Vingancinha marota – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Eu sei que toda atividade honesta é digna de respeito etc., mas confesso que tenho vontade de esquecer esse ensinamento dos meus pais quando certa atividade entra em rota de colisão com a minha atividade. Me refiro aos operadores de telemarketing. E creio que eu não seja o único vivente desta era abarrotada de operadores de telemarketing que querem te vender tudo quanto é porra (estão vendo/lendo? Já perdi a porra da paciência! rsrsrs).

Ultimamente, esses caras têm abusado muito da minha zenitude (atitude de quem é zen, segundo meu dicionário) e me enchem tanto o saco que resolvi, para alívio meu e para não tentar algo mais drástico, escrever esta crônica em desagravo, lembrando que, sim, é o trabalho deles e todo mundo tem que arranjar um meio de sobrevivência e tal.

Pois bem. Decidi parar de ignorar a maioria das ligações de números de outros estados, mas faço uma ou outra concessão e topo levar um papo com esse profissional que só tem duas coisas a fazer na vida: perguntar por alguém que eu não faço a menor ideia de quem seja ou tentar me empurrar bolso adentro um pacote hiper-mega-ultra-supervantajoso, que vai me permitir falar com o pessoal de Marte, caso eu tenha algum conhecido lá.

A última ligação que recebi (espero, mas não creio, que seja realmente a última) o cara, pela milésima vez, me perguntou se o meu número pertencia ao seu João Everaldo. Já me perguntaram tanto por esse sujeito que quase chego a me perguntar se não o conheço mesmo. Respondi, respirando fundo e indo buscar, lá no mais íntimo do meu ser, o último fio de gentileza e da minha já citada zenitude:

– Já disse que não conheço ninguém com a porra desse nome, caraaaaaaalhooooo!

Claro que exagerei um pouco aqui e jamais respondi a alguém dessa forma, é mais para dar a medida do que me provocam essas ligações. Ontem eu fingi que sou um homem extremamente ocupado e fiz ao operador da vez um relato do que essas ligações provocam no meu dia a dia:

– Moço, é o seguinte. Por favor, me escute! Eu trabalho no setor de criação de uma agência de publicidade e esse meu trabalho consiste justamente em ter ideias. Tenho que parir ideias a todo momento. Mesmo que não sejam geniais, precisam ser ideias pelo menos razoáveis, aquelas que, na pior das hipóteses, possam ser bem embaladas e resolvam/atendam/satisfaçam os clientes e seus públicos. Aí, no exato momento em que estou tendo a tal da ideia, tu, ou alguém da tua laia, me liga, interrompendo meu já surrado raciocínio e mandando pelo ralo qualquer ideia que qualquer cristão, mesmo que não trabalhe com ideias, possa ter. Tu apagas, com uma ligação que eu não pedi sobre algo que não me interessa, qualquer vislumbre/lampejo/centelha que possa ser uma chama, uma faísca, algo que eu possa agarrar e puxar e lapidar e burilar até que se torne uma bendita boa ideia que me faça resolver o job em questão. E aí? Quem paga esse prejuízo?

Aí o cara responde, numa calma exasperante, quem sabe lendo o Sagrado Manual do Operador de Telemarketing, edição revista e ampliada:

– Calma. O senhor vai estar me desculpando, mas estou apenas fazendo o meu trabalho.

– Ah, tá! – respondo eu – Então o TEU trabalho é atrapalhar o MEU trabalho! É isso? É isso, canalha? – Esse canalha é exagero meu também. Não chamei o cara de canalha.

– Desculpe, senhor, mas o senhor está muito nervoso. Vou estar desligando. Bom dia, senhor.

– Bom dia é o caralho! – Desta vez eu disse assim mesmo, mas antes me certifiquei de que ele já havia desligado.

Me senti vingado, uma vingancinha marota, que não vai impedir que os operadores de telemarketing continuem sua saga de perturbar os pobres seres que possuem uma linha telefônica. Epa! Meu celular tá tocando! Deixa eu ver de onde me chamam. De São Paulo. Só pode ser um operador de telemarketing. Desta vez, vou mudar de tática:

– Puxa! Ainda bem que tu ligaste, meu amigo seja quem for! Eu preciso falar com alguém! Preciso desabafar! Minha vida tá uma merda! Me escuta! Me escuta!

Bora ver no que vai dar. Queres que eu te vingue também, minha cara leitora, meu digníssimo leitor? Pode ser divertido. rsrsrsrs

Soy loco por ti América! – Crônica porreta de Marco Antônio Costa

Crônica porreta de Marco Antônio Costa

Dia desses estava com Violeta Parra ouvindo violas andinas e cantadores do povo. Dávamos ‘gracias a la vida’, que tem nos dado tanto…

Chegou-se conosco Victor Jara, um pouco antes da chegada de Ali Primera. O clube do cone sul foi reforçado por Mercedes Sosa, enquanto que os cubanos Silvio Rodríguez, Vicente Feliú e o Pablo Milanés cerraram fileiras com Primera. Pronto. A melancolia deu lugar aos merengues, maracas e metais. Dançamos todos. Uma verdadeira festa caribenha!

Aí foram chegando os escritores, devidamente capitaneados por Jorge Amado e suas histórias cacaueiras de Ilhéus. Tanto Vargas Llosa quanto García Márquez ouviam atentos suas indicações etílicas e sensoriais. Isabelita Allende parecia desconfiar. Antiguidade é posto.

Não mais que de repente um cavaco, um pandeiro e um tamborim se apresentaram para marcar posição. A moçada do Rio mandou como representação Vinícius de Moraes – pela poesia e pela experiência diplomática! -, e Cartola, bem, porque Cartola é Cartola. Fez-se samba e não pude deixar de notar o quão desengonçado, mas feliz, tentava sambar Piazzolla. Por óbvio que o maestro Antônio Brasileiro Jobim requintou o ambiente com a nossa bossa.

Servia-se pisco peruano, cachaça brasileira, rum anejo de Cuba e, acreditem, fernet! Houve até quem quisesse introduzir a bebida perfumada da Inglaterra, o gim, mas protestos efusivos, cantando “oligarcas temblad viva la libertad!” demoveram a ideia do pobre contrabandista.

A comida servida era do Pará e do Amapá: pato no tucupi, maniçoba e caldeirada de filhote, tudo levinho como um tango de Gardel. Tanto que um novinho dos pampas, Jorge Drexler, se empolgou e perdeu contato de áudio e vídeo com a torre na primeira metade da festa…

E assim a noite foi indo e chegou ao fim como começou. Demos gracias a la vida pedindo a deus que a injustiça nunca nos seja indiferente.

Que pai, mãe, irmão, amigo e o meu amor possam viver numa América livre.

Sou louco por ti América!

* Marco Antônio Costa é jornalista, fã de música boa, cinema, literatura, professor de Sociologia, além de brother deste editor. 

Máscaras de Mazagão Velho – Crônica de Fernando em homenagem à Festa de São Tiago

Foto: Marcelo Loureiro – Secom.

Texto de Fernando Canto (Uma velha homenagem à Festa de São Tiago de Mazagão Velho)

Há alguns anos ministrei palestra para uma turma de Sociologia do Ceap sobre “Cultura e Poder”, enfocando aspectos da Festa de São Tiago de Mazagão Velho (cavalhada que relembra a lenda desse santo na guerra entre Mouros e Cristãos na África) a convite do professor Luís Alberto Guedes. Nesse dia levei uma caraça utilizada pelos “Máscaras” e pedi aos alunos que a experimentassem em seus rostos. As reações foram as mais diversas e a discussão bem participativa. Entretanto, se por trás da máscara há um mundo de significados, pela frente pode representar a face divina, a face do sol. Ela exterioriza às vezes tendências demoníacas (Teatro de Bali, máscaras carnavalescas), manifesta o aspecto satânico. Ás vezes não esconde, mas revela tendências inferiores que é preciso por a correr, porque não se utiliza uma máscara impunemente. Ela é um objeto de cerimônias rituais, como por exemplo, as máscaras funerárias, que são arquétipos imutáveis nas quais a morte se reintegra. Na China ela se destina a fixar a alma errante.Ela também preenche a função de agente regulador da circulação das energias espirituais espalhadas pelo mundo e visa controlar e dominar o mundo invisível.

Foto: Fernando Canto

Na Festa de São Tiago ela é usada no “Baile de Máscaras” que ocorre no dia 24 de julho, e é um dos aspectos ritualísticos mais importantes, pois simboliza uma cena de regozijo à vitória que os mouros julgavam ter obtido sobre os cristãos O baile ocorre após terem oferecido comida envenenada aos cristãos, visando dar oportunidade aos que quisessem passar para seu lado. É um baile de homens onde todos estão fantasiados, mas às mulheres e crianças é proibida a participação. Eles dançam no sentido inverso ao do relógio até ao amanhecer. Ao meio-dia um personagem mascarado chamado “Bobo Velho” passa três vezes no território cristão e é apedrejado pela assistência, pois se trata de um espião mouro tentando obter informações. Na cena do “Rapto das Criancinhas Cristãs”, os “Máscaras”, dezenas de atores populares, surgem fantasiados, assustando e arrebatando olhares de medo das crianças que os assistem.

Foto: Marcelo Loureiro – Secom

A máscara parece ser uma transferência de energia que tem o sentido de mutação e que transcende o drama. Já o “Baile” é uma festa dentro da festa. É uma cena de um drama em que paradoxalmente ocorre a oportunidade de se desregrar (pela ingestão do álcool). Mas é quando se subverte a realidade constituída, pois a organização social do drama tem seus apelos e sanções: se há notícia de uma outra festa na vila, os “Máscaras” vão até lá e acabam com ela. Fazem respeitar as normas da tradição e tecem críticas à realidade através de um grande boneco mascarado chamado “Judas”, que todo ano muda de nome, conforme o momento histórico e a decisão dos que o confeccionaram.

Foto: Marcelo Loureiro – Secom

O “Baile de Máscaras” é uma forma de representação do potencial subversivo das festas, não só pela crítica, mas pelo dançar constante na direção inversa ao do ponteiro do relógio, tratando-se de um embate contínuo com o tempo, quando os brincantes giram e vão se espiralando, afastando o tempo linear e vivendo a dimensão da memória, num tempo mítico, onde os acontecimentos heroicos se repetem pelos rituais.

Foto: Marcelo Loureiro – Secom

Culturalmente as máscaras de Mazagão Velho podem ser vistas como um aspecto místico da festa porque traduzem o tempo, a memória e o ritual que organiza a memória, a história e a sobrevivência da sociedade. Assim a cultura da festa se efetiva porque suas crenças, gestos e valores são oriundos de um processo de criação de homens e mulheres e que são partilhados por todos, por meio de juízos de valor e símbolos.

Foto: Marcelo Loureiro – Secom.

A utilização da máscara na Festa de São Tiago é de disfarce, de aparência e de jogo estratégico. E para entender melhor esse processo nada como pôr no rosto uma caraça, pois assim cada um assumirá também o papel que subverte e mete medo, e que também diverte, mas, sobretudo, que une e corporifica os valores culturais daquela sociedade.

(*) Do livro “Adoradores do Sol” – Textuário do Meio do Mundo, Scortecci, São Paulo, 2010.

O Poeta Isnard em carne e osso (Por Fernando Canto)

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Por Fernando Canto

Conheci muitos poetas que me fizeram ver o mundo de outra forma. Desde os tempos do Grupo Escolar Barão do Rio Branco ainda ouço as “Vozes D’África” de Castro Alves ecoando pelas praças da cidade como se viessem mesmo do outro lado do oceano e retumbassem versos com vigor pelos campos do Laguinho. E eles me dizem no acompanhar disnard11o ritmo ligeiro do batuque: “Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes? / Em que mundo, em que estrela tu te escondes, / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito, / Que embalde desde então corre o infinito… / Onde estás, Senhor Deus? ”

A poesia joga a semente da planta e alarga suas raízes. Só depois é que compreendemos sua ideologia e caráter, pois a entendemos como um ente que traspassa a alma e que inicia a fervedura da arte. Assim fui conhecendo os poetas no dia-a-dia dos estudos e até arrisquei meus primeiros versos, que ninguém acreditou que fossem meus, por isso foram destruídos pela fúria adolescente quando enfrenta o descrédito.

Um dia vi que poetas eram mesmo de carne e osso, embora estranhos. Conheci pessoalmente o Ray Cunha, o Zé Edson dos Santos, o Manoel Bispo, o Silvio Leopoldo, o Odilardo Lima e o curioso Isnard Lima, o mais velho deles. Tivemos nossas primeiras conversas no antigo Clã Liberal do Laguinho no início dos anos 70,Isnard7 época bastante tumultuada, quando falar em democracia era crime. Ali aprendi com eles a ser parceiro de música, de sonho e de esperança, apesar dos percalços do caminho como a impagável “Operação Engasga-engasga” que tentou estragar nossas vidas. Os que não foram presos por pensarem na liberdade migraram para outros centros do país e começaram a pôr em prática seus pensamentos, escrevendo canções, publicando livros, realizando exposições.

Digitalizar0002Dos presos injustamente que voltaram ao nosso convívio só o Isnard voltou a produzir textos com certa regularidade, mas era muito perseguido pelos chamados “revolucionários” e assim retornou a sua vida de boêmio, que alegrava os bares por onde parava. Neles, sua presença física fazia parte do cenário, assim como sua poesia, às vezes lírica e pródiga, iluminava a noite.

Tempos depois fomos estudar juntos para o vestibular da Universidade do Pará. Ele e a mulher, uma vizinha dele e eu. Passamos os quatro e fomos para Belém enfrentar a vida. Um dia, ainda lá, sua mãe a professora de piano Walquíria Lima, morreu de grave doença. O poeta ficou órfão de mundo. Depois, já advogado, voltou e realizou seu livro de crônicas.

Digitalizar0003Creio que poetar não é só ajuntar palavras com a sabedoria de quem observa minúcias. Ela também arrebata o que não deve, molha e enxuga imagens. Escrita ou falada ela incide sobre o mundo em raios de aconchego, rebate o despropósito de desatinos noticiados sem pressa. A poesia é arte de encantar, pela soberba luz que tem, até a esperança escondida sob pedras. No presente ela é real de tal modo pétrea que judia a percepção, assim como estende o passo do verso pelas nebulosas verdes do futuro. A poesia é necessária na hora que o mundo se parte em prantos e nos conduz ao estado incompreensível de poetas. É como um féretro de gafanhoto conduzido por formigas de fogo na primeira manhã de março após a chuva. É operativa e vítima viva; amarrada, mas não amordaçada; simbólica, que não concede a ninguém formas aprisionadas, estilos e chavões dos espaços escolares. Ao contrário, voa, evola-se, anja-se e rompe-se comunicando ao homem e seu espírito, que mesmo muitas vezes seca, louca ou amarga, é doce na intenção imensa da criação do autor.

Isnard6O poeta Isnard Lima, autodenominado “Cafajeste Lírico”, tinha 64 anos quando morreu. Às sete da noite do dia 11 de julho de 2002 fui informado que um vizinho o encontrara caído, ao lado de um aparelho de aerosol usado para amenizar o sofrimento de um enfisema pulmonar, fumante inveterado que era.

Eis, poeta, a minha homenagem pelo Dia da Poesia, que compartilho com todos os poetas de nossa terra, quando sei que nas fímbrias das nuvens gargalhas alegre e ironicamente tiras rosa do teu chapéu e as joga na madrugada.

(Texto publicado em março de 2007 – JD)

Travesseiro de Penas de Ganso – Conto místico de Fernando Canto

 Conto místico de Fernando Canto

Meu travesseiro de penas de ganso sempre voava comigo nos meus sonhos. Como sempre tive medo de altura, eu o levava porque temia uma eventual e desesperadora queda. ¬- Doce ilusão, eu mesmo me dizia. Como poderia cair daqui, se já conheço meu próprio jeito de voar?

Uma noite, tal como Davi, o rei, vi uma mulher tomando banho na piscina do seu jardim suspenso. Era bela sob a luz da lua. Sobrevoei sua cobertura e fiquei a admirar a cena ilusória.

Fazia isso quase todas as noites quando o trabalho árduo me permitia. Eu ligava minha máquina de sonhar, apanhava o travesseiro de penas e saía para conhecer o mundo e, sobretudo, para apreciar cada vez mais aquela mulher linda banhada em águas perfumosas.

Ocorre que eu estava preso a um fio de prata e não podia me desprender dele, sob pena de morrer bruscamente em meu leito, onde meu corpo-casulo ficava à espera do espírito.

Afoito que eu era na minha juventude, certa vez tentei pousar perto da jovem para conversarmos, entretanto, a máquina não me obedeceu mais e queria sempre seguir em frente como se tivesse em uma missão inadiável, me dispensando do comando. Agarrei o travesseiro com força e segui em frente na minha viagem mística.

Na volta eu a vi. Trajava um vestido longo que reluzia à luz da quarto-crescente tal como o fio de prata que me guiava. Eu a chamei. Ela me ouviu e sentiu medo. Parei a uns dois metros sobre sua cabeça erguida e perguntei se ela queria passear comigo na próxima vez. Um sorriso foi se delineando aos poucos no rosto mais belo que eu já vira em toda a minha vida. Senti, então, suas mãos acariciarem minhas longas barbas pretas. Sem hesitar dei a ela o meu precioso travesseiro de penas de ganso para que sonhasse comigo. Ela aceitou e entrou sorrindo.

Naquela noite eu voltei para o meu corpo com a sensação de que a encontraria no elevador ou na padaria no dia seguinte. Levantei declamando os versos do poeta chinês Lu-Kei-meng, da dinastia dos Tang, quando ele se comove com as armadilhas que os inimigos armam pelo caminho dos gansos:

Ganso selvagem
Longa é a rota do Norte ao Sul
Milhares de arcos estão armados no seu trajeto
No meio da fumaça e da bruma
Quantos de nós chegaremos a Hen-Yang?

Ao caminhar em direção da estação do metrô, olhei instintivamente para o alto do meu prédio e vi descer voando da cobertura aquele anjo de asas longas com o sorriso da mulher amada nos sonhos. Vinha provida de asas das penas de ganso, um misto de animal solar na figura de um ser que fora humano e naquele momento pressentia e me alertava dos perigos da cidade. As pessoas fugiram espantadas com os gritos vindos da direção do voo da mulher-anjo. Corriam para dentro e para fora da estação.

Eu não compreendia que ela era um presente simbólico dado a mim. E ainda atônito, fui envolvido em suas asas ao meio da fumaça de uma grande explosão ocorrida naquele momento no trem subterrâneo. Vi línguas de fogo e corpos em desespero queimando até que veio um grande silêncio.

Os versos de Lu-Kei-meng ressoavam em minha cabeça:

Ganso selvagem
Longa é a rota de Norte ao Sul
Milhares de arcos estão armados no seu trajeto
No meio da fumaça e da bruma,
Quantos de nós chegaremos a Hen-Yang?

Fui arrebatado da estação para nunca mais voltar.

Se vivo, Raul Seixas faria 10.074 anos hoje! – Por Silvio Neto

Por Silvio Neto

Decifre as entrelinhas dos hieróglifos das pirâmides do Egito, do calendário Maia, das Itacoatiaras de Ingá. Leia os símbolos sagrados de Umbanda, as centúrias de Nostradamus e o Tarot de Crowley… Não importa qual seja o mistério, todos serão unânimes em lhe revelar: Existe um cometa errante; uma estrela bailarina que vaga no abismo do espaço sem fim flamejando um rock e um grito! Em sua jornada, ele só passa pelo nosso planeta a cada dez mil anos. É quando ele renasce e encarna como um Moleque Maravilhoso, trazendo ao mundo à sua volta mudanças profundas no seu pensar e no seu comportamento.

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Sua derradeira passagem por aqui durou apenas 44 anos. Mas foi suficiente para que um país inteiro de dimensões continentais se tornasse menos careta. Há exatos 74 anos, quando ele chegou por aqui em mais uma de suas passagens, esse intrépido cometa trouxe em seu rastro a bomba atômica, em 1945, fechando um ciclo da Terra conhecido como velho Aeon e trazendo à luz o Novo Aeon materializado em forma de música. Era o dia 28 de junho. Aquele, foi o dia em que a Terra parou. Mas antes disso, ele usou de seus artifícios alquímicos e conseguiu juntar as águas do rio São Francisco e do rio Mississipi, criando a fusão perfeita do rock’n’roll de Elvis Presley com o baião de Luiz Gonzaga e como um novo Macunaíma desvairado gritou em cima do palco do III Festival Internacional da Canção (1971) “Let me sing, let me sing (my rock’n’roll)”!

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Seu nome é o contrário do luaR pois ele é um cometa iluminado. Em sua metamorfose ambulante pela Terra, se fez de maluco para revelar sua genialidade; brincou de cowboy para mostrar que preferia ser um fora-da-lei; acumulou riquezas e glórias por um tempo para mostrar que o ouro é para o tolo.

Esse ano, em agosto, já terão se passado 30 anos de sua última visita aqui no nosso planeta. Ainda assim, seu rastro é tão presente, tão vivo, que é como se ele ainda estivesse por aqui, cruzando o nosso céu. E assim como as estrelas que vemos são muitas vezes apenas o reflexo de milhões de anos-luz de corpos celestes que ainda nos impressionam a visão, o cometa Raul Seixas, brilhará na mente e no coração de milhares de fãs por muitos e muitos anos até, quem sabe, sua próxima passagem há dez mil anos…

Meu comentário: grande Raulzito. Um artista sensacional que inspirou e inspira muitos de nós, fãs. Tanto pelo fascínio da linha tênue entre a feliz loucura da autenticidade, quanto pela sinceridade à bruta, sempre poetizada em um rock and roll dos bons. Viva Raul! (Elton Tavares)

O discurso discriminador do Marabaixo – Fernando Canto

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Foto: Elton Tavares

Texto de Fernando Canto Para o amigo Herialdo Monteiro

Não é de hoje que o Marabaixo é discriminado. Aliás, as manifestações culturais de origem africana sempre foram vistas como ilegais ao longo da história do Brasil. Do samba à religião, seus promotores foram vítimas de denúncias que os boletins de ocorrências policiais e os processos judiciais relatam como vadiagem, prática de falsa medicina, curandeirismo e charlatanismo, entre outras acusações, muitas vezes com prisões e invasões de terreiros.

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Foto: Gabriel Penha

Essa discriminação ocorreu – e ainda ocorre – em contextos históricos e sociais diferenciados, e veio produzida por instituições que tinham o objetivo de combater o que lhes fosse ameaçador ou que achassem associadas às práticas diabólicas, ao crime e à contravenção.

No caso do Marabaixo, há anos venho relatando episódios de confronto entre a igreja católica (e seus prepostos eclesiásticos e seculares), e os agentes populares do sagrado, estes que, por serem afrodescendentes, mestiços e principalmente por serem pobres, foram e são discriminados, visto o ranço estereotipado de que são “gente ignorante” e supersticiosa.

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Foto: Márcia do Carmo

É do século XIX a influência do evolucionismo que tomava como modelo de religião “superior” o monoteísmo cristão e via as religiões de transe como formas “primitivas“ ou “atrasadas” de culto. Para Vagner Gonçalves da Silva (Revista Grandes Religiões nº 6), nesse tempo “religião” opunha-se a “magia” da mesma forma que as igrejas (instituições organizadas de religião) opunham-se às “seitas” (dissidências não institucionalizadas ou organizadas de culto).

É do século XIX também os primeiros escritos sobre o marabaixo. Em um deles um anônimo articulista o ataca, dizendo-se aliviado porque “afinal desaparece o o infernal folguedo, a dança diabola do Mar-Abaixo”.

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Foto: Márcia do Carmo

Ele afirma que “será uma felicidade, uma ventura, uma medida salutar aos órgãos acústicos se tal troamento não soar mais…”. Na sua narrativa preconceituosa vai mais além ao dizer que “Graças ao Divino Espírito-Santo, symbolo de nossa santa religião, que só exige a prática de bôas acções, não ouviremos os silvos das víboras que dansam ao som medonho dos gritos dos maracajás (…), que é suficiente a provocar doudice a qualquer indivíduo”. Assevera adiante “Que o Mar-Abaixo é indecente, é o foco das misérias, o centro da libertinagem, a causa segura da prostituição”. E finaliza conclamando “Que os paes de famílias, não devem consentir as suas filhas e esposas frequentarem tão inconveniente e assustador espetáculo dessa dansa, oriunda dos Cafres”. (Jornal Pinsonia, 25 de junho de 1898)

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Foto: Márcia do Carmo

Discursos de difamação do Marabaixo como este e a posição em favor de sua extinção ocorreram seguidamente. O próprio padre Júlio Maria de Lombaerd quebrou a coroa de prata do Espírito Santo que estava na igreja de São José e mandou entregar os pedaços aos festeiros. O povo se revoltou e só não invadiu a casa padre para matá-lo graças à intervenção do intendente Teodoro Mendes.

Com a chegada do PIME – Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras – em Macapá (1948) o Marabaixo sofreu um período de queda, mas suportado com tenacidade por Julião Ramos, que não o deixou morrer. Tiraram-lhe inclusive a fita da irmandade do Sagrado Coração de Jesus, da qual era sócio fiel.

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Foto: Mariléia Maciel

Nesse período os padres diziam que o Marabaixo era macumba, que era coisa ruim, e combatiam seus hábitos e crenças, tidos como hediondos e pecaminosos, do mesmo jeito que seus antecessores o fizeram no tempo da catequização dos índios. Mas o bispo dessa época, D. Aristides Piróvano, considerava Mestre Julião “um amigo” (Ver Canto, Fernando in “A Água Benta e o Diabo”. Fundecap, 1998)

O preconceito dos padres italianos com o Marabaixo tem apoio num lastimável “achismo”. Os participantes são católicos e creem nos santos do catolicismo, tanto que a festa é dedicada ao Divino Espírito Santo e à Santíssima Trindade e não a entidades e voduns como pensam. Nem ao menos há sincretismo nele.

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Colheita da Murta Foto: Fernando Canto: Arquivo pessoal

E se assim fosse? Qual o problema? Antes de emitirem um julgamento subjetivo sobre um fato cultural é preciso conhecê-lo. É preciso ter ética. Ora, sabe-se que todos os sistemas religiosos baseiam-se em categorias do pensamento mágico. Uma missa ”comporta uma série de atos simbólicos ou operações mágicas” (Vagner Silva op. cit.). Observem-se as bênçãos, a transubstanciação da hóstia em corpo de Cristo, por exemplo. Um ritual de umbanda comporta a mesma coisa. O Marabaixo tem rituais próprios, ainda que um tanto diferentes. Por isso e apesar do preconceito ainda sobrevive. Valei-nos, Santo Negro Benedito!

(*) Do livro “Adoradores do Sol – Novo Textuário do Meio do Mundo”. Scortecci, São Paulo, 2010

Canção do Filho Agradecido* – Crônica de Fernando Canto

Por Fernando Canto

Minha mãe está ali, do outro lado da rua ao lado de minha irmã, me olhando. Mas eu não posso atravessar porque muitos veículos passam constantemente em alta velocidade. A alegria de reencontrá-las é grande e o coração palpita na possibilidade de abraçá-las, afinal faz tempo que eu não as vejo.

Elas estão lá e esboçam sorrisos de ternura, como que convidando para uma conversa longa ao redor da mesa onde um café fumegante feito em casa, saindo do coador, explode em seu odor. Os carros não param. Não há semáforos nesse cruzamento. Elas percebem meu desespero e espalmam as mãos pedindo calma, porque é perigosa a travessia e eu devo esperar o movimento dos veículos para poder passar. Fico agoniado e não tiro os olhos delas. Mas os carros dão lugar à manadas de animais em estouro, e quando a poeira passa, um trem se segue em seu lugar. É grande o movimento. E agora uma chuva fina molha os caminhões em comboio veloz no meio da rua, ensopando o som de suas buzinas barulhentas. Do outro lado da rua duas figuras diáfanas desaparecem progressivamente, indiferentes ao meu chamado, enquanto os obstáculos móveis pouco a pouco somem da minha vista.

Então eu acordo com os batimentos cardíacos fora do normal e uma imensa saudade rompe abruptamente os globos dos meus olhos embotados, formando milhares de gotículas cristalizadas no chão. É um dia de sol e chuva, mas de luz intensa varando os vapores no céu azul equatorial.

Sobra um espanto materializado na parede do quarto. Fecham-se as cortinas…

Restou-me a sensação do nada, um vazio cheio de alguma coisa, o sentido da ausência, não da falta, pois “não há falta na ausência”, diria Drummond inventando exclamações alegres por aí. Ficou ainda a lembrança das criaturas que desafiaram a vida e puseram filhos no mundo, predispostas que estavam a romper círculos enfadonhos e mesmices tentaculares que enredam a normalidade do ciclo vital.

E no interlúdio do sonho e da memória, do nascimento e da morte, do dia e da noite, uma canção renova-se mergulhada na saudade da planta e da flor. Uma canção encarna a melodia magnificamente soprada pelas ruas, onde só a escuta quem tem o ouvido treinado para ouvir sob o barulho dos carros da cidade. Dentro dessa canção se pronuncia o amor, palavra-escritura indecifrável para alguns ou guardada nos bolsos de outros. É uma canção que se inscreve em mosaicos, que venta e fustiga esconderijos de metal e é tecida com agulhas de ouro. Quem assobiá-la será feliz e descansará em macias almofadas de seda do oriente, recheadas de penas de ganso.

Por garantir essa promessa é que me alardeio proprietário de palavras inventadas, de músicas compostas em nome do amor e da memória. Eu narro essa façanha improvisada de fazer-me condutor do lume da saudade, a fim de vê-lo sempre aceso dentro do coração.

Inominada rutilância és tu, Mãe. Anjo astral, iluminadora. Grato eu sou pela concessão da espada nesta onírica epopeia inacabada em que me encontro e venço diariamente. Agradecido fico pelo indisfarçado crescimento das abelhas que colhem o pólen das hortênsias, dos jasmins e das papoulas que ainda florescem em teu jardim. Aqui teu filho lavra a terra, planta e separa o trigo onde lhe salpicam o joio. Aqui teu filho ainda pule a pedra bruta posta ao meio do caminho. Aqui ele canta a canção que lhe ensinaste para limpar os obstáculos e carregar os fardos inevitáveis que surgem nas ruas por onde passa.

Inefável rutilância tu és, Mãe. Fulcro lírico, bálsamo dos dias funestos, porto necessário ao barco sem destino. Grato eu sou pelos rios que atravesso nas pontes que me ensinaste a desenhar e transpor. Agradecido fico pelas metáforas da vida que Deus mandou-me e que eu, por ti, pude interpretar.

*Publicado em 2008, no Jornal do Dia. Macapá-AP.

Jogos e cooperação social – Crônica de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Certa vez, ao falar para um grupo de jovens sobre cultura e lazer, citei Câmara Cascudo, um dos estudiosos brasileiros mais cultos do seu tempo, folclorista e etnólogo, que costumava afirmar que o uso do jogo, o desejo de brincar é uma permanente necessidade humana. Para ele o exercício lúdico é a expansão do saldo energético que o homem (ou a criança) não pôde aplicar a uma atividade produtora, e essa disponibilidade de brincar não abandona o homem em toda a sua existência. A brincadeira, diz o folclorista, é o processo iniciador da criança nos domínios da psicologia, da dinâmica fisiológica, memória, inteligência, raciocínio, vontade, virtudes de honra, disciplina, lealdade e obediência às regras. A terminação de um brinquedo, para a criança, é sempre um momento tirânico, insuportável e incompreensível.

Historicamente essas observações já eram compreendidas pelos povos mais antigos. Nas cidades gregas os jogos eram considerados como essenciais para o treinamento de guerra, tendo, para isso treinadores especiais. Mas nem sempre a chamada “união do corpo e mente” fera respeitada. Às vezes os atletas eram proibidos de frequentar jantares sob o argumento que as conversas inteligentes lhes dariam dor de cabeça.

Para os historiadores os jogos olímpicos eram uma espécie de combinação de rito religioso e esporte, e só os vitoriosos ganhavam prêmios financeiros de vulto. Os perdedores eram ridicularizados e humilhados. Por isso era compreensível que muitos atletas estivessem dispostos a lutar até morrer para ganhar jogos como a “corrida de carruagens” e o “pancratium”, uma luta livre muito sangrenta.

Em certas sociedades os jogos são realizados mais para promover a cooperação. O antropólogo Dennis Werner nos conta que os índios Xavantes, do Mato Grosso, também gostam muito de esportes. Eles vão para o mato em duas equipes, cortam uma tora de buriti, de aproximadamente 1,0 metro, colocam-na nos ombros de um de seus membros e correm para a aldeia, passando, de vez em quando, a tora para outro membro da equipe. A “corrida de toras” é um rito cerimonial, mas ao contrário dos gregos, os índios não têm o espírito competitivo. Para eles não importa qual é a equipe que alcance primeiro a aldeia. O que importa é que cada homem dê o melhor de si para carregar a tora, e que a cooperação entre eles seja boa. Entre os Xavantes não existem jogos “até a morte”, afirma o antropólogo, que explica ainda que em sociedades pequenas as pessoas se conhecem muito bem e não precisam de “concursos” para distinguir habilidades de pessoas diferentes. E, como a competição poderia prejudicar a cooperação necessária para muitas tarefas comunitárias, é melhor evitá-la.

Entre os Mekranoti, existe uma curiosidade: quando jogam futebol brasileiro os gols não são contados. Eles apenas notam, informalmente, que está se esforçando bem e quem não está. Assim um esporte pode ser combativo sem ser competitivo. Em algumas tribos se praticam lutas corporais, mas ninguém é declarado vitorioso. Essa correlação, segundo Sipes, desmente o argumento de que os esportes servem como “válvula de escape” para sentimentos agressivos. Serok e Blum afirmam em suas pesquisas que os delinquentes juvenis preferem jogos físicos e de acaso (bingo), enquanto os não-delinquentes preferem os de estratégia, como o xadrez.

Diante disso seria interessante motivar os delinquentes para jogos que envolvem mais estratégias e menos fatores de casualidade. Útil seria, quem sabe, até se mirar no exemplo dos nossos índios.

O valor das artes e os artistas plásticos – Crônica porreta de Fernando Canto

Por Fernando Canto

O Amapá sempre foi muito injusto e ingrato com seus artistas plásticos. Talvez porque não vivem na mídia como os músicos e compositores ou, mais raramente, como os escritores quando premiados.

Há muito acompanho a evolução das artes amapaenses, pois sempre admirei a pintura e busquei incentivá-la, tentando valorizar cada novo artista que surgia e promover aqueles mais considerados, com exposições montadas dentro e fora de Macapá. Por acompanhar esse processo possuo uma razoável coleção de telas e esculturas de diversos artistas, iniciada na década de 70. Algumas figuram em catálogos, capas de livros e outros impressos e já participaram de mostras periódicas de arte.

Raríssimos são os fiéis que vão às missas na igreja mais antiga da cidade que sabem identificar a autoria dos belos painéis iluminados atrás do altar. “Fuga para o Egito” e “São José Carpinteiro”, exemplos clássicos de pintura acadêmica, são do padre Lino Simonelli, aquele padre italiano brincalhão de barba longa e branca, que a todos envolvia com sua simpática e humilde forma de ser. Poucos também deram o devido valor ao padre Fúlvio, um arquiteto italiano que projetou igrejas e outras obras importantes da Diocese de Macapá. Fúlvio também pintou dezenas de obras de arte com seu estilo bizantino, enriquecendo de detalhes o traje dos santos retratados, as cercaduras e coroas, sem contar que o tipo de tinta e as cores que usava davam um significado especial às telas e um valor estético fora do comum.

 

Uma das maiores expressões do modernismo brasileiro morou no Amapá. Pelo que conheço há apenas uma única obra de Aluísio Carvão em Macapá. Está na residência governamental. É uma pequena pintura da grade de ferro de um calabouço da fortaleza de Macapá em tons vigorosos de vermelho claro-escuro, adquirida provavelmente no primeiro governo do Território do Amapá. Carvão era cunhado de Janary Nunes. Premiadíssimo, ganhou bolsa de estudos para estudar pintura na França e se radicou no Rio de Janeiro, onde suas obras foram valorizadas e seu trabalho reconhecido.

Muitos dos nossos melhores artistas migraram para aperfeiçoar suas técnicas. R. Peixe, que pintava vasos e ladrilhos na antiga Olaria Territorial, estudou no Rio, voltou e se tornou um dos mais importantes artistas locais. Manoel Bispo, o mais fantástico surrealista que conheço, e Olivar Cunha estudaram na escola do Parque Lage, também no Rio. Já Manoel Costa, que misturou estilos de Bianco e Portinari nos seus trabalhos de temática amazônica, consagrou-se com seu talento e ainda hoje realiza exposições no Brasil e no exterior. Vicente Souza, o pintor dos bambus, premiado na Europa, era oriundo do município de Amapá. Infelizmente teve a carreira interrompida pelo seu brutal assassinato no Rio de Janeiro.

O. Cunha, que a todos surpreendeu com a confecção de painéis no programa televisivo “Roda Viva”, apresentado pelo jornalista Carlos Lobato na TV Band, vive em Vitória, no Espírito Santo, onde trabalha como pintor e restaurador de obras de arte e até de igrejas. Considero O. Cunha um dos mais talentosos artistas locais, de quem cultivo a amizade e adquiro telas há mais de trinta anos. São muitos os artistas amapaenses, antigos e novos, todos com brilho próprio que admiro pela criatividade e talento, e torço para que despontem nesse difícil cenário das artes plásticas nacionais. Entre eles estão o Dekko, Tom D.C., Limeira, Homobono, Grimualdo, Ivam Amanajás, Wagner Ribeiro, Irê Peixe, Ernandes, Josaphat e Herivelto. Agora só falta o poder público fazer a sua parte e valorizar esses extraordinários artistas que merecem ser reconhecidos pelo conjunto da sociedade. Porque de uma coisa tenho certeza: todos eles valorizam as coisas de nossa terra.

CABA NO BICO (Crônica de Fernando Canto)

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Crônica de Fernando Canto

Certa vez, no sítio de um amigo nas terras quilombolas do Curralinho, acompanhei a professora Raquel fazendo um dos mais difíceis pratos da gastronomia nordestina: a buchada de bode. Foram aproximadamente quatro horas de trabalho até a refeição deliciosa esperada por todos os que ali se encontravam, num sábado ensolarado.

Nessa feitura entre o tempo e o desejo angustiado da água na boca a professora assobiava uma antiga modinha do cancioneiro popular. Então veio o comentário infeliz: “ah uma caba nesse bico”. Ela redarguiu com toda a calma: “por que quando a gente assobia sempre dizem isso”? E completou: “eu assobio porque estou feliz”. E continuou seu trabalho, deixando o interlocutor perplexo com a resposta.

Assobiar porque se está num estado de felicidade… Que frase mais bonita, solta em uma época em que é cada vez mais raro encontrar alguém assobiando na rua ou silvando por aí sem incomodar as pessoas. Assobiar não é tão somente soltar um som agudo, exprimir irritação vaiando algo ou alguém, mas a expressão pura da alma ao manifestar a alegria. A mata assobia, o rio assobia, a natureza lança com o vento sibilante sua forma manifesta de nos avisar sobre alguma coisa que vem.

A cultura amazônica deixa na figura fantástica da Matintaperera a inesquecível marca de um assobio que incutia o medo às criancinhas, através de uma melodia simples plenamente associada a essa lenda. Até hoje lembro a melodia que minha mãe assobiava para chamar a Matinta, que era uma velha fumante de cachimbo e que exigia tabaco dos que se arriscavam na floresta densa.

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Lendas à parte, o desejo do outro de transformar a alegria do assobio em dor labial, posto que a caba (do Tupi kawa) é um vespídeo temível (um marimbondo de peçonha forte, que tem uma ferroada de fazer inchar a pele de qualquer cristão), é uma reprimida vontade que vem à tona quando a alegria do assobiador se manifesta. É impressionante como as pessoas dificilmente evitam dizer ou pensar a frase infeliz. Não é que eu pense que isso seja apenas uma ação ou um pensamento sádico, mas parece que o propósito – inconsciente ou não – é atrapalhar a felicidade do outro ao desejar uma grande dor causada pela ferroada do inseto. É uma coisa que já está calcificada em nossa memória coletiva, como se quiséssemos também ser felizes e não pudéssemos por pura incompetência ou inveja; como se quiséssemos também a própria dor transferida num processo amargo e masoquista, um castigo desejado pelos nossos mais recônditos pecados cometidos e acumulados pela vida. “Ah uma caba nesse bico” também exprime a uma espécie de rancor contra o inseto que apenas se defende naturalmente se provocado. Já vi casos de moleques que esperavam pessoas passarem perto do ninho de caba para atirarem pedras com baladeiras; li relatos de igrejas e casas que se incendiaram durante a queima de ninhos e conheci vítimas da peçonha da caba tatu. Disseram-me que a dor é terrível. Imaginemos então o ferrão de uma caba de igreja na boca de alguém. E o inchaço seguido. Possivelmente uma pessoa alérgica morreria em algum lugar sem assistência médica como a maioria dos lugares dessa Amazônia imensa.

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A simples resposta da professora Raquel ensina a lição do calar-se diante de uma poética expressão de felicidade. Remete, sobretudo, para a necessidade de penetrar a fundo nesse arcabouço de preconceitos que herdamos coletivamente em nosso inconsciente. E nos faz refletir que o assobio é um estado de espírito que poucos alcançam quando seus bicos soltam melodias para encantar o mundo. Experimente assobiar uma música e seja feliz.

TEATRO DE CONFLITOS – Crônica porreta de Fernando Canto

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Crônica de Fernando Canto

Enganam-se os que pensam que a área geográfica onde se situa o Amapá nunca tenha sido palco de lutas sangrentas pela conquista da região amazônica. Durante séculos espanhóis, holandeses, franceses e ingleses tentaram se fixar na região visando principalmente a foz do rio Amazonas, caminho esse extremamente protegido pelos portugueses que fundaram suas bases militares e comerciais desdcaravelas (2)e o início do século XVII. Segundo Cristóbal de Acuña, o autor de “Novo Descobrimento do Rio das Amazonas”, que na expedição de descimento de 1639 foi o escrivão dessa viagem comandada por Pedro Teixeira, um anseio no coração de Francisco Orellana o fez entregar-se a uma viagem às correntezas desse rio.

Foi no ano de 1540 que esse episódio se sucedeu, tendo o rio recebido o nome do seu descobridor. CParreiras-conquistaontente, o rei Carlos V, da Espanha deu-lhe as terras da região denominando-as de Adelantado de Nueva Andaluzia, tendo ordenado que dessem a ele três navios com tripulação e tudo o que fosse necessário para que voltasse ao local e o povoasse em seu régio nome. Mas sua tripulação não teve sorte. Foi morrendo no meio do caminho. Quando chegou aqui teve que abandonar os navios e construir lanchas. É provável que tenha morrido lutando contra os índios locais.

livroEm 1623, após combater estrangeiros e índios e destruir a fortaleza de Gurupá, o Capitão-Mor Bento Maciel Parente vai combater na “ilha dos Tucujás”, lugar que Antonio Baena acredita ser a costa de Macapá, onde há muitos anos habitavam os índios Tucujus. Entre os eventos dessas batalhas o autor de “Compêndio das Eras da Província do Pará” narra que uma nau de porte em socorro dos batidos surge no rio, próxima da área dos combates:

“Marcha imediatamente o Capitão-Mor com as forças: ataca a nau ao raiar do dia, e de tal maneira que os inimigos não querendo ser aprisionados praticam o último arrojo a que pode chegar a extrema desesperação, lançando fogo ao navio, o qual como matéria tão disposta é tragado brevemente pelo guararapesincêndio, e tudo o mais que no seu bojo encerra, menos um rapaz, que arremeçando-se ao mar obtém salvamento”.

No ano de 1630 corre no meio do povo do Pará que os holandeses, coadjuvados por 500 ingleses estão “fazendo assento na ilha dos Tucujus”. E em janeiro de 1631 o capitão Jacome Raimundo de Noronha, com 36 c19-02-segunda-batalha-guararapes-the-history-channelanoas bem guarnecidas de fuzilaria e frecharia chegam ao local. É feito o ataque e todas as medidas tentadas pelos inimigos são neutralizadas. Baena diz que “No dia da última peleja quando a noite no céu todo espalhava as pardas sombras foge em um lanchão e duas canoas a maior parte dos adversários com seu chefe Thomas, homem acreditado pelo seu valor nas campanhas da guerra de Flandres: e rendem-se com promessa de lhes salvar as vidas os que não desampararam o Forte: o qual é demolido até os alicerces”.

imagesFeliciano Coelho, filho do governador e Capitão General do Maranhão e Grão-Pará, Francisco Coelho de Carvalho, que chega a Belém revestido da autoridade de Vice-gerente do governador logra várias vitórias em pouco tempo: Reforça Pedro da Costa Favela no combate a ferozes ingahibas insulanos da foz do Amazonas. Na noite de 9 de julho de 1632 o Capitão Pedro Baião de Abreu ataca os ingleses no forte Camaú, construído por eles aos pés dos fortes Torrego e Felipe, demolidos pelos portugueses. Os soldados se rendem, mas o comandante Roger Fray, que estava regressandmendonça furtado[5]o da foz do rio à espera dos 500 homens de Londres é abordado pelo Capitão Ayres de Souza Chichorro, que sob as ordens de Feliciano Coelho, ataca a sua nau “desferindo sobre ele golpes tão poderosos que lhe levam de remate a vida”. (A.Baena). No ano seguinte é avistado o navio que Fray esperava.

Ao longo do tempo, inúmeros outros conflitos são descritos em correspondências oficiais, principalmente ocorridos entre portugueses e estrangeiros, estes que em 150 anos antes da fundação de Macapánão lograram êxito em suas conquistas.

Baena, o historiador, também foi governador interino da Praça de Macapá em 1821, na Província dos Tucujus, o mesmo lugar que chamara de “theatro constante de bellicos conflictos”.

JABUTI NÃO SOBE EM ÁRVORE – Crônica de Fernando Canto

 
Paulo lopes Paulinho Lopes, piloto dos bons, já guiou políticos e jornalistas por sobre a imensidão da selva amazônica, sob o azul do céu amapaense. É daqueles profissionais da aviação que também já passaram por muitas situações de perigo embaixo de trovoadas e turbulências, na calma, levando passageiros e aeronaves a seu destino.
 
Sempre que posso encontro com o dito cujo no bar do Abreu. Conversar com ele é desopilar o fígado, pois o seu repertório de piadas e citações e tão grande e renovado que ninguém aguenta. Toda vez tem alguma coisa nova para contar, isso quando ele não inventa suas próprias anedotas tirando sarro dos frequentadores que ficam do lado de dentro do balcão do bar. O baterista “Bolachinha” é o seu foco predileto, juntamente com a sua famosa acompanhante “batgirl”. Expressões como “Tá tudo escorrendo bem?”, “Teu borga” já fazem parte do “dialeto” ali falado, no qual as frases fesceninas ou mesmo consideradas chulas fazem parte de um repertório que até dicionarista vai lá beber na fonte.
 
A assistência ri das frases mais eloquentes e das mais óbvias. Ele conta, por exemplo, que um migrante chamado Ivan Macaco convidou o Mapíngua para ir trabalhar em Caiena: “- Bora pra Caiena, rapaz, que lá o dinheiro tá correndo solto.” E o Mapíngua respondeu: “ – Tu é doido, é? Se aqui em Macapá que ele tá parado eu não consigo pegar ele, imagina lá em Caiena…” O repertório do homem tão grande que a gente se esquece de muitas histórias.

Ele eventualmente filosofa ao dizer assim: “Dá a razão para quem não tem, porque quem tem não precisa”. É uma forma de “equilibrar a balança”, diz o mestre. Por outro lado traz novidades do seu amigo, o professor João Maria Barros, que conceitua cultura como “tudo aquilo que você consegue lembrar depois de esquecer tudo aquilo que aprendeu”. Paulinho faz releituras e intertextualidades de expressões muito usadas por estas plagas como “Meu nome não é osso para andar em boca de cachorro”, e as remete para “nem milho para andar em bico de galinha” ou “nem ração para andar em boca de porco”. 
 
Mas é nos apelidos puxados pela sua memória que a assistência ri e informa outros bem engraçados. Para todos há uma história singular como os magrinhos que ficaram marcados pela alcunha de “Carapanã de Cueca”, “Filé de Gia”, “Filé de Borboleta”. Os mais feios são apelidados de “Sapo Virado do Avesso” ,“Caranguejo de Ganho”, porque são baixinhos e magros, “Cabelo de Boneca Velha”, “Bibelô de Funerária”. “Abelha”, “Pavulagem” e “Rolha de Poço Artesiano”, são interessantes, assim como os impagáveis “Diabo Assado” e “Tamaquaré no Choco”.
 
Logicamente que sob uma análise mais acurada esses apelidos denotam preconceito, e até discriminação e racismo. Mas como no ambiente de bar o que é sociológico não se mensura por categoria social ou freqüência estatística nessas horas, e sim pela alegria contagiosa que uma boa piada tem, os clientes riem e se congratulam aumentando o rol do anedotário que os homens criam para viverem mais alegres.
No bar o tempo passa rápido quando um bom contador de histórias como o Paulinho Piloto energiza o ambiente. E ali tem contadores como o Bira e o Aníbal Sérgio que entram na roda e nos tornam também possuidores desse élan que move a vida amapaense. Por isso mesmo o Paulinho conta até fábulas para que possamos meditar criticamente sobre a política local, como esta: “Dois compadres conversavam lá no rio Maruanum. O primeiro pergunta meio espantado. – Mas como o jabuti tá ali, compadre, se jabuti não sobe em árvore? O segundo responde. – Das duas uma: ou ele foi pra lá com a força da maré ou colocaram ele lá.”
 
( Do livro Adoradores do Sol – Novo Textuário do Meio do Mundo. Scortecci, São Paulo, 2010).

 

NEM LÍNGUA DE CACHORRO AJUNTA – Crônica de Fernando Canto ( e recado pros manés de plantão)

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Crônica de Fernando Canto

As más línguas, quando querem, destroem qualquer situação, pessoa ou relação aparentemente estável. Já vi coisas se transformarem da noite para o dia em verdade absoluta, bastando para isso uma pequena interrogação irônica ou uma afirmação leviana, por um balançar de cabeça de pessoas consideradas sérias.

Em muitas dessas situações inventadas está escondida a verdadeira intenção do difamador, que lança seus “diabinhos” e deixa que eles corram como rastilho aceso em direção à banana de dinamite. Daí, os pedaços voam e se esmiúçam cada vez mais na cabeça dos ingênuos que se convencem dos fafofoca1tos e espalham a falsa notícia, para a satisfação do interessado. A estratégia do caluniador conta sempre com o apoio das “rádios cipós” que se ancoram pelos corredores das repartições públicas, pelas esquinas e bares. Elas são fontes secundárias de informações pelo princípio empírico e popular de que “onde há fumaça há fogo”, e, aliás, aproveitada com muita competência por apressados comunicadores locais, nem um pouco interessados em checarem a “notícia” plantada.

Muitas vezes, e sem querer, somos atores nesse processo, que é da natureza humana, uma vez que vivemos em grupo, nos comunicamos por diversos meios e temos interesses comuns e particulares. levianoTemos desejos e conflitos políticos e portamos uma conduta psicológica calcada em personalidades próprias e bem diferentes uma das outras. Talvez por isso nem nos damos conta que ao recebermos uma mensagem, seja de onde e de quem vier, nos tornamos personagens que vão beneficiar ou maltratar alguém ou alguma coisa.

Os políticos, de modo geral, se valem desses expedientes quando querem salvaguardar seus interesses, mormente na hora que os argumentos se esgotam. 1355812829Já descrevi aqui neste espaço invenções articuladas com o propósito de inverter o jogo das eleições. Lembro que ouvi pessoas sérias afirmarem ter visto o marido de certa candidata a prefeita sangrando no Pronto Socorro, por causa de um tiro dado pelo irmão do candidato que venceria as eleições. Lembro ainda que em outra eleição deu no rádio que o candidato mais velho a prefeito da capital havia falecido. O boato crescera tão rápido logo pela manhã que um batalhão de repórteres saíra à cata do suposto morto. Quando ele se manifestou nas rádios já era tarde. Seus eleitores não queriam “perder o voto” e já haviam votado em outros candidatos. Esses são apenas pequenos episódios que envolvem boatos e fofocas no meio político, onde um criativo mundo se articula diariamente em permanente conflito na busca da estabilidade e poderes.facefofoca

A calúnia, a difamação e a injúria são crimes previstos em lei. São palavras diferentes para ações legais muito semelhantes que tiram o sono dos “bocudos” quando têm de pagar indenizações na justiça a alguém a quem ofenderam moralmente de forma leviana e irresponsável. São elementos do controle social necessários à estabilidade da sociedade, dada à variabilidade e às diferenças das influências ambientes.cachorro_calor[6]Nosso comportamento é motivado pelas necessidades psicológicas herdadas e pelos anseios sociais adquiridos. Somos induzidos a agir por isso e conforme nossas necessidades, ambições e interesses de ordem pessoal. Daí, também, advém os desvios de conduta, os excessos temperamentais e a ausência de educação e controle que fazem as pessoas disseminarem suas opiniões ofensivas à dignidade de alguém. A Lei serve para controlar e punir esses crimes. Mas, uma vez feito o estrago, difícil é a reparação. Segundo o seu Jurandir, do Bailique: “Depois que o caldo cai no chão nem língua de cachorro ajunta”.

* Crônica de novembro de 2007 e publicada no livro Adoradores do Sol, de 2010.