-dia, mudasse para Pancho Villa, Arthur Bispo do Rosário, Elvis Presley?

No café da manhã, seria Eden Pastora, James Cagney, Gerônimo. No almoço, Martha Medeiros, Shang-Chi, Suzana Flag. No jantar, Fernando Pessoa, Lex Luthor, Vladimir Maiakóvski.

Entraria no cinema e lá me transformaria em Fred Flintstone, Al Capone, Alec Guiness. Ao sair do cinema seria Mata Hari, Stuart Little, Wolfgang Amadeus Mozart.

Alguém entenderia se meu rosto fosse da Greta Garbo, na carteira de identidade aparecesse o nome Bono Vox e o nome que constasse na carteira de motorista fosse Eder Jofre?

Ser Bob Dylan, Kunta Kinte ou Charles Bukowski um pouco por dia, só de chinfra. Já pensou? Ser Chico Buarque por cinco minutos seria uma boa, hein?

Sempre que fosse dizer meu nome outro nome brotaria da minha boca: Mick Jagger, Bruce Lee, Roberto Rivellino.

Já na universidade seria Stephen Bantu Biko, Tex Willer, Jorge Luís Borges. Na vizinhança, meu nome seria Paulo Leminski, Vito Corleone, João do Pulo. Nos bares, emergeria o nome de Sônia Braga, Camilo Cienfuegos, Black Jack Tarr.

Há alguns nomes que acho de grande beleza: Florbela Espanca, Dalcídio Jurandir, Eneida de Moraes, Raimundo Fagner, Massimo Matioli, Álvaro Apocalypse, Pixinguinha, Carlos Drummond de Andrade.

Mas vou terminar esta crônica e esta vida com o nome que me foi dado lá no princípio de tudo. O nome que odiei, o nome que amei, o nome que me assinalou no meio de tantos nomes. Esse nome que é Ronaldo Rodrigues, que é Ronaldo Rony, que não é rima nem solução para o mundo, e que é também (por que não?) Djavan, Millôr Fernandes, Mauricio Babilonia, Berlim, Tom Zé, Doroteia Cabral, Lápis-Lazúli, Billy Podre, Sabino Navegante, Rita Lee Jones, Rasputin, Aureliano Buendía, Tereza Batista, Arnaldo Antunes, Virginia Woolf, Virgulino Ferreira, Capitão Nemo, Esmeralda Borges, Hermeto Pascoal, Lee Oswald, Bram Stoker, Muhammad Ali, Diego de la Vega, Jesse James, Charlie Chaplin, Bruce Benner, Jesus Cristo…