Lá se vai mais um ano -`Por Marcelo Guido

Por Marcelo Guido

Hoje, 31/12 de 2019, fecharemos mais um ciclo, mais uma década, mais um marco imaginário no qual sempre nos colocamos, teremos mais tempo.

2020 está na nossa porta, a turma da Austrália, que nossos colegas “terraplanistas” insistem em dizer que não existe, vão comemorar primeiro, como sempre. Esses caras, se existirem (risos) devem ser uns privilegiados.

Vem aí mais umas quatro estações de novo, mesmo que sejam apenas singularidades terrenas, ou apenas muito sol e muita chuva, como se tem sempre por aqui.

Vem aí mais oportunidade para se reconstruir, para sermos melhores, para mudarmos. E se não deu neste ano, que tenhamos força para conquistar o objetivo no ano que vai entrar.

Que tenhamos tempo para usufruir, para abraçar quem sempre nos quer bem, para andar na chuva e sorrir como crianças, que os interesses mundanos e hostis não nos façam perder frações preciosas de existência.

Que sejamos mais corteses, mas menos submissos. Que nossas ambições não ultrapassem nossa moralidade e quem se aproximar só nos traga positividade. Procuremos o sucesso, mas nunca em troca da infelicidade alheia.

O livro da vida que cada um escreve vai ganhar novos capítulos. Tristezas e decepções por decreto devem ficar em 2019. Não levemos nada de ruim para os próximos 12 meses. E que nossas conjecturas humanas só nos levem para o lado do bem.

Serão mais 365 batalhas que serão vencidas com coração, que o ano novo traga força para matar quantos leões aparecerem e que nada, mais nada mesmo, nos tire a capacidade de tentarmos ser felizes.

Se 2019 não foi bom, comemore, já tá acabando, se foi , comemore mais ainda.

Eu do fundo do coração desejo um ano não menos que espetacular para todos, que se tivermos que chorar que seja de alegria, e que nossos desafios se tornem conquistas. Nunca esqueçamos que somos responsáveis pela nossa própria história.

E parafraseando “Mar de Gente”, “ brinde casa, brinde a vida, brinde amores, brinde a família”.

Feliz Ano Novo.

*Marcelo Guido – Jornalista, Pai da Lanna e do Bento e Maridão da Bia.

Natal – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Quando a saudade sobe os degraus do tempo
E vem sentar no mesmo sofá em que Ontens, eu desenhei Amsterdã.
Agora é tempo de balançar os lençóis para que caiam as digitais.
Enquanto os relógios cruzam por várias vezes os anos e os meses, em por várias vezes eu vi Abril se espreguiçar na varanda.
Agora é tempo de sacudir as toalhas para retirar as migalhas de suor e shampoo que cicatrizaram nela.

É tempo de varrer os desencontros…
Por ao sol os desencantos.
Espreitar as lembranças que chegam pelo elevador.
Beliscar as cicatrizes que te mostram saudades caladas.
Voltar ao espelho para olhar de novo os olhares ali espelhados.
Polir os sorrisos para uma nova geração de vida.
Depois sentar a cabeceira de qualquer lugar.
E ver o horizonte se continuar no horizonte.

Em dúvida se teremos a companhia do Sol ou da lua, desenhar… desenhar …
Qualquer coisa azul, imensamente azul.
Pode até chama-la de você… ou dizer-lhe… Eu…
Abrir as portas, as janelas, os portões, as vírgulas, o ponto de exclamação, ruídos de trovões, e por fim silêncios…
Muitos deles são pequenos abismos onde reside coberta de limo, indiferente, a neve, e ao calor sufocante, toda a saudade que com você já teve intimidade.

Poderíamos pensar que foram clonados, um do outro…
Você não deixou ela olhar com paixão seu coração.
Por isso caminhe… volte ao início… desenhe… pode perguntar ao vento… que desenhar…
Ele dirá… A mim!
Ele rodopiará… em torno de seus pensamentos.
E se afastará espremendo nele seu desejo de ser feliz.

Quinta-feira a dor entrará no trem e partirá…


Eu espero o Natal para desenhar libélulas sob a luz descomunal da sua ausência.

*Do livro de Contos “Defronte a Boca da Noite moram os dias de Ontem’ – Rumo Editorial – Luiz Jorge.

Nostalgia e Luz – Crônica de Natal de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Hoje de manhã me vi subitamente abatido por um ataque de nostalgia.

No meu caminho para o trabalho observei um homem ateando fogo no lixo. Tinha uma vassoura nas mãos e cuidava com atenção para que as chamas não se espalhassem sobre a calçada. Aquele ato, pensei, era um resquício da herança cultural indígena tão presente em nossa vida cotidiana.

De repente me veio a lembrança do tempo que Macapá caminhava lenta, em sua vivência pacata sob o sol do equador, quando vizinhos se respeitavam e eram amigos; quando cada um sabia das necessidades do outro e ninguém hesitava em pedir uma xícara de óleo, um pouquinho de farinha, um teco de colorau, de pó de café ou de pimenta-do-reino, ou quando trocavam gentilmente deliciosos pratos de comida, feita com abundância para a família.

Lembro que às vezes, pela manhã, minha mãe varria as folhas do cutiteiro que sombreava a frente de nossa casa e fazia a sua fogueira no lixo amontoado. Ele também era o alvo dos moleques da baixada que quebravam nossas telhas com as tentativas de apanharem os frutos jogando pedras e paus na árvore. A pequena fogueira fazia pouca fumaça, mas ia se juntando com a fumaça da vizinha e da outra vizinha e da outra vizinha. E ninguém se incomodava porque a fumaça era fugaz, se dispersava com o vento vindo das marés do Amazonas, lá adiante.

À noite trafegava em sua beleza estelar na escuridão. Crianças brincavam de roda à boca da noite e adolescentes gastavam suas energias na brincadeira de “pira” ou de “bandeirinha”, sob a luz da lua ou das lâmpadas pálidas dos postes da CEA. E, quando a luz se apagava, íamos até mesmo ouvir dos mais velhos as histórias de assombração, pregar peças de visagens aos poucos passantes da noite ou observar os satélites que cruzavam os céus do equador entre as estrelas.

Naquele tempo meu pai deixava aberta a porta de casa para que eu e meus irmãos não incomodássemos seu sono, certo de que ninguém ousaria abri-la para roubar. Era um tempo em que bastava a presença de um cãozinho para o possível gatuno se escafeder. E até as criações de galinhas e patos não eram protegidas da ousadia das “mucuras velhas” de plantão, que roubavam os animais para fazer tira-gosto de suas bebedeiras noturnas. Ah! E como eles sabiam fazer isso. Há casos em que roubavam a própria casa.

Os quintais não tinham cerca, tinham caminhos de atalhos, tinham campinhos, leiras de verduras e árvores frutíferas. As ruas eram tão nossas que ao fim da tarde viravam campos de futebol, em jogos que só terminavam ao anoitecer. Cada um respeitava seu cada qual: o dono da bola podia ser ruim no jogo, mas era o dono, e pronto. Ninguém furtava a merenda do colega nem caderno nem brinquedo.

Ainda que eu não queira culpá-la, mas depois que a televisão chegou nada mais foi igual. A molecada ia assistir a programação na casa do seu João de Deus onde havia o único aparelho de TV no bairro. Seu João colocava um vidro azul no vídeo para que as cenas das novelas “Meu Pedacinho de Chão” e “Vejo a Lua no Céu” parecessem mais coloridas. Doce ilusão! E dava o exemplo de patriotismo acompanhando em pé com a mão no peito o Hino Nacional, no fechamento da programação, por volta de meia-noite. O sagrado jantar familiar ficou mais apressado porque a novela ia começar e todos iam para a sala assistir aos folhetins de Janete Clair.

Mas ainda que brote da minha memória, eu não vejo com saudade essas lembranças. A saudade é mais profunda, é mais poética e mais densa que a nostalgia, que é uma palavra originária do grego e significa “regressar”, “voltar para casa”. E nesse regresso emocional, observo que as pessoas quase já não varrem as folhas que caem das árvores na frente de suas casas, nem fazem mais fogueira com medo de denúncias de vizinhos aos órgãos ambientais e por acharem que é um trabalho exclusivo dos garis da Prefeitura. E assim, as fumaças que eram como bandeiras ou cantos de galos se espalhando, já não enfeitam mais as manhãs ensolaradas da minha cidade. A solidariedade dos vizinhos foi substituída pela individualidade de cada morador aprisionado em suas portas e muros gradeados, pelo medo tácito da violência urbana.

As pedras jogadas nas mangueiras e cutiteiros se transformaram em duras palavras atiradas até em quem não tem telhado de vidro. A energia vital dos adolescentes é gasta nas baladas, quando longe dos pais, muitos enveredam pelos caminhos das drogas. As antigas histórias de assombração agora são contadas pelo Rádio e pela TV nos noticiários da violência no trânsito, brigas de gangues e mortes cruéis por motivos fúteis. O olhar real da juventude que acompanhava o curso dos satélites no céu escuro da noite tornou-se um virtual olhar, onde o romantismo de outrora foi trocado pela racionalidade dos programas dos computadores e celulares on line na Internet e pela comunicação ingênua das redes sociais.

Ah, os ladrões… Desde que mundo é mundo temos ladrões, prostitutas e assassinos e os seus trabalhos diferenciados sob a Lei, porque não há sociedade sem crime, ainda que teimemos em construir nossa utopia. Os ladrões de um passado (nem tão longe assim) eram de patos e galinhas, que ao menos não sujavam o nome de nossa terra e nem nos envergonhavam nacionalmente com negociatas políticas e atos de corrupção explícita.

Nem se comparam com muitos da atualidade que usam a pele de cordeiro para, como lobos ferozes, roubar o dinheiro público, enriquecer às custas do povo e trair cinicamente os que neles confiaram pelo voto. Naquele tempo as cercas inexistentes nos quintais davam a todos a liberdade de fazer seus próprios caminhos, de realizar seus atalhos e se apressar para a vida que viçava lá fora, principalmente pelo caminho da educação, pulsante nas escolas públicas, onde os professores eram mais que isso: eram educadores e amigos. Ensinavam também, como no ato do seu João de Deus em frente à TV ouvindo o hino nacional, a respeitar os valores da Pátria, apesar da era de obscurantismo da ditadura militar.

Hoje olhamos para os costumes sociais e familiares em mudança e nos molhamos de nostalgia. Tudo mudou com os avanços tecnológicos, que tanto facilitam a nossa vida. E tudo começou com a televisão, essa invenção incrível, pois quando a luz apagava na hora de um programa ninguém mais conversava. A família ia para o pátio da casa olhar a rua espelhada de chuva, e uns se perguntavam aos outros: será que foi geral? Será que ela vai voltar? Já pensou? Ficar sem TV o resto da noite… Afirmo, pois, com certa tristeza que foi aí que começou a morte do diálogo familiar.

E as ruas? Ora as ruas. Ruas de tempos abençoados que não testemunharam atropelamentos fatídicos, apenas quedas de bicicleta ou boladas na cara de algum passante desatento. Ruas da minha cidade transformada, ruas que hoje absorvem o sangue dos mortos diariamente em cada esquina, ruas não mais tangidas pelos protestos do povo inconformado, ruas esburacadas pela angústia no rosto da juventude sem emprego, ruas que se tornam rios de chuva e trazem doenças inevitáveis, ruas que lêem os passos cansados dos que tem pouca mobilidade física, ruas escuras, ruas das violências noturnas, ruas dos loucos, dos bêbados, das putas, dos travestis e dos moralistas de plantão.

Mas elas são também as ruas dos sonhadores como nós, que tentamos enfeitar a madrugada e trazer a música e o sol no cavalo alado da nostalgia, para iluminar um mundo futuro ausente de dor e de vergonha, mas cheio de luz e de perdão.

Não deixemos, pois, por isso mesmo, a luz ir embora dos nossos corações.

É Natal (Belíssima crônica de Natal de Alcy Araújo Cavalcante)

É Natal

Por Alcy Araújo Cavalcante
(1924-1989)

Sabeis que é Natal. Não é necessário que eu diga isto. O anúncio da renovação do milagre do nascimento de Jesus está nesta música que vem de longe, que desce do céu e flutua, em pianíssimo, em torno de nossa alma e toca de leve o coração dos homens. O milagre está, também, nesta luz que vem do alto e ilumina os espíritos, está no riso das crianças, na oração da rosa, na lágrima dos que sofrem, no canto dos pássaros, no sussurro da brisa, no murmúrio do rio e na saudade de minha mãe rezando.

Tudo é tão bonito que as lágrimas de dor e de saudade de infâncias inexistentes são poesia pura. O belo é tanto que não resisto à vontade vesperal de anunciar que é Natal, antes que a noite chegue, antes que seja oficiada a Missa do Galo, antes que dobrem os sinos na igreja comunicando a vinda do Messias.

Tudo é luz em torno do mundo. As trevas não prevalecerão quando cair a noite acendendo mistérios. As vozes dos anjos, o coral dos pastores de Israel, a lembrança dos Reis Magos estão presentes. Há perfume. Os turíbulos de Deus espargem incenso e mirra, porque é Natal no mundo e renasce a esperança no cumprimento da palavra dos profetas.

Mais uma vez é Natal!

Chegam as vozes da infância perdida nos caminhos e o coração enxuga saudades. Os sinos, à meia-noite, vão bimbalhar lágrimas distantes. Vêm de presépios inanimados e risos perdulários afogam angústias cotidianas. A dor se esconde por trás de mágoas indormidas e as horas se ocultam nos relógios, para que a poesia do Natal não passe e o musical minuto dure mais um segundo na eternidade deste dia.

É Natal!

Reza a minha alma de joelhos pelo menino sem brinquedos que perdi, na minha pobreza de sempre.

É Natal!

Repetem meus arrependimentos nas estradas.

E uma alegria imensa absorve as tristezas que fabriquei no mundo. Um sentimento infinito de bondade apaga as dores que construí durante o meu ontem irreversível. Uma ternura imensa acende felicidades futuras, porque é Natal, neste sábado do mundo. Há um polichinelo no bazar. Pertence ao menininho doente que Jesus chamou para o seu reino. Uma boneca abandonada já não chama mamãe para a garota loura que um anjo levou pela mão naquela manhã de sol. Mas outros brinquedos coloridos fazem ciranda em torno das árvores de Natal e milhares de crianças são felizes nos lares cristãos de meu país sem coordenadas. Enquanto isto, Deus sorri, pleno de Amor, por trás da Eternidade.

Fonte: Blog da Alcinéa Cavalcante

A Convenção – lindo conto de Natal de Fernando Canto

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Conto Natalino de Fernando Canto

O Centro de Convenções daquela moderna cidadezinha no interior da floresta era o palco de um evento religioso bianual da cristandade, de grande importância para nós, teólogos do Novo Olhar.

Após o grande processo de destruição ambiental do planeta ficamos espalhados pela terra sofrendo a ansiedade de vê-la reconstruída e fazendo a nossa parte. Levávamos aos mais necessitados uma nova forma de encarar o mundo e uma nova esperança para evitar os sofrimentos humanos causados pelos incontáveis desastres ecológicos ocorridos até em lugares onde nem se cogitava que eles pudessem acontecer.

Cientistas constataram a grande obviedade que a desgraça ocorrera mesmo devido a ganância dos detentores do capital internacional e o excesso de poder dos países ricos que tiravam a vida de milhões de pessoas pelo mundo afora, sem contar as vítimas de guerras causadas pela intolerância religiosa. Éramos poucos, mas a seriedade de cada um de nós fazia a diferença, aprofundada em detalhes interpretativos dos cânones universais contemporâneos e nos santos ensinamentos de Jesus Cristo.

Todos se esforçavam muito, participando de seminários e congressos pelo país, porque grande parte dos conhecimentos da nossa religião havia desaparecido ou queimado no mundo todo.

Ali, ao lado do grande evento, muitos acontecimentos ocorriam: feiras, espetáculos e exposições, como a de novas descobertas tecnológicas e de máquinas que respondiam perguntas sobre metempsicose e a natureza dos espíritos. Livros curiosos eram lançados e relançados virtualmente em telões, inclusive aqueles considerados sagrados que por séculos vinham intrigando a inteligência dos sábios com seus mistérios herméticos. Tumblr - AliensHavia debates intermináveis que abrangiam desde o pensamento de filósofos gregos sobre relatos de povos extraterrestres a absurdos que a contemporaneidade não conseguiu mudar.

Eu participava pela primeira vez desse encontro, e já dera minha palestra sobre a existência de Papai Noel Redivivo no Novo Mundo Amazônico e meu testemunho sobre isso em outro tema da programação, portanto estava livre de compromissos. Mas os debates continuavam em outros níveis. noelE eu fui guindado meio sem querer – e curioso – a assistir a um deles promovido pelos neoperipatéticos de Rinha, um convento de uma ordem sacra europeia. Chamou-me a atenção o denominado “Aristóteles e o Paraíso”, cujo tema central era sobre a localização geográfica exata do Jardim do Éden. Havia outro, muito singular, chamado “Dançarinos Aristotélicos” no qual se discutia sobre quantos anjos poderiam dançar ao mesmo tempo na ponta de uma agulha. Os grupos de discussão seguiam um sacerdote-mestre sob as sombras das árvores na praça principal da cidade.

Aristóteles gozava de grande popularidade entre os sábios. Sobre ele corria a lenda da sua imensa alegria quando pôs as mãos em uma das penas verde-claras do anjo Gabriel, descoberta dentro de uma arca envolta em tafetá. Um grupo dizia que a partir dessa pena teria o filósofo reconstruído a pessoa do arcanjo. O grupo oposicionista, porém, suspeitava que a pena fosse proveniente da cauda de um periquito de asa branca, o que proporcionou um grande exaustivo debate entre os participantes. Após a discussão chegaram ao consenso de que a pena teria sido arrancada da asa do anjo na ocasião do seu aparecimento à Virgem Maria para anunciar a imaculada conceição. Presumiram que a própria Virgem Maria embrulhara a pena em tafetá, de modo que ela viesse a ser uma das sete maravilhas do mundo teológico. Para eles Aristóteles teria sido contemporâneo de Jesus.

Outro interessante tema de reverência religiosa que vi nesse encontro foi a respeito da unha de um querubim. Entretanto, o que chamou mais a atenção de todo o congresso bianual e que gerou a maior lotação no Centro de Convenções foi a maravilhosa descoberta arqueológica de um ataúde com acabamento em ouro e prata, onde estava ainda intacta, uma das costelas do Verbo feito carne.

Acho que aprendi muito com essa viagem. Os arqueólogos mostraram outras peças de grande valor teológico advindas de descobertas em expedições perigosas. Não era fácil expor seus nomes e conceitos profissionais e terem que viver em um mundo de fanáticos e ateus. Eles sabiam que como cientistas e religiosos ao mesmo tempo teriam dificuldades de mostrar as relíquias à sociedade e serem somente aplaudidos e reconhecidos.

Nesse meio os vulcões da vaidade explodem rápida e facilmente, e sempre há um lado invejoso e descontente. Mas não deixavam de demonstrar certa genialidade e coragem para afirmar suas convicções e prová-las. Foi muito difícil para eles, segundo seus próprios relatos, mas conseguiram encontrar um dos raios da estrela de Belém, que foi quebrado e guardado por um dos três reis magos que foram adorar Jesus em uma manjedoura, assim como a pequena garrafa de vidro, dentro da qual havia notas musicais, que teriam sido entoadas mais tarde pelas abelhas do Templo de Salomão, de acordo com as antigas escrituras não oficiais.

Mas juro pelos santos sacramentos que de tudo o que eu vi na convenção nada me impressionou mais do que as descobertas. Cometi o pecado capital da inveja, pois não consegui parar de imaginar o rei Baltazar em estado de delírio gozoso ao ver a epifania da estrela de Belém, ao adorar o salvador do mundo e a usar sua arte mágica para quebrar um raio e guardá-lo.
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Era tempo de natal e eu tinha que voltar logo para trabalhar nos preparativos da festa para as crianças órfãs da minha vila amazônica ainda em lenta recuperação ambiental. Elas estavam tão ansiosas como eu, ainda que não tivéssemos brinquedos. Contávamos apenas com a esperança e a bondade do Papai Noel. Fui embora com a humildade que cabe a um pobre missionário, saindo da civilização da cidadezinha para minha aldeia de crianças pobres e estropiadas, martelando o cérebro sobre como conseguir presentes para elas quando me deparei com um negro alto, vestido de túnica e turbante. Estava envolto em uma aura radiante.

Entregou-me um objeto dourado e disse: – Imagina e realizarás. E sumiu. Era Baltazar, o mago rei e o verdadeiro Papai Noel Redivivo das minhas pobres crianças que me dera a chave de um tesouro: um pedaço do raio da estrela-guia. Horas depois já refeito da situação olhei para as estrelas. Todas eram pequenas e brilhantes, e delas caiam ao meu redor centenas de brinquedos. Só pude exclamar: – Bendito é aquele que vem em nome do Senhor! Hosana nas Alturas!

Discos que formaram meu caráter (parte 36) – “Metallica (Black Álbum – 1991)” – Por Marcelo Guido

Por Marcelo Guido

Muito bem moçada, estamos de volta neste obscuro universo dos discos, nesta nave muito louca com este viajante que vos escreve de algum ponto distante da galáxia. Inebriantemente posso dizer a vocês aumentarem o som que hoje é dia de porrada. Com muita honra que eu trago para vocês:

Metallica (Black Álbum) palmas pra ele.

Corria o ano sagrado de 1991, como já disse algumas vezes o ano que todos os deuses da boa música estavam do lado das bandas e providenciaram uma safra imensa de clássicos. 1991 é realmente um marco na história dos bons discos.

E o Metallica foi contagiado por essa nevoa de inspiração e veio com essa bomba (no ótimo sentido) de boas canções.

Já aclamados como uma super banda no universo do Metal e consolidados com uma multidão de fãs no mundo todo, os caras do Metallica já tinham provado a todos que o som pesado era a praia deles, os excelentes “ Kill Em Mall” (1983), “ Ride The Lightning” (1984), “Master Of Puppets” (1986) e “…And Justice For Hall” (1988) não deixavam dúvidas que os caras de San Francisco não brincavam em serviço quando o assunto era bater cabeça.

Mas como continuar arrebentando nas paradas e tendo uma continuação no bem sucedido trabalho sem parecer repetitivo? Talvez com essa dúvida na cabeça os caras voltam ao estúdio para preparar um novo disco. A atenção tinha que ser milimétrica, o metal já começava a ser ameaçado pelo grunge de Seattle e as bandas daqueles caras sofridos com blusa de flanela também já estavam alcançando o mainstrean , o recado era claro, quem não tivesse a coragem de tentar, iria ficar para trás.

Cartas na mesa, opções claras, ficar no mundinho metal e usufruir sabe lá por quanto tempo da confortável posição já conquistada ou partir para novas águas rumo a um desconhecido caminho.

E assim, no dia 12 de agosto de 1991 , os caras surpreenderam os fãs e o mercado da música deixando de lado o Thrash Metal e se colocando de vez no Heavy Metal .

Vamos ao que interessa e dissecar logo esse míssil sonoro:

O disco começa com a sombria “ Enter Sadman”, uma explanação sobre os sonhos ruins. “ Sad But True”, nem todas as verdades são boas. “ Holier Than Thou”, faça sempre uma autocrítica, você não é melhor que ninguém , “ The Unforiven”, até onde podemos culpar alguém que sempre foi sabotado pela vida. “Wherever I May Roan”, opção de ser só, sem compromisso. “Don`t Tread On Me”, para assegurar a paz é preciso estar preparado para guerra. “ Through The Never”, temos fome de estar vivo. “Nothing Else Matters”, nada mais importa, somos o que somos. “Of Wolf and Man”, somos nosso próprio lobo, sempre vagamos. “ The God That Failed”, siga o Deus que falhou. “ My Friend Of Misery” a diversão de um homem é o inferno do outro. “ The Struggle Within”, procure sempre o melhor dentro de você.

Antes de tudo um disco que abre portas, medalha de ouro 18 quilates na categoria “foda”.

Maior sucesso da banda, disco de rock mais vendido de todos os tempos, a banda nunca vendeu menos de 1000 cópias por semana desde o seu lançamento. Todos os 5 singles lançados ficaram entre os 100 mais vendidos da Bilboard.

O que isso quer dizer? Que realmente os caras fizeram bem em se reinventar e quem não tem coragem está fadado à mesmice. Os caras realmente tiraram o pé, mas fizeram um disco ruim? Porra nenhuma.

Confesso que no começo estranhei , mas tive que aceitar e dar o braço a torcer pro trabalho dos caras. Incrivelmente como este álbum me tocou. E sei que muitos começaram a escutar o Metallica depois dele. E se até aquele teu primo esquisito fã de Duran Duran passou a escutar Metallica, paciência.

Foda-se a polícia Headbanger, sim este disco marcou o fim para muitos fãs, mas o começo para milhares. E o Metallica provou ser uma banda autêntica, sem ligar para opinião de ninguém.

Vida Longa ao Heavy Metal.

* Marcelo Guido é Jornalista, Pai da Lanna Guido e do Bento Guido e Maridão da Bia.

O Craque Dener – Por Marcelo Guido

Por Marcelo Guido

Dos campos de terra, ao palco celeste. Os Deuses do futebol conspiram sempre nos terrões localizados nas várzeas, “campos” onde grama é algo raro, surgem talentos natos. Em um desses veio para o mundo da bola o genial Dener.

Negro, baixo, magro como muitos de seus pares, tinha o dom de comandar a pelota como poucos. Esguio, liso como peixe ensaboado, deixava para trás seus adversários, que ficavam a mercê de seu talento como míseros “Joões” sem pai nem mãe.

Dribles desconcertantes foram sua marca maior, tal qual Umbabarauma , o ponta de lança africano de Benjor. Dener era o arquétipo máximo do bom jogador.

Honrou em sua curta passagem pela vida três dos maiores pavilhões do futebol. Portuguesa, Grêmio e Vasco. Deixou boquiaberto o grande Maradona. Don Diego teve sua reestreia no futebol portenho ofuscada pelo desempenho maior do camisa 10 de São Januário.

Foram realmente poucos títulos, a Copinha de 91 pela Lusa, o Gauchão de 93 pelo Tricolor e a Taça Guanabara de 94 pelo Gigante. Mais sua contribuição foi eterna para o espetáculo. Até hoje quem entende um pouco de futebol, não importando a identificação clubística , coloca o garoto do Canindé entre os melhores que já pisaram em um campo de futebol.

Pepe, eterno canhão da Vila, rendeu-se ao Gênio comparando ao incomparável Rei do futebol :“ foi o mais próximo que chegamos de um novo Pelé”. Pegar a bola em uma linha central, sair driblando em zigue-zague com o objetivo máximo de levar a criança para dormir no fundo das redes adversarias era sua constante dentro de campo.

Dener era o suprassumo da coerência futebolística, para ele um drible bonito era sim, mais bonito que um gol. Ele era o espetáculo.

Calou críticos, que ousaram dizer que o campeonato gaúcho era muito pesado para ele, levou o Maracanã ao delírio em um inesquecível Vasco x Fluminense, onde a torcida Vascaína bradou em alto e bom som, “E cafuné , o Dener é a mistura do Garrincha com Pelé”, fez o gol mais bonito já feito no solo sagrado do Canindé , contra a Inter de Limeira, virou musica na voz de Luiz Melodia, “ se vocês querem um conselho vou dar, deixem o menino driblar” e literatura nas mãos de Luciano Ubirajara Nassar autor de “ Dener , o Deus do Drible”.

Sua vida passou como ele passava pelos beques , seu drible mais desconcertante foi com certeza na miséria e sua carreira foi rápida como um raio. Dener Augusto de Sousa deixou órfãos os amantes do bom futebol no dia 19 de abril de 1994, em um fatídico acidente automobilístico na lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.

Talvez o próprio Deus, boquiaberto com tanto talento daquele menino negro, resolveu escala-lo para seu time celeste para o jogo de domingo.

Ficou a história de um dos que, em pouco tempo, provou ser um dos melhores no mundo da bola.

Dener, Deus e Drible, os “D” em caixa alta, atitude mais que correta.

* Marcelo Guido é Jornalista, Pai da Lanna Guido e do Bento Guido. Maridão da Bia.

O velho, a loja e o Vasco – Por Marcelo Guido

A temporada futebolística de 2019 acabou para a maioria dos clubes e para o Vasco não foi diferente. Dentro das quatro linhas, um time limitado, um técnico vencedor e uma torcida que abraçou o time de forma poucas vezes vista no Brasil.

Longe de ter o que se comemorar de fato, mas passamos longe do desespero. O “pofexô” Luxemburgo cumpriu o que prometeu ao assumir o clube na zona de rebaixamento, entre os últimos na colocação da tabela.

Primeiro saímos da zona da confusão, rumamos ao meio da tabela e sim, conseguimos algo a mais no fim das contas. O Vasco não brigou para se manter na primeira divisão, o Vasco se manteve e não foi mais longe dentro do que podia, por erros seus mesmo. Pontos perdidos quando pareciam ganhos, erros grosseiros que mostraram a todos os que entendem de futebol, as limitações do elenco.

Bom, como já frisado, 2019 se foi para o Vasco; apenas a Taça Guanabara e o abraço secular da torcida que mais que dobrou o número de sócios torcedores para ser lembrado – esse sim motivo de grande orgulho. E 2020 nos parece ser mais real a partir de agora, nos últimos dias, horas; a probabilidade da entrada de um patrocinador controverso, mas com um cofre abarrotado de dinheiro fez com o que a torcida ficasse de orelha em pé. Se realmente a loja e seu dono aportariam em São Januário, como prováveis redentores do clube. Uma espécie de nova era.

Valores já são especulados, giram cifras astronômicas até onde sabemos. O Velho do Dinheiro, personagem que mais parece ter saído de um circo do que ser um empresário de respeito, olha para o Vasco e vê uma oportunidade de melhorar a própria imagem.

Oras, que outra torcida fez o que fez a do Vasco, no Brasil? Eu respondo: nenhuma. Qual outro clube de caráter popular, que sempre brigou pelos seus, que teve resposta histórica, que peitou mandatários e foi excluído de federação por apoiar seus atletas, que peitou gigante da comunicação? Respondo mais uma vez: nenhum.

Isso não passa despercebido aos olhos desse tipo de gente – que nada tem HAVAN, opa, haver com a história do Vasco. Sempre fomos mais povo que elite, mais clube do que time. O Vasco fez sua raiz popular e não é patrocínio que vai acabar com essa bela história. O futebol se fez negócio, e pra isso precisa de receita, não se monta elenco sem dinheiro.

A paixão nesse caso não alimenta. Somos escravos de cotas de TV que a cada ano são menores. Vimos o maior rival organizar as contas, atrair investidores e depois de 38 anos, ter um ano realmente perfeito. Vemos o time do Palmeiras montar cada vez mais um elenco maior e milionário a cada ano. E não tenha dúvidas: quem não fizer o mesmo, vai ficar para trás.

Não somos o “Massa Bruta”, que depois da Red Bull, será apenas uma bela lembrança da fenomenal camisa carijó. O Bragantino disputará a primeira divisão já com outro nome. Uma pena. Não sabemos ainda o que vai acontecer, mas como proprietários do clube, iremos ficar de olho. Não seremos o Corinthians a sorrir com aqueles dólares trazidos pelo gângster iraniano bancado por russos em 2005.

O Vasco, clube que se orgulha de sempre estar do lado certo da história, terá que escolher: ou adequa-se a uma nova realidade, ou continuará à margem dos futuros grandes feitos.

Infelizmente.

Marcelo Guido é vascaíno.

A Reta linha do trem – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Ela perdeu o trem, e então resolveu caminhar beirando os trilhos.

Escolheu entre o Sul e o Norte, e foi para Oeste.

Seu cão foi para o lado contrário da estrada, porventura farejara ossos, enterrados, entre as cruzes fincadas como homens de braços abertos em uma fila de mais de dez.

Fazia calor, ambos usavam, os cães não suam, são sem poros.

Ela escondeu um punhado de sal, atrás da orelha… repetia o que sua mãe, nas tardes em que colhiam café sob um sol de torrar sementes e gente. Faziam-no para espantar a sede.

O dia em que sua mãe morreu, ela a enterrou sob uma laranjeira, entrelaçou vários espinhos e construiu uma cruz que fincou no chão, sob um ruído de terra fofa e carne petrificada.

Fez uma trouxa com a roupa, com as palavras, e com a saudade extraída de um diário sujo e úmido, do qual lágrimas caíam enchendo de nódoas, a casa.

Sentou e esperou que anoitecesse. Quando a lua iluminou a estrada, incendiou a casa e afogou todos os retratos em um balde de leite. Por fim, exausta, adormeceu entre os animais.

Os gatos foram morar no que sobrou da casa queimada. Os galos, as galinhas, e os pintinhos subiram nas árvores e puseram-se a ensaiar voos cada vez mais altos, até que migraram para o Sudeste, onde cresceram como águias.

Ela e o cão foram em direção aos trilhos, que começavam em julho e, às vezes, transportavam os trens.

Muitas vezes pelos trilhos, passavam os ventos contando histórias de colheitas, juras secretas de amor, fim trágico de grandes paixões, rezas, choros, gritos irados, e maldições.

Vestiu-se toda de lilás e no cão fez listas negras em seu pelo marrom, puxou o seu latido por trás do ouvido, e o escondeu debaixo de umas folhas de urtiga, para que não incomodassem a noite que já tinha seus próprios sons para espalhar sobre as colinas e grutas esparramadas muito adiante deles.

Foram como em procissão. Ela cantava rezas. O cão apenas farejara as palavras mais doces, entre as mais ásperas e as engolia.

Para as que conhecia, abanava o rabo, para as desconhecidas, rosnava de um jeito tímido, erguendo o beiço superior até a metade dos dentes.

O trem não tinha vindo.O vento não havia vindo. Estava tudo calmo do lado de lá dos trilhos.

E do lado daqui muita chuva.

O cão sentou -se sobre as patas.

Ela sentou-se sobre as sombras deles.

O tempo todo era para esperar… o Vento…o Trem… Que voltasse o Sol. Que gritasse o Som.

Esperar até a unha dos pés, e das patas, crescer.

Nada havia o que fazer.

Até que fossem embora a chuva, a noite, a lua.

Como tinham ido… Ontem, antes de anteontem, antes, antes de antes, ali adiante dela e do cão.

Parecia ato de criar… mas era fim.

*Do livro de Contos “Defronte a Boca da Noite  moram os dias de Ontem’ – Rumo Editorial – Luiz Jorge.

Bar do Redondo – Conto de Luiz Jorge Ferreira

De onde estou posso vê-lo. Cercado de uma meia dúzia de pessoas, as quais eu não reconheço. Esta trajando laranja, cor que me lembra Yellow Submarine. Fala muito gesticula como se apanhasse uma mosca branca no ar. Os outros mais velhos o escutam com atenção.

Olho ao redor e encontro a mesa mais próxima. Puxo a cadeira e sento. Alguém pede um violão. Talvez ele cante Irene. Adoro Irene, penso enquanto aceno ao garçom. Que não encontra o violão. Plagiando a Irene que conheci em Belém do Pará. Das palavras dos gestos e dos planos loucos de democracia plena. No meio da vigilância noturna da polícia política, em meio a Festa de Arraial na Igreja de São Raimundo. Pichando muros.

Igreja Matriz de São Raimundo Nonato, padroeiro do Bairro da Aldeia e a Praça do Centenário. Fotografia do acervo de Edenmar da Costa Machado.

O bar está quase deserto. Afora as pessoas que estão com ele temos um casal sentado perto do palco, um tablado mais alto que o assoalho uns quinze centímetros. Atores. Ela vestida de abelha e ele de rei. Provavelmente o Rei da Escócia. Provavelmente vindos de uma peça.

O pano que cobre a mesa de Caetano tem a figura do Zodíaco. Talvez ele role os dados.

Estalo os dedos para o garçom, um velho conhecido dali mesmo, eu um solicitador frequente de seus serviços.

Chico! Sai um Gim! Chico parece não me escutar. O bar está às moscas. Mas o ar parece pesado. E ainda são duas e meia da manhã. As cerejas que carrego amassadas no bolso da japona espreitam no fundo do copo. O palito espetado, balança como fosse pêndulo, sem Norte.

Arranco a cutícula do dedo mínimo da mão direita. Não ergo a voz receio gritar desafinado e chamar a atenção deles. Batuco os dedos na mesa como um ritmo Caribenho. Eles me olham e sem dar importância voltam aos seus assuntos. Bebem vinho do Porto.

Abro meu livro de Saint Exupéry e finjo ler. Caetano está de safári e sandálias. Amarra os cabelos com um cordão de rastafári. Finjo ler por que logo levanto para ir ao banheiro. E passo bem perto deles. Discutem Joyce. O monólogo. Um dia apenas de setecentas páginas.

Volto, eles já se foram. Vinte anos depois, em 1988, no dia 8 de Agosto. Volto aqui. Só. Com medo da noite. Não da polícia política. Dos assaltadores. O bar cedeu duas metades esquerdas, uma para a cafeteira americana que serve café com hortelã e mostarda e a outra parte para que guardem carrinhos de amendoim e de vendedores ambulantes quer entopem o centro da cidade, com suas guloseimas inúteis.

Sento à mesa descascada que parece eternizar-se ali. Chamaria o Chico, garçom para que me trouxesse um Gim. Mas Chico morreu. Tento estalar os dedos para chamar o que se esforça para entre as mesas muito próximas rápido para chegar aos clientes, mas nada. Os dedos já não emitem som quando os estalo. Tento batucar com eles um som Caribenho, eles se contorcem sem êxito. Sai um som desafinado e sem definição.

O garçom chega e peço um guaraná diet. Puxo o cachecol. Sobra um medo, filho da revolução, e da sua polícia política. Um tremular de mãos agiganta-se. Herança ganha do exílio e das torturas físicas e psicológicas. Tudo tem um leve sabor amargo, distante. Parece que só me contaram. Tudo agora é historia com h minúsculo.

Bebo todo o copo de guaraná com duas pílulas coloridas. Esqueço o ritmo dos dedos. Parece que passo pela mesa. E ainda Joyce e agora outros que nas palavras que abortaram, perpetuaram-se, inclusive ele.

Vou ao banheiro devagar, entro retiro o tampão da sonda e solto a urina politicamente correta. Olho para a sonda alaranjada. Olho no espelho enquanto lavo as mãos. Há um senhor de idade refletido no espelho. Talvez seja ele que se lembre de Irene e não eu.

Vinha aqui para curtir a solidão desde a época do cursinho. Hoje parece que ela nunca deixou de ser minha. Vinte anos depois imagino que este lugar ainda esta lotado. Mas não está. Volto, eles já se foram. Todos se foram. Inclusive Irene de Belém do Pará, a que fingia me namorar encostando-se à parede enquanto pichava. Abaixo a Ditadura.

Eu saio como entrei. Calado. Nem a garoa, me acompanha. Na banca. Há uma manchete no jornal que diz que Fidel Castro foi operado. Está solitário, doente, e muito mal.

Até ele?

Luiz Jorge Ferreira

*Do livro de Contos “Antena de Arame” – 2° Edição 2017 – Rumo Editorial. São Paulo. Brasil.

20 de Novembro Dia da Consciência Negra – Por Marcelo Guido

Por Marcelo Guido

Por que precisamos desse dia?

Criada em 2003, a data nos remete ao passado e tem o intuito de fazer uma reflexão da inserção do negro na sociedade brasileira, escolhido o dia 20 de novembro não à toa , já que é a data atribuída à morte de Zumbí dos Palmares, um dos maiores e históricos lideres negros que já habitou nossa pátria.

Mas por que ainda hoje precisamos refletir se somos no papel um país multirracial, se nosso sangue miscigenado encantou o pai da seleção natural Charles Darwin, se nossa sociedade é tropical, abençoada por Deus e bonita por natureza ?

É amigos, quem nos dera não precisar! Vivemos um verdadeiro “apartheid” não oficial. Isso porque a política nefasta, que por muitos anos foi responsável pela segregação na África do Sul, é aplicada em nosso país na pior forma, a forma oculta.

A necessidade de uma data oficial como essa é para lembrarmos que a cada 100 vítimas de assassinatos no Brasil , 71 são negras, que a extrema maioria de nossa massa carcerária nos presídios é negra, que a maioria das famílias que vivem na miséria no Brasil é negra. Por isso a reflexão.

A dívida que se tem com o povo afrodescendente é mil vezes maior , foram 400 anos de escravidão, marca essa que para poder tirar de nossa história, precisaríamos ser redescobertos.

O Brasil foi um dos últimos países a deixar de ser escravista. Por isso a reflexão. Para mostrar para muitos que politica de cotas raciais, instituída no Brasil apenas em 2014, não trata-se de uma esmola, e sim de uma reparação histórica para com o povo negro. Por isso a reflexão.

Pra lembrar a todos que foi só a partir de 2003, mais exatamente no dia 09 de janeiro, com o advento da lei 10.939, que o currículo escolar brasileiro teve que colocar a temática “Historia da Cultura Afro –Brasileira” para que os alunos pudessem entender o por que do respeito com a cultura Afro.

Só por esses aspectos, o dia da consciência negra já se faz necessário.

Refletir sobre os erros para que nunca mais eles sejam repetidos, para que o jovem negro possa ter orgulho de sua raça, origem e cor. Por mais cabelos naturais e menos alisamentos nas meninas . Que o orgulho negro seja realmente reconhecido.

Precisamos deste dia para saber que ascensão social do negro não é um favor, e sim um direito. Para que as escolas, repartições e universidades sejam sim um espaço de ampla inclusão.

Zumbi vive em cada jovem médico negro, em cada advogado negro em cada ministro negro, em cada professor negro.

Para que intelectuais históricos, como Machado de Assis e Castro Alves possam ser referenciados como realmente foram.

Para que o elevador social que é quase um templo- já diria Jorge Aragão – seja esquecido e realmente fique no passado. Para que Wilson Simonal saia do limbo cultural o qual foi colocado.

Para que máximas como a do grande educador Paulo Freire , reconhecido mundialmente pelos serviços prestados à educação, sejam enterradas de vez: “os negros nascem proibidos de serem inteligentes” .

Para que nossa sociedade seja mais justa e menos hipócrita.

Viva Zumbi, Cartola, Ivone, Jovelina, Mano Brow , Ben Jor, Leci, Serginho Chulapa , D2, Tony Tornado, Tim Maia, Mussum e todos aqueles que um dia lutaram por igualdade, meu máximo respeito.

Um Salve para todos os negros.

*Marcelo Guido é Jornalista, Pai da Lanna e do Bento e maridão da Bia.

O último voo do Pavão – Crônica porreta de Fernando Canto sobre a história do homem do marabaixo

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Mestre Pavão – Foto: Chico Terra

Por Fernando Canto

Na segunda-feira, 11 de maio de 2009, o mestre Pavão bateu suas belas asas para nunca mais.

O homem do marabaixo partiu para encontrar-se com seus ancestrais, os mesmos que lhe ensinaram a tocar tão bem a caixa, o tambor que anunciava bons augúrios nas pavãotardes do Laguinho. Com ele Pavão comunicava a seus pares, os agentes populares do sagrado, que a festa do Divino e da Santíssima Trindade já tinha início. E todo um ritual deveria ser obedecido, desde o Domingo da Aleluia, passando pelos preparativos da seleção dos mastros nas matas do Curiaú, até a sua derrubada e escolha dos próximos festeiros no Domingo do Senhor. Com ele se foi um arcabouço cultural de grande valia para a memória do nosso patrimônio imaterial. Foi-se também a sabedoria dos que fazem acontecer as manifestações mais legítimas do povo. E restou apenas o espanto dos que ficaram. Doente, não mais participava ativamente dos eventos do marabaixo como nos velhos tempos, mas sempre dava um jeito de ir em sua cadeira de rodas aos mais importantes, para ouvir o rufar das caixas e ver as saias da negras velhas rodarem sob o ritmo intenso oriundo de além-mar.

pav3Pavão levava muito a sério o que fazia no marabaixo. Até brigava por ele. Seu amor pelo folclore certamente foi herdado do avô Julião Ramos, o grande líder negro, que na época da implantação do Território Federal do Amapá disseminou o ritmo e a dança para todo o Brasil. No domingo, véspera da sua morte, sua filha Ana perguntou-lhe se ia ao marabaixo do Dia das Mães na casa da Naíra – uma das festeiras desse ano no bairro do Laguinho. Ele disse que não ia porque estava indisposto, mas mandou todo o pessoal de sua casa para lá, pedindo que não deixassem a ”cultura morrer”. Mal sabiam todos de sua casa que a cultura do marabaixo, nele impregnada, estava morrendo um pouquinho com ele.

pav2Justo que consideramos a memória como o deciframento do que somos à luz do que não somos mais, a morte é o abismo que tudo leva e engole inclusive o segredo da identidade, aquilo que nos pertence social e culturalmente. Posto isto, quantas conversas não foram abruptamente cortadas numa gravação para um trabalho de conclusão de curso dessas tantas faculdades da capital? Assim sendo, o que restou de seus depoimentos, desse depósito memorial tão importante para que se analise o marabaixo? Ora, sabe lá quantos pesquisadores egoístas guardam suas fitas encarunchadas e vídeos empoeirados que nunca vão se abrir para ninguém?

Mestre Pavão a todos respondia com a maior paciência, paciência esta que aprendeu a ter com a doença intratável que lhe fez perder uma perna. Mestre Pavão dava a todos o seu conhecimento vívido e vivido intensamente em setenta e dois anos de repetição ritualística que a sua memória avivava e exprimia no vai-e-vem dos olhos.pav1

Aqui peço licença poética ao escritor moçambicano Mia Couto que escreveu o “Último Voo do Flamingo”, para parafraseá-lo, dizendo que o nosso pavão alçou seu último voo na tarde amena de maio. Um voo curto,é certo, porque pavões não voam quase nada, mas são aves do paraíso por excelência. Sua luxuriante plumagem em profusão de dourados, verdes e azuis à luz do sol reflete uma miríade de cores, onde o vermelho e o branco parecem estar presentes como se preparando para um desfile da Universidade de Samba Boêmios do Laguinho, a escola do coração do mestre. Convém lembrar aqui que o simbolismo do pavão carrega as qualidades de incorruptibilidade, imortalidade, beleza e glória, que por sua vez se baseia em outro aspecto além destes: a ave é predadora natural da serpente, e em certas partes do mundo, mesmo seu aspecto maravilhoso é creditado ao fato da ave transmutar espontaneamente os venenos que absorve do réptil. Este simbolismo de triunfo sobre a morte e capacidade de regeneração, liga ainda o animal ao elemento fogo.pav4

Fogo, sim, do marabaixo quente, do “Caldeirão do Pavão” com seu caldo revitalizador do carnaval que tanto o mestre amava e por isso se enfeitava nos áureos tempos dos desfiles da FAB. Vai em paz, Pavão, tua plumagem tem cem olhos para vigiar o que deixaste entre nós.

(*) Publicado No livro “Adoradores do Sol”, de Fernando Canto. Scortecci, São paulo, 2010. Minha homenagem a um dos mais importantes divulgadores do Marabaixo.

*Fotos encontradas nos sites do Chico Terra; Rostan Martins; Memorial Amapá (Neca Machado); Tribuna Amapaense e Federação Folclórica do Amapá e jornalista Mariléia Maciel. 

As negras velhas ( Por Fernando Canto )

Conto de Fernando Canto

Caixas do marabaixo retumbam/retumbam em círculos movimentados de pés descalços/negros pés. E saem das línguas vermelhas os gritos guerreiros e as canções improvisadas da guerra que nunca houve. A valentia é substituída pelo insaciável apetite de voar sem asas para mitigar dores ancestrais, enquanto rosas brancas, açucenas e papoulas enfeitam a negra beleza dos cabelos esticados em rolinhos de plástico… E sob os olhares críticos da geração megahair.

As caixas retumbam/retumbam e dobram incansavelmente ao meio de odores/suores/toalhas e saias rodadas que combinam brancas anáguas bordadas de renda.

O Marabaixo prossegue em seu curso no arrasto dos pés pela roda, em cursos passos à frente e um passo cansado atrás.

As velhas do Marabaixo cochicham segredos e riem dos seus casos antigos que ora se sentam nos bancos corridos dispostos pelo salão. É lá que as histórias completam a memória, acertam verdades e crenças e extinguem resquícios de quizílias familiares.

No gesto de encher a colher de caldo e levá-la à boca, na satisfação do gole da batida de gengibre e na algazarra de enfeitar o mastro com galhos de murta, está a poesia do povo e a fortaleza do sangue um dia pisado e magoado por grilhões e calcetas.

O diabo está solto no tempo do Marabaixo. Dizem que quem for podre que se quebre ou que se pegue com o Divino, aquele do Espírito Santo.

O diabo está solto, sim. Mas as negras desdenham dele e gargalham em seus sorrisos falhos, sabendo que o que fazem é bonito, é autêntico e dá uma saudade imensa…

* Publicado no livro EquinoCIO, de 2004.

Fotos encontradas nos blogs Visite o Brsil, Porta Retrato e Amapá da minha Terra

Futebol – Texto porreta de Marcelo Guido

Por Marcelo Guido

A vida marcada em sonhos, glórias e decepções; tudo em 90 minutos.

O que seria do mundo sem futebol? Longe de mim imaginar tal heresia. Nem em meus piores pesadelos posso ter a competência de vislumbrar tal desastre.

Como pode pensar a vida, sem as noites etílicas, ou sem amizades verdadeiras formadas e moldadas em campinhos de terra, ruas com traves de chinelos? Ou aquela emoção inusitada em acordar na segunda-feira, com a moral lá em cima, para uma semana, sabendo que teu time fez por merecer no domingo. Pior acordar, querendo que o fim de semana seja só um amargo devaneio de derrota, quando os Deuses da bola simplesmente te esqueceram na rodada passada? É amigos, isso acontece.

Para quem gosta de futebol, isso é uma constante, os dois lados da mesma moeda. A linha tênue entre o afago caloroso da vitória e o amargo beijo da derrota.

Futebol não é exato, não é chato como matemática, não é nem esporte. Não tem nomenclatura melhor para o popular “esporte” bretão do que jogo. Isso, futebol é jogo.

Jogo esse, em que vinte e duas almas levam a responsabilidade de milhões de sentimentos nas costas. Onde mandinga, superstição, mania, tudo faz a diferença. Futebol faz ateu rezar, e teísta duvidar da própria fé. Sei disso.

O jogo fabrica heróis, personifica talentos, faz vilão e mais que tudo, mexe com os sentimentos mais profundos e realistas do ser. O futebol te transforma em humano.

Na torcida, não tem titulo homérico, graduação, patente ou divindade… Todos são iguais, tirando – claro – aquele típico pé frio, que levará a culpa pela existência na terra em caso de revés clubístico.

Nomeamos sempre nossos heróis, tivemos a Enciclopédia, o Divino, o Galinho, o Mané, o Dinamite. Tivemos também o Baixinho, o Animal, o Príncipe, o Reizinho, o Super, e o maior de todos: o Rei.

O futebol tem lei sim: a de Gerson, que em seu único artigo, inciso, parágrafo e outros badulaques jurídicos possíveis, diz que “quem corre é a bola”

O jogo é uma verdadeira ópera, construída com drama e comédia, feita por Almirantes, Mosqueteiros, Urubus, Sacis, Raposas, Leões, Galos – uma infinidade de personagens, onde o herói se torna vilão (olhem para o Galinho em 86) e o mais improvável coadjuvante tem seu momento único (procurem Gabiru em 2006).

E o torcedor, figura máxima, esse sim, o verdadeiro reflexo festivo, o que dá toda gama de personificação, o toque final do espetáculo. Sem o torcedor não existiria palco. Em um mundo atual onde estádios são renomeados de Arena, este sim o mais prejudicado. Quão é feia uma comemoração sem geral. O mais feroz dos hooligans ingleses pediria para sair em meia hora de RExPA no mangueirão.

O futebol é isso. É marcante. É emoção. E para quem diz que é só um jogo, minhas mais sinceras condolências; vocês não merecem uma nota escrita no livro chamado vida.

*Marcelo Guido é Jornalista, Pai da Lanna e do Bento …Maridão da Bia.