Mais um dia de rebeldia – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Acordo despreocupado com a perspectiva de enfrentar mais um dia. A gente acaba se acostumando. Esta é a vida que se foi construindo até aqui. Vida feita de vontade de romper com o mundo, apesar de omissões e covardias.

Romper com o mundo. Pensei nisso aos 12 anos, aos 18, aos 35. Agora, aos 56 anos, já não tenho ânimo nem de lembrar que um dia tive arroubos de rebeldia.

Ultimamente tenho pensado nessa coisa de rebeldia e vou usar aqui um palavrão do momento: ressignificar. É isso que venho fazendo: ressignificando tudo. É um exercício, um aprendizado. Já ressignifiquei o Círio de Nazaré, o Natal, o fim/começo de ano… Ressignifiquei sentimentos, valores e pessoas. Mudei de casa, de relacionamento e de ideias. Mudei apenas para que eu possa continuar sendo um novo homem. E esse novo homem que sou é o mesmo homem que sempre fui. Uma criança que nasce cada vez que abre os olhos para um novo dia.

Sim, ressignifiquei minha rebeldia. Se o “normal” é burlar a lei, a rebeldia está justamente em fazer o contrário: seguir a tal da lei, obedecê-la. Por isso eu atravesso na faixa destinada aos pedestres. Por isso eu jogo o lixo dentro da lixeira. Por isso a primeira coisa que faço ao entrar num carro é colocar o cinto de segurança. Por isso não furo fila. Continuar sendo honesto em meio ao mar de corrupção, isso é rebeldia. E nem é algo sobrenatural. Quem é assim não sabe ser de outro jeito. Mesmo que os seres honestos possam ser chamados de atrasados e até de otários, faz bem insistir. Na verdade, faz toda a diferença.

Na adolescência, fui um rebelde diferente do rebelde que sou hoje. Ou mais igual ao que se espera de um ser minimamente revoltado. Minha rebeldia me fazia renunciar à ingestão de Coca-Cola, reconhecendo nela a bandeira do imperialismo ianque fincada no território dos nossos intestinos. Eu andava com um prego, de tamanho considerável, riscando os carros da burguesia sempre que surgia uma oportunidade. Naquela espécie de insurreição solitária, eu jurava que estava dando a minha contribuição à revolução, vandalizando um pouquinho a propriedade privada. Não me arrependo. Mas lembro também de uma rebeldia tola, de quando eu tinha 18 anos: mijar na pia do banheiro dos bares, e não no vaso sanitário. Uma transgressão que admito, hoje, ser só babaquice mesmo. Tive minha fase de rebeldia filosófica e não foram poucas as vezes em que arremeti contra Deus a minha ira santa, elegendo Lúcifer como o primeiro guerrilheiro a enfrentar a tirania divina, que teve de amargar exílio e maldição. Hoje, Deus e o Diabo estão devidamente ressignificados e os dois convivem muito bem.

Por isso, hoje, sou rebelde de verdade. E parece que mais terrível, pois os inimigos não estão preparados pra enfrentar quem luta com a verdade estampada em cada gesto. Honrar compromissos, cumprir a palavra, ter boa vontade são ofensas a quem só compreende atitudes espúrias, pra quem acha natural que um sujeito enriqueça em sucessivos mandatos públicos sem ter que trabalhar. Podendo até chegar ao mais alto posto da nação.

Obedecer à lei da consciência, ter sonos tranquilos, despertar com bom-humor, estar atento ao sentido de justiça e jamais deixar de perceber o canto de um pássaro. E querer bem, querer o bem, sempre o bem. Dos outros e de todos. Eis a minha rebeldia de hoje.

No céu da minha infância – Pequena crônica nostálgica de Ronaldo Rodrigues

Pequena crônica nostálgica de Ronaldo Rodrigues

Quando eu era criança, bem criança mesmo (mais do que sou hoje), ainda morando em Curuçá, interior do Pará, costumava ficar olhando o céu. Hábito de sonhador, que já se revelava naquela época. Era raro um avião cruzar o céu de Curuçá, não porque os aviões não fossem numerosos, mas pelo fato de Curuçá ficar (como ainda hoje) fora das rotas aeronáuticas.

Nas raras vezes em que um avião entrava no espaço aéreo da minha cidadezinha, eu ficava vendo o avião voando alto, lá longe, se perdendo entre as nuvens. E ficava desejando que ele caísse. Eita! Que coisa para um menino pensar! Mas eu explico a partir da próxima linha.

Na minha compreensão das coisas, do ponto de vista de uma criança, o avião era do tamanho que eu o via, diminuído pela distância.

– Se ele cair lá no bosque, por exemplo, vou lá, pego e brinco com ele.

Bela ideia, se o avião fosse mesmo diminuto, do tamanho que ele ocupava no meu campo de visão. O bosque era (e é) um espaço abençoado, cheio de imensas árvores, que ficava bem perto de casa. Eu não imaginava que, se o meu desejo se concretizasse e o avião caísse, o bosque (limitado, por um lado, pelo cemitério da cidade e, pelo outro lado, pelo grupo escolar onde eu estudava) seria reduzido a cinzas. E sobraria um pedaço dessa destruição para a minha casa.

Lembro de me gabar do meu possível brinquedo, sonhando fazer inveja aos outros meninos. Quem teria um brinquedo assim? Alguns meninos, os riquinhos da cidade, tinham avião de brinquedo, mas não como aquele, que voava de verdade, sem o auxílio das mãos.

Estou lembrando disso motivado pelo voo de alguns aviões que vi nos noticiários. Aviões de combate, levantando voo para causar destruição. Coisa de adulto. Prefiro ficar com o avião de brinquedo/de verdade lá da minha infância. O meu pequeno mundo estava livre de guerras e o meu céu só tinha espaço para a inofensiva imaginação de um menino.

& como se fosse um gato no muro – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Arte de Ronaldo Rony

& eu olho indiferente & todos passam & eu tranquilo & eles passam apressados & todos vão em fila para o sepulcro & para a vida & eu olho para tudo isso & eles pisam nos pés dos outros & de si mesmos & eu olho todos despreocupados com a ameaça de um boeing cair sobre suas cabeças & que exploda uma bomba & eu olho para todos como se não visse nada & eles nem me olham devem estar preocupados com o custo de vida & com a bolsa de NY & ansiosos para o último capítulo da novela das 8 & para a partida de futebol & para a final do Big Brother & para o filme de bangue-bangue & uns leem jornais & cospem no chão & eu olho para isso preguiçosamente & estico o corpo sem medo de dilúvios & olho para o sinal & uns mendigos estão por aí & também hippies & punks & argonautas & bucaneiros & faquires & o que restou deles & tudo o mais que se possa imaginar & eu olho despreocupado para tudo & para nada & não sei quem inventou o guarda-chuva apesar de achar uma grande invenção & mil coisas passam por meus olhos inclusive discos voadores & eu olho para tudo sem filtro nem para-raios e bocejo looooooooooooooooooonnnnnnnnnnnnnnnnngamente.

Ronaldo Rodrigues

Nem te conto… – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Tenho um segredo pra contar. Segue aí. Ou não.

Sempre passei a ideia de que sou analfabeto em termos digitais, aquele cara totalmente bronco, desprovido de recursos para manejar qualquer objeto eletrônico. E tenho convencido bem as pessoas do meu entorno. Sou considerado o avô do homem de Neanderthal ou alguém da Idade Média. O simples fato de apertar o play já é uma tarefa complicada pra mim. Games? O máximo que consigo jogar é paciência spider. E só com um naipe!

Pois bem, o segredo que quero contar é que, na verdade, sou um hacker foda pra caralho! Um daqueles caras que podem fazer um avião explodir só manejando um dispositivo tão avançado e tão pequeno que escondo embaixo da unha do meu dedo mindinho.

Ninguém pode saber disso. Vão achar que sou um infiltrado de alguma organização cyberterrorista, de uma milícia virtual, que passo o dia disparando fake News. Nada disso. Não sou esse tipo de hacker. Jamais usei ou usarei meus conhecimentos para o mal. Meu lance é só ser capaz de tal domínio sobre a tecnologia, pelo simples prazer de saber, movimentando um arsenal de gadgets apenas para o meu deleite, coisa que não interfere na vida de ninguém. Mesmo porque, como disse lá no início, isso é um segredo guardado a sete chaves, digo, sete senhas.

Promete não contar o meu segredo? O quê? Você tem uma proposta de trabalho irrecusável? Se eu posso, com o poder que tenho sobre informática, internet profunda, essas coisas, manipular resultados dos sorteios da loteria ou da corrida eleitoral? Claro que sim. Sou capaz de causar um terremoto em qualquer lugar do planeta ou entrar no sistema das bolsas de valores mundiais e fazer o maior estrago só colocando alguns algoritmos pra trabalhar. Mas prefiro mexer meus pauzinhos cibernéticos pra combater as queimadas na Amazônia, pra incentivar as pessoas a tomarem vacina e tal.

Mas pelo jeito, você aí que está trocando mensagens comigo, não entendeu nada. Eu sabia que não era uma boa ideia revelar esse segredo, portanto não o farei. Não insista, por favor. Não está mais aqui quem falou. Fui!

(Esta crônica não tem qualquer vínculo com a realidade e será deletada em 3… 2… 1!)

A ARCA DE NÃO É (Crônica legal de Ronaldo Rodrigues)

Depois do temporal fiquei olhando aquele mar sem fim que a chuvarada tinha plantado.

Eu tinha ficado só no mundo, depois do dilúvio.

Minha preguiça não me permitiu concluir o grande barco que a voz tinha dito para eu construir.

Era um sonho louco que eu tinha toda vez que chovia muito.

Uma voz me dizia para eu construir um barco imenso, onde coubessem muitas espécies de animais.

Uma dessas chuvas poderia demorar muito a passar, alagar e afogar todos os que não estivessem no barco.

Até comecei.

Pedi a um amigo construtor de barcos para desenhar um esquema que eu pudesse executar.

Ele esboçou uma arquitetura naval impressionante, bem mais avançada que as loucuras de Da Vinci e sem aquelas frescuras que Niemeyer adorava inventar.

Julio Verne não teria conseguido imaginar algo tão engenhoso.

Desenhou um barco que, se estivéssemos num filme, poderíamos batizá-lo de Titanic, tal sua imponência e capacidade de navegação.

Eu fiquei de comprar o material e construir o bruto do barco, do jeito que a voz mandou.

Mas dava uma preguiça danada pensar naquilo, aliada ao fato de que a inflação crescia e o dinheiro diminuía.

Sei que se tivesse me empenhado teria conseguido juntar a grana.

E não estaria agora só, no meio do mar.

Vou dormir e tentar sonhar com a voz. Quem sabe ela me diz o que fazer.

Ronaldo Rodrigues

Algumas coisas que não sei – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

O ano chegou e já está indo. É a inexorável marcha do tempo, que não para, como disse Cazuza e, antes dele, o mano Caetano, os nossos avós e nós mesmo constatando que o tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece, citando de novo Caetano. O tempo nos ensina a viver, já que a morrer, agora citando Arnaldo, ninguém foi ensinado e todos morrerão.

A minha coleção de janeiros vai aumentando e chego ao número cinquenta e seis. Não hoje, gente. Deixem as felicitações, ou maldições, para a data correta, ou incorreta: 17 de janeiro.

A vida me trouxe um tantinho de ensinamento e alguma gordura na região da barriga, às vezes impaciência, cansaço de ouvir novidades velhas ditas por gente que se acha esperta. O espírito do meu pai me visita e eu passo a fazer e dizer coisas que ele fazia e dizia e eu não gostava. Isto é apenas um desabafo. Escrevi em voz alta. Prossigamos.

Fico me perguntando o que aprendi e não me respondo, já que a preguiça também se acentuou nos últimos tempos. Na verdade, não tenho resposta, pois creio que aprendi muito pouco. Até respirar não sei direito. Falar, andar, desenhar. Faço tudo isso, mas com pouco conhecimento, apesar de muita coragem. Se a humanidade tivesse necessitado de mim para criar algumas dessas invenções que temos, seria um fracasso. Não teríamos metade dos aparelhos que nos ajudam algumas vezes e nos atrapalham sempre.

A lista das coisas que não sei fazer é enorme, maior que a barba que pretendo cultivar até que venha o suspiro final. Dirigir veículos, por exemplo, nem pensar. A única coisa capaz de se mover que dirijo é bicicleta e, mesmo assim, sem largar as duas mãos. Carro, skate, nave espacial? Nada disso sei guiar. A bordo de um automóvel, até buzinar eu faço de forma ruim, meio desafinado. Mas coloco o cinto de segurança automaticamente, como todos deveriam fazer. Nisso sou bom.

Dos esportes que tentei praticar, futebol é o que mais me causou dor. Sou apaixonado por futebol, não a ponto de ficar numa mesa de bar discutindo isso a noite inteira, mas o futebol me odeia. Experimentei todas as posições e fui ruim em todas. Nem como gandula consegui me destacar. Vôlei, tênis de mesa, baralho? Medíocre em algumas modalidades, sofrível em outras e totalmente abaixo da crítica em todas. Tentei xadrez, mas minha inércia cerebral me deixava sem oxigênio nos miolos. Videogame? O único jogo eletrônico que arrisco é paciência, e só com um naipe.

Entrei na universidade só pra provar que qualquer um pode entrar e o único curso que consegui concluir foi o curso do rio que banha a Universidade Federal do Pará, tragando fumaças mágicas. Fui aluno relapso e amigo aplicado, me formando em amizades que estão comigo a vida toda e me tornei PhD em THC (este último ponto é apenas uma piada).

Sou autossuficiente em amor de família e todas as famílias (desde a primeirona, vinda de meu pai e minha mãe) que a vida me trouxe me deram a certeza de que sou abençoado. Alguém lá em cima gosta de mim e foi generoso.

Acreditei em Deus, rompi com Deus, me reconciliei com Deus e hoje sou amigo desse cara, desses amigos com quem a gente tem intimidade suficiente para mandar se foder de vez em quando, sem que isso abale a amizade.

Até o dia do meu aniversário, dia 17, vou publicar aqui alguma coisa referente ao passar do tempo. Mas não é uma promessa. Pode ser que eu esqueça em questão de segundos. O tempo traz a falta de memória e, agora mesmo, uma pergunta me vem à tona neste meu oceano de pensamentos: do que a gente está falando mesmo?

Imaginário? – Crônica paid’égua de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Diz que José Saramago dirigia seu carro pelas ruas da velha Lisboa quando passou por uma banca de revista e viu, com total clareza de sua intensa miopia, o título de um livro exposto na banca, entre tantos outros livros e revistas e cartazes. Aquele título o intrigou tanto que o fez contornar o quarteirão e estacionar em frente à banca, logo descendo do carro para ter o livro em mãos. Perguntou ao dono da banca, revirou freneticamente todo o material que estava ali e, enfim, desistiu. O livro que pensou ter visto (que ele viu, segundo declarava enfaticamente) tinha o título de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Intrigante mesmo, convenhamos. Saramago não se deu por vencido: “Bem. Já que não existe esse livro, terei que escrevê-lo!”.

Lembrei dessa história – que pode muito bem ser mais uma história desse contador de histórias – porque conheço pessoas que também veem coisas que não existem. Pelo menos não existem do lado de cá da nossa realidade (ou do nosso sonho). Um amigo meu, também dirigindo seu carro, nas altas da madrugada, voltando de seu trabalho, jura ter visto um bar, desses bem pé-sujo, num quarteirão em que costuma passar todos os dias. Jura também que não estava bêbado. Como o cansaço era muito, resolveu checar a existência do bar no dia seguinte. Mas até hoje ele faz o caminho de ida e volta do trabalho e nada de encontrar o bar: “Será que o bar abriu somente naquela noite?”, pensou meu amigo e prosseguiu sua vida, tendo que se contentar com os bares existentes, alguns mais sofisticados e menos interessantes.

Um bom tempo se passou e, ao conversar com uma amiga sobre o tal bar, ouviu a mesma história. Ela se mostrou até aliviada por saber que outra pessoa tinha visto um bar que todos dizem (inclusive os fatos) não existir. Lá vinha ela pelo mesmo caminho do meu amigo quando viu (jura que viu!) um bar que chamou a atenção por ser um estabelecimento bem precário encravado entre vários prédios modernosos. Também retornou no dia seguinte, e em vários outros dias, e não conseguiu encontrar o bar.

Falei aos dois que os ajudaria a procurar o bar, apostaria no fato de ele existir e, se não o encontrássemos, faríamos como Saramago: se não tem o livro que procuro, escrevo o livro. Se não tem o bar…

Foi assim que nossa amizade virou também uma sociedade e o nosso bar é um sucesso, frequentado pelas pessoas mais bizarras da cidade, gente que me faz pensar, de vez em quando, se este bar existe mesmo. Se é que alguma coisa existe…

Prefácio do livro “O avesso do verso, poemas de mim”, da escritora Pat Andrade, que será lançado nesta quarta-feira – Por Ronaldo Rodrigues – Escritor

Momento de celebrar a poesia

Nos tempos atuais, lançar um livro, abrir uma exposição, montar uma peça, fazer um filme e realizar tantas outras manifestações artísticas é uma vitória do nosso espírito revolucionário, de resistência ao mundo de trevas que estão tentando instalar.

Pat Andrade lança hoje seu livro “O avesso do verso – Poemas de mim“. Fui convidado para escrever o prefácio e, me sentindo extremamente honrado, fiz o possível para estar à altura da obra. Vamos a ele e, logo mais, compareçam ao lançamento para celebrar com a poeta e seus muitos admiradores a força e a suavidade de sua poesia.

PREFÁCIO

O estilo é estilete algumas vezes e, outras vezes, pluma. Ronaldo Rodrigues – Escritor

Estender palavras no varal da página em branco: desafio e resignação. Sabe lá a que sortilégio os poetas estão sujeitos. Talvez apenas a vontade de dizer algo, algo que não quer e não pode calar. A palavra pode se diluir no tráfego intenso das cidades humanas, mas, de repente, pode muito bem se esgueirar pela parede do labirinto e ganhar a liberdade. E resgatar um olhar em direção ao nascer do sol para emoldurá-lo, arrebatá-lo ou invertê-lo, trazendo novos significados ou reafirmando seu revolucionário encanto.

Pat Andrade não abriu mão de se aventurar pela escorregadia e íngreme selva das palavras. Nem se omitiu ao contato da tempestade para trazer de lá a aurora. Nas palavras da poeta, o cotidiano se reveste de dimensões épicas, feitas de retalhos de gestos prosaicos e olhares sutis.

Com o radar fincado no presente, sua poesia olha para o passado vivo e traz de lá o futuro. Quando lança seus livros alternativos, rebeldes, outsiders, dá as mãos à poesia marginal dos anos 1970 (a geração mimeógrafo) e desenvolve um diálogo com as estrelas do infinito, envolvida em engajamento, deleite, relaxamento e compromisso. Ah, sim! Sem esquecer a ironia e a suavidade.

Tudo o que cabe no coração, na mente e no espaço sideral de uma lauda vem à tona e se (re)afirma inquieto, corajoso, urgente e necessário. Os seres que poesificam a vida pedem passagem, com o verso diverso, controverso e divertido de Pat Andrade nos conduzindo. Brindemos! Mais uma taça de ambrosia, no templo deste tempo. Taça de curare e cura, onde a gente se embriaga e transborda.

Fiquem com a poeta, aceitem o convite. O Avesso do Verso – Poemas de mim. Pra vocês.

Verônica, a submersa (conto firmeza de Ronaldo Rodrigues, ilustrado por Ronaldo Rony)

Quando Verônica chegou em casa eu era uma criança a mais numa família de noventa e oito irmãos. Naquela cidade eram comuns famílias numerosas, que envelheciam muito cedo.

Verônica, quieta, tranquila, limitava-se a permanecer no fundo do tanque que lhe fora destinado. Comia pouco, apenas algumas algas que brotavam nas paredes do tanque. Parecia resignada, mas havia algo de resoluto em seus movimentos. Uma silenciosa determinação. Uma calma revolucionária, que tanto afligia quanto encantava. Sua diáfana presença a tornava forte, intacta.

Verônica gostava da minha companhia. Nos entendemos bem desde o primeiro olhar. E sem trocar palavras. A cumplicidade de nosso silêncio nos bastava. E nos fortalecia.

O silêncio selou um pacto entre nós. Eu arquitetei um plano para tirá-la daquela casa onde aprisionavam lindas mulheres em tanques frios e não davam a mínima atenção. Deixavam lá, no fundo do quintal, como prova de algo que eu não conseguia compreender.

Verônica era altiva e simulava distância de sua condição de prisioneira. Quando eu entrava para dormir, ficava imaginando Verônica entre as pedras do tanque. Linda. Enigmática. Verônica.

Finalmente, chegou o dia de realizar o plano. Acordei bem cedo, antes de todos. A casa era enorme e foi trabalhoso atravessá-la no escuro, desviando de tantas redes.

Eu estava fugindo de casa levando Verônica num aquário gigantesco, roubado no dia anterior. O aquário, preso a uma plataforma com rodinhas, era frágil, mas daria para chegar até o rio.

Rapidamente, Verônica foi remanejada do tanque para o aquário. Tudo aconteceu conforme o plano e chegamos ao rio antes que dia clareasse. Eu estava esgotado pelo esforço de empurrar aquele aquário imenso pelas trilhas tortuosas da floresta. Verônica me animava com seu olhar completo, inquebrantável.

E foi com o olhar que Verônica me fez compreender que nossa história de amor era impossível. Eu não poderia acompanhá-la, por não poder viver dentro d’água. Ela não poderia ficar comigo, por não poder viver fora d’água. Era uma barreira definitiva. Eu precisava compreender.

E compreendi. Verônica foi lançada ao rio e mergulhou bem fundo até desaparecer. Antes, acenou com os olhos, que transbordavam lágrimas iguais às minhas. A lembrança de seus olhos ficou comigo pelo caminho de volta para casa e por toda a minha vida.

Outras mulheres foram morar no velho tanque, ao longo dos anos. Belas e silenciosas como Verônica, que também precisavam de liberdade. Mas eu já estava velho demais para pensar em libertá-las. Como disse no começo desta história, envelhecia-se muito cedo naquela cidade.

Ronaldo Rodrigues

Meus amigos de Liverpool – Crônica (memória fictícia) de Ronaldo Rodrigues – Republicada pelos 41 anos da morte de Lennon

Crônica (memória fictícia) de Ronaldo Rodrigues

Tudo começou em 1963, quando conheci o John. Ele era meio maluco, falava muito e estava sempre a fim de fazer alguma coisa: montar uma banda de rock, formar um grupo de apoio social ou reunir uma galera boa para invadir um pub e roubar toda a cerveja. Pois foi uma banda que nós resolvemos montar.

Ele apareceu uma vez com um cara que tocava muito, o Paul. Depois, o Paul trouxe outro cara que tocava demais, o George. Tínhamos então eu no vocal, John na guitarra base, George na guitarra solo e Paul no baixo. O Pete, que era nosso baterista, não ficou muito tempo e logo apareceu um tal de Ringo, que já desfrutava de um certo sucesso.

Fizemos umas pequenas turnês, já angariávamos algum prestígio e muita gente curtia nossas músicas. A maioria era de minha autoria, mas o John e o Paul brigavam tanto por serem as estrelas principais que abri mão da minha participação e deixei os dois assinando as músicas, mesmo que várias delas fossem minhas.

Gravar um disco ainda era um sonho muito distante, mas entrou em cena outro cara, o Brian, que surgiu atraído pelo sucesso que fazíamos no pequeno circuito em que transitávamos. Ele já tinha todos os macetes e sabia, como se diz hoje, o caminho das pedras. Antes que o Brian tomasse conta do grupo, eu resolvi sair. Era muita correria: compor, ensaiar, gravar, cumprir a exaustiva agenda de shows… Ufa! E, também, a minha timidez não combinava com o estrelato. A vida pacata que levei desde então foi o suficiente para mim.

Voltei para minha pequena cidade e segui minha carreira de ilustre desconhecido, bem mais quieta do que a vida de celebridade. Aquela banda se tornou mesmo um sucesso mundial e eu passei a colecionar recortes de jornais com shows e entrevistas daqueles amigos que eu havia deixado em Liverpool e que logo depois se mudaram para Londres. Jamais revelei a alguém minha ligação com a banda.

Depois que os rapazes conquistaram o mundo, a banda se dissolveu. Os fãs diziam que o fim foi cedo, que ainda havia muita música boa para vir à tona. A maioria dos fãs culpava a nova esposa do John pelo fim. Outros diziam que o Paul queria a liderança a qualquer custo e isso desgastou a relação. A minha opinião, que não foi pedida por ninguém, é que as coisas boas, para terem existência completa, precisam mesmo acabar. Começo, meio e fim: esta é a fórmula.

Meus amigos de Liverpool continuaram fazendo sucesso em suas carreiras solo, o tempo passou e o período em que fiz parte daquela banda ia ficando nos desvãos mais recônditos da memória. Até que, certa manhã, ao abrir o jornal, fui despertado do meu resto de sono pelo barulho ensurdecedor de vários tiros e a manchete que jamais esperei ler algum dia, a notícia crua, a frieza do assassino. As lembranças voltaram dolorosamente: os óculos redondos, o humor sardônico, as passeatas pela paz mundial. E aquela data ficou para sempre sangrando em mim: 8 de dezembro de 1980. Mas quem vai acreditar nisso?

*Republicada pelos 41 anos da morte de Lennon.

Dois minutos apenas – conto de Ronaldo Rodrigues

Estou em meu quarto, o lugar em que passei a maior parte da minha vida. Na mesa à minha frente, numa caixinha de música, uma bailarina repete suaves movimentos mecânicos.

O quarto fica no segundo andar da casa. No térreo, desenrola-se uma grande festa. É o casamento de meu irmão mais velho.

** ** ***

Meu irmão é mais velho por um pequeno espaço de tempo. Dois minutos apenas. Sempre mais rápido que eu, essa foi sua primeira vitória das muitas que se seguiram. A vitória de maior impacto acontece neste exato momento, nos compartimentos do térreo e nos jardins, por onde os convidados se espalham.

A festa deve estar efervescendo. Meu irmão é considerado, com total justiça, o portador da alegria. Certamente, está sorrindo para todos e abraçando aquela que será sua para sempre. Ela deve ostentar o seu melhor sorriso, já pensando em atender aos pedidos que fazem os convidados.

** ** ***

Os dois minutos que me separam de meu irmão são um abismo intransponível. Sua vida sempre foi intensa, rodeada por muita gente, pela turma do colégio e da nossa rua, pelo círculo familiar, no qual, com seu temperamento jovial, ocupava o centro das atenções. Enquanto eu, sombrio e esquivo, passei a vida confinado neste quarto, mergulhado em mim mesmo, longe de todos e em total silêncio, assistindo na distância a simpatia de meu irmão, escondido para não ser ofuscado pelo brilho de seu carisma.

Quando meu irmão me revelou sua decisão de casar, chegou mais radiante do que nunca e logo percebi que vinha anunciar mais uma vitória. Falou de sua noiva, linda, serena, de inteligência invulgar, tão bem-humorada quanto ele e que tinha uma paixão extremada pela dança.

** ** ***

Neste momento, imagino, a festa atinge seu ápice. A feliz bailarina se apronta para atender aos insistentes pedidos de seus convidados. Irá dançar como só ela é capaz. Com a mesma graça que me prendeu a atenção quando a vi pela primeira vez, exatamente dois minutos depois que meu irmão a viu.

** ** ***

Dou corda na caixinha de música, coloco algumas balas no revólver e o aponto para o ouvido direito. Fico olhando a caixinha de música soprando vida na bailarina até que a corda acabe.

Ronaldo Rodrigues

Daqui a pouco: pequena crônica de Ronaldo Rodrigues para sexta-feira à noite

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Daqui a pouco vou levantar desta cadeira, abrir a janela e gritar para o tráfego que corre lá embaixo, na avenida, que já raiou a liberdade no horizonte do Brasil.

Daqui a pouco vou afrouxar a gravata, arregaçar as mangas, abrir a porta com um chute e sair correndo até a rua, por todas as ruas, em busca do bar perfeito, que é exatamente o imperfeito.

Daqui a pouco vou adentrar o paraíso e o purgatório onde me aguardam as piadas mais infames e grosseiras, lado a lado com os comentários mais sagazes e coerentes.

Daqui a pouco vou gozar o direito de ir e vir aos botecos & bares & valas & esgotos & espeluncas & inferninhos.

Daqui a pouco vou usar minha liberdade condicional, com a condição de voltar para a prisão totalmente embriagado.

Daqui a pouco as borbulhas de cerveja que nascem no fundo do copo irão explodir no meu cérebro justamente no momento em que eu der a tacada mortal na bola de bilhar.

Daqui a pouco vou pegar o regime semiaberto, escancarar o regime, fugir para sempre de tudo e de todos e, na segunda-feira, me resignar e voltar para a prisão do escritório.

Daqui a pouco, bem pouco, vou acionar a lista dos meus contatos para dar início à grande rebelião. Mas só daqui a pouco.

Diante do maior do mundo – Crônica poética de Ronaldo Rodrigues

Foto: Dyego Bucchiery

Crônica com jeito de poema de Ronaldo Rodrigues

Ficar de frente para o rio, simplesmente o maior do mundo, enquanto outro rio e outros rios se desenvolvem ao meu redor.

Nesse rio e nesses rios, tudo vai se diluindo, se recriando. Certas dúvidas surgem, outras certezas emergem, outras naufragam, conflagram, se confrontam, se confraternizam, se eternizam, se volatilizam.

Esse rio é minha rua, essa rua é meu rio, é meu quintal. Aquilo que é líquido, mas o único elemento que se manterá sólido quando tudo se esvair.

É nesse rio que coloco, como barquinhos de papel, minhas ideias para navegar, singrar outros mares e sangrar por outros becos, desaguar na foz daquilo que para mim ainda é nascente.

E me deixar isolado nas ilhas de mim, nos desertos de mim, nas teias do destino que me desatinam. O rio velho e o rio menino. Eu velho e eu menino.

Sou ciente e consciente da força desse rio. Sei que quando ele resolver invadir mesmo a cidade, as cidades e o mundo, não haverá muro de arrimo a conseguir detê-lo. Não haverá utopia, ideologia capaz de segurá-lo.

Não seremos outra coisa se não canoa, cada uma buscando seu refúgio. A poucos será dado o privilégio da calmaria, do sentir-se salvo e do recomeço.

Agradeço pelo grande e pelo pequeno que ocorrem em minha vida. O que percebo e o que não. O que me percebe e o que não. Aqueles que se foram, aqueles que virão.

Diante do maior do mundo eu me junto à grandeza de suas águas e me sinto grande também. E me sinto pequeno também. Obrigado, meu rio. Amém.