PEIXE-ANTÔNIO – Conto de Fernando Canto Para Aimoré Nunes Batista e seu Martins

Chovia para cima em nosso sítio ao pé do monte Galalau.

Nem eu nem meus irmãos entendíamos aquele prodígio. Era como se a água do poço evaporasse da terra, formasse nuvens baixinhas e fosse embora, deixando tudo seco por dias seguidos. Assim mesmo a gente não passava necessidade nem sede. Meu irmão caçula, que tinha frequentado a escola da cidade enquanto a gente trabalhava na roça e na criação de peixe em cativeiro, dizia que era uma tal de ilusão. Ilusão de ótica. Como era sabido esse meu mano…, mas eu mesmo não me convencia. Perguntava para o meu pai, ele nem… Só fazia dizer: – Arre égua, menino, vai trabalhar que é melhor. Deixa de perguntar besteira. Isso é assim mesmo desde que eu me entendo por gente.

Quando a gente descia a serra até a cidadezinha próxima para vender a produção e comprar mantimentos, o seu Toco do Armazém, que também era meu padrinho de batismo, perguntava pelo pai. – Está sem poder se levantar, com um tal de ácido úrico e dores no peito, eu dizia. – Leva esse remédio aqui pra ele, menino. Dizem que é muito bom. É um unguento feito do leite de uma árvore chamada amapazeiro, lá do Norte.

Aí ele perguntava: – Quêde os peixe-antônio? Ele mandou pra mim? Claro, eu dizia. Mandou essa cambada fresca aí. E lhe entregava uns vinte piaus, retirados do criadouro, enfiados numa penca de sisal. – Mas por que meu padrinho chama esses peixes de peixe-antônio? Ele ria e não dizia nada. Eu achava que era uma brincadeira dos dois velhos amigos.

Seu Toco era baixinho, mas me disseram que era muito valente. Já tinha posto uns jagunços para correr, com um sabre que ganhara de um cangaceiro verdadeiro dos tempos de Lampião. E tinha muitas qualidades: tocava uma sanfona melhor que o Luiz Gonzaga, diziam. Eu nunca o tinha visto tocar, mas como gostava dele, só fazia espalhar a história. Eu cheguei a perguntá-lo: – Quêde a sanfona, seu Toco? O São João este ano vai ser bom… Já está meio frio lá na serra.

Ele dizia: – O fole tá furado, vou mandar consertar ou comprar outro assim que Deus e o Padim Ciço me permitir. Era mais uma conversa mole de quem fica enrolando e mascando tabaco. Quando não tinha sacos plásticos o seu Toco nos aviava compras a varejo com papel de embrulho. Eu ficava besta de ver a agilidade dele enrolando os dedos no papel até a mercadoria ficar fechada e não abrir tão fácil.

Enquanto eu tirava uma prosa com ele, meus irmãos ficavam brincando e passeando pela praça. Certa vez o caçula veio chorando porque um rapazote chamou todo mundo da minha família de mentiroso. Era um molecão invejoso que só. Fui tomar satisfação e acabei brigando. ]

A gente se feriu todo rolando pelo chão até nos apartarem. Já em casa minha mãe lavou minhas feridas com água e tintura de jucá, que dói que só uma peste. Mas nada disse a meu pai, senão ele ia se enfezar.

Ficou latejando na minha cabeça as palavras do rapazote brigão. Na semana seguinte fui novamente à cidade e perguntei ao meu padrinho por que ele tinha chamado a gente de mentiroso. Seu Toco me chamou num canto, pediu para eu sentar em um saco de milho e disse para eu não ligar. É que corria a lenda que no nosso sítio tudo era muito maluco. E por cima ainda tinha essa história de chover para cima e outras conversas de mentiroso.

– Mas não é mentira, seu Toco. Eu mesmo vi muitas vezes esse fenômeno, disse-lhe. Ele me olhou, me olhou, me olhou no fundo dos olhos e eu sustentei olhar. – Bom, então tu sabes dos peixe-antônio, hem macho?Sei não. Só ouço o senhor falar, respondi. – Então pergunta pro teu pai, diz pra ele que já é hora de tu saber. Levantou-se, deu três tapinhas nas minhas costas e mandou eu ir embora.

Subi a serra com a fubica gritando e esfumaçando de óleo queimado. Meu pai parecia adivinhar, pois estava me esperando a cavalo na porteira do sítio. Antes que eu falasse, ele fez um sinal e disse: – Vamos lá em cima do monte Galalau.

Montei na garupa do cavalo e fui com ele pela estrada íngreme, passando dos limites que até então conhecia. Ficamos sentados até o pôr-do-sol. Ele não falava nada. Fez uma fogueira para amenizar o frio e disse para eu ficar em silêncio. Eu obedeci. Não dormimos. O céu tinha tantas estrelas que pareciam mosquitos brilhosos rondando em nossas cabeças.

Eu já estava agoniado com o silêncio do meu velho pai, aquele homem forte que falava sempre o que e quando queria, barulhento e alegre com os filhos. Eu era o terceiro. Os dois antes de mim já tinham, como se diz, batido as botas há tempos. Agora eu era o varão e a alegria dos meus pais, e responsável pela criação de mais cinco, quatro homens e uma mulher, já que ele só vivia doente e só melhorava com os remédios que o seu compadre Toco dava para ele. Minha mãe até hoje chora por essa perda, do tempo em que moravam na caatinga, nos cafundós do sertão de meu Deus.

A noite fria custava a passar e só se ouvia o crepitar da lenha no fogo e os silvos das estrelas cadentes. De repente começou a ventar e a chover para cima uma água vaporosa, como a formar um rio de nuvens escuras bem em cima das nossas cabeças, onde as estrelas desapareciam. Meu pai ficou de joelhos e disse: – Obrigado, meu Santo Antônio. Então começaram a cair piaus sobre nós, se debatendo no chão e uns já se assando na fogueira, que resistia à fina chuva. Eu confesso que fiquei maravilhado com aquilo. Meu pai ria e me dizia: – Tu tá vendo, meu filho. Isso é a realidade do nosso sítio. Eu fiz uma promessa pro Santo salvar tu e o compadre Toco da peste da fome que matou teus irmãos e todos os filhos dele lá no agreste. Antônio me fez casar com esta terra prodigiosa onde reconstruímos nossa vida. Fiz uma capela pra ele com o suor do meu trabalho e do meu compadre, que também é meu primo, e o Santo ainda me recompensou com isso que tu estás vendo. Meu pai ria, dançando um xaxado inexistente, arrastando as sandálias como se estivesse em uma festa. – Ah, a sanfona do compadre Toco agora, dizia, se esbaldando de rir. Nem parecia que tinha gota.

Comemos uns peixes-antônio assados e guardamos a maior parte em uma saca que ele levava no cavalo. A noite passava e o meu pai não parava de me contar fatos de sua história. O segredo dele acabou ali, no monte. Agora era todo meu. Mas ele me disse que estava esperando uma coisa. Ficou em silêncio como antes. E o tempo passou.

Antes de amanhecer choveu para cima novamente. Ficamos molhados na madrugada e a fogueira se apagou. Ouvi o estrondo de um trovão, o cavalo relinchou de medo e uma avalanche de peixes piaus rolou morro abaixo. Consegui puxar o cavalo, mas meu pai ficou soterrado para sempre naquela terra que há tempos lhe dera o sustento e alimentara sua alma generosa.

A PULSEIRA DE DAS DORES E SEUS VIZINHOS VULTURINOS – Conto de Fernando Canto

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Conto inédito de Fernando Canto

Inexplicavelmente Das Dores perdeu uma pulseira talvez próximo a sua casa ou quem sabe dentro do quarto. Joia de ouro com pedras de brilhantes, herança da mãe que herdou da bisavó que ganhou como pagamento do aborto feito em segredo na sua patroa branca nos meados do século passado. Uma relíquia familiar que atravessou mais de setenta anos na família e nunca foi vendida, mesmo com tanta crise na economia do país e a pobreza da família.

dsc02094– Umbora, gente. Vamos olhar em baixo da cama. Laurindo, procura em baixo do assoalho. Joana, vê lá na frente da casa. Luarana, quem sabe não perdi quando a Lalata me brincou ontem à noite quando cheguei do batalho… Ah, essa cachorra é de morte… Mesmo assim eu gosto muito dela, não sou que nem vocês que vivem brigando com ela e nem banho dão na bichita. Eu, hem?!
– Bora, bora. Todo mundo procurando. Essa pulseira é relíquia de família que graças a Deus nunca a gente precisou se desfazer dela. Foi penhorada só uma vez na Caixa, num caso de doença com o pai de vocês.b061141b42d0797f3f3ced36f41a37df

E todos se esmeram nessa procura que já dura um dia inteiro de sábado e já entra pela noite, atraindo a curiosidade dos vizinhos. E Das Dores conta como foi que a perdeu por duas vezes e que fez promessa para São Judas Tadeu. Religiosa que só ela, na primeira vez vinha da missa na garupa da bicicleta do marido, o Júlio, que Deus o tenha em bom lugar depois que morreu duma doença que todo mundo acha que só dá em alcóolatra, uma tal de cirrose hepáti.

santinho-de-so-judas-tadeu-milheiro-pagar-promessa-7834-MLB5285907269_102013-O– Hepática, mamãe, conserta Luarana.
– Não repare, filha, é que fico nervosa quando lembro que seu pai nunca bebeu e nunca fumou. Bom, mas eu dizia que quando descíamos a ladeira da Rua São José batemos num buraco. Eu nem senti a falta da pulseira. Só dei conta quando chegamos em casa. E era umas nove horas da manhã de um Domingo de Páscoa. Eu logo acendi uma estearina e prometi a São Judas Tadeu que se ele me achasse a pulseira eu ia mandar rezar uma missa de ação de graças no dia dele. Pois não é que Júlio fez o percurso ao inverso e a pé, e logo achou a joia na beira de uma poça de lama no meio da ladeira? Que alívio! Deus me livre se perdesse ela. Eu ia chorar um mês, mas só chorei um tiquinho até o Júlio chegar. Nesse mesmo ano, por ocasião do batizado do Laurindo, eu perdi a pulseira de novo acho que na hora em que ele chorou na pia batismal quando o padre colocou sal na testa dele, ministrando o Santo Sacramento. Ele espernegava tanto que tive que tirar ele do colo da comadre Tibéria, a tua madrinha, seu porcaria. Vê se vai fazer uma visita pra ela uma hora dessas. Toda vez que ela me encontra reclama que tu nem olhas mais pra ela quando passas na frente da casa dela. Isso é que é… Esses meninos de hoje não respeitam mais os mais velhos.images (7)

– Bom, mas aonde é que eu estava mesmo?
– No colo da minha madrinha, mãe.
– Ah, mas por quê?
– Na pia batismal, mãe… A pulseira.
– Sim, claro, a pulseira. Essa minha cabeça mesmo…! A pulseira já tinha sido consertada lá no Serápio, aquele ourives crioulo que nem nós, que também é corredor de bicicleta. Não sei nem se ainda vive… Mesmo assim ela se perdeu ali, ó. Ali dentro da igreja do padroeiro. Eu chorei muito, mas não me desesperei. Fui chegando em casa e logo fazendo promessa pra São Judas Tadeu. Eu disse pra ele: Olha, São Judas, o senhor que é o padroeiro dessas causas impossíveis veja se dá um jeito de achar minha única e verdadeira joia. Prometo que se achar vou dar o seu nome ao meu próximo filho. Mas quem nasceu foste tu, Luarana. Sim. Eu não podia desconfiar do padre, coitado, muito menos dos padrinhos. Mas ficou aquela situação constrangedora, todos me olhando como se dissessem “não fui eu”.tumblr_inline_mvzrmcKMN11qje4ic

Eu costumo dizer que São Judas não falha. Não é que quarenta e três dias depois e quarenta e três velas acendidas a pulseira apareceu depois da missa das sete de domingo, em cima do altar. O padre não me disse nada porque o confessor deve guardar os pecados dos fiéis, mas uma forte intuição me dizia que quem achou a pulseira e a escondeu com outras intenções foi um coroinha que eu conhecia, pois o danado nunca mais foi ajudar o padre na missa.coroinha

Das Dores fala do seu apego à pulseira, da história da pulseira, do que sentia nas ocasiões especiais quando devia usá-la. E vai relembrando fatos e vai mandando nos filhos na busca desesperada, pois já é noite e os vizinhos, adultos e crianças, vasculham a área solidarizando-se com ela. Todos correm para ajudá-la com o consentimento febril da dona da casa. E vão descobrinVELHO BAÚdo coisas e velhos segredos familiares nas cartas e objetos familiares há tempo acumulados nas gavetas das cômodas, nos guarda-roupas, nos escaninhos da estante e até em um velho baú de mogno, uma devassa permitida aos curiosos da rua.

Como a noite avança alguém lembra que também é véspera do ano novo e que agora estavam mais preocupados com a ceia e o brinde do réveillon do que procurar um objeto perdido. Mas como é quase ano novo, os vizinhos, adultos e crianças, já fazem a festa em sanha vdownload (3)ulturina na cozinha de Das Dores, abrindo a única garrafa de frisante e o porco assado preparado pelas suas mãos no dia anterior. Ela se levanta de onde estava, vê a casa toda revirada, senta-se na poltrona da sala, pálida e com a respiração dificultosa. Depois chama os filhos e os vizinhos com ar de envergonhada e mostra a pulseira, balançando-a e deixando o ouro brilhar pelas luzes da velha árvore de natal do canto da sala, quase desmontada pela curiosidade alheia. Todos perguntam em uníssono.

0,,12176095-EX,00– Onde ela estava?
– Aqui no meu bolso, ela diz. O tempo todo no meu bolso.

E cai para frente estrebuchando, na hora da passagem do ano, esquecida de todos e absolutamente morta naquele momento ilógico, quando todos comemoram o ano vindouro ouvindo e vendo os fogos explodirem, colorindo o céu lá para as bandas da Beira-Rio.

Kumarumã: a aldeia que ensina a viver – Crônica de Mariléia Maciel

 

Percorrendo o rio Uaçá, segue-se o curso do rio Curipi em uma viagem onde os mitos brincam na realidade. Na viagem de voadeira, as inúmeras histórias dos jacarés da região não me deixaram sentir nas mãos a água jogada pela velocidade do motor ou dar uma esticada colocando as pernas para fora do barco, carregado de combustível e mantimentos. 
 
Não precisa ter medo, eles só ficam estirados na beira do rio a partir de setembro, me dizia seu Genésio.
 
Então lembrei que agosto acabava em três dias e, com a loucura que está a natureza, podia ser que os jacarés antecipassem o calendário. Por via das dúvidas me encolhi e contorci o corpo quando um bicho cascudo nos espiou e deu um mergulho com a proximidade da embarcação. Pronto, agora ele vem por baixo e vira o barco engolindo a todos, pensei.
 
Nada disso aconteceu e a viagem seguiu na companhia dos peixes, garças, gaviões e outros bichos, e os cinco índios, que se comunicavam entre si em patuá. Eles pescam aos montes com as canoas encostadas nas margens do rio. É comum famílias inteiras, às vezes só o homem e outras só as crianças se encarregarem do almoço e da janta.  
 
Tá longe, seu Genésio?
 
Não, é logo ali, dobrando aquela mata, quando passar o igarapé.
 
Me respondeu, mas em seguida comentou com  sinceridade:
 
Índio quando diz que é perto é porque é longe, dez minutos pra gente é uma hora pra vocês.  

 

Assim, chegamos no meio da viagem, o Encruzo, onde os índios pagam suas penas trabalhando na natureza, em uma prisão ao ar livre. Onze da manhã e as mulheres das duas únicas famílias que moram no local já assavam peixe na brasa feita no chão. Em cima de uma grelha ardente, um jabuti com o casco virado pra cima, que ainda esperneava.
 
Não dava pra matar antes?
 
Não sei, aprendi que é assim que se cozinha jabuti. Respondeu a índia.
 
Seu Genésio me explicou que hoje os índios não vêm com muita frequência pro castigo no Encruzo, mas quando vinham, não tinha fuga.
 
Fugir pra onde? De quê? Quando fazemos alguma coisa errada, como beber muito, brigar ou mexer nas coisas dos outros, é castigado na aldeia, o cacique diz a pena. Não tem índio na penitenciária, nem assassinato por aqui. Índio só morre quando tá na hora, ou de malária.

 

Uma cena me fez voltar no tempo: duas crianças riam improvisando uma gangorra com uma tábua velha em cima de um esteio. Nessa época, cheia de novidades eletrônicas, não imaginei ver novamente crianças se divertindo com algumas das minhas brincadeiras da infância pobre. Nossos companheiros, na falta de telefone, passaram um rádio do Encruzo para Kumarumã avisando da nossa chegada.
 
Depois de cinco horas de viagem fomos recebidos em Kumarumã, onde vivem os Galibi-Marworno, pelo cacique Oberto e outros indígenas. Pra confirmar a lenda, procurei cachorros, dizem que se não tem, é porque os jacarés estão por perto. É uma aldeia com poucos cachorros. Nas faixas, mensagens de recepção e pedindo cuidados com a limpeza da aldeia em português e patuá. Uma curumim de cerca de 7 anos me fez rir muito com a cara que fez quando viu seu rosto fotografado na tela da câmera.  
 
O almoço estava sendo preparado em panelões sob uma grande fogueira cavada no chão de terra. Cardápio: piranha, pirarucu, pescada e jacaré cozidos. Com vergonha, não tiramos da mala os enlatados e talheres que levamos e comemos com vontade.      
 
Estava um rebuliço na aldeia por causa do grande evento que reuniria todas as etnias, a Assembléia dos Povos Indígenas de Oiapoque, que eu, o cinegrafista Marcelo Lima e a fotógrafa Márcia do Carmo, fomos acompanhar. Barcos chegavam carregados de índios de muitas aldeias e eram recebidos ao modo deles, sem gritos nem fogos, mas com um sorriso sincero que estampava a felicidade por rever alguém querido.
 
Um passeio no fim da tarde me deixou encantada pela maneira como tratam as dificuldades e pela relação que têm com a modernidade. Os telefones públicos estavam sem funcionar e voltaram a tocar naquela tarde. Celular tem, mas só serve pra escutar música. No lanche, no lugar de salgados ou biscoitos, o bom é comer pão, cará ou macaxeira com café na porta da casa, enquanto faz-se farinha e tucupi, não esquecendo de separar a crueira para o mingau. Pra embelezar, pinturas, adereços de dente de macaco, sementes e miçangas. Televisão tem, mas ninguém enlouquece quando o gerador de energia para de funcionar e a escuridão chega.

 

Outras cenas que ficaram gravadas na câmera e pra sempre dentro de mim. O velho índio que ensinava com paciência ao neto a arte de tecer paneiros; outro que tentava tocar nas cordas da guitarra elétrica as músicas indígenas, e os índios afeminados que não sofriam discriminação. Talvez a maioria deles ainda não saibam, mas é muito bom ser criança naquela aldeia. Duas adolescentes de 15 anos brincavam de bole-bole, outras de baralho, umas bem menores competiam o cabo-de-guerra, as mal saídas das fraldas se lambuzavam na terra sem medo de micróbios.
 
Quando a noite chegou, futebol na praça pra espantar a morrinha, mosquitos e carapanãs. Fomos abordados por crianças em patuá que faziam sinal dizendo que queriam fazer fotos. Em Kumarumã os curumins são alfabetizados na língua materna até a quarta série, por isso nunca esquecem o idioma. Na hora da janta, mais peixe e fomos nos agasalhar embaixo dos mosquiteiros. No outro dia os índios haviam se multiplicado, dezenas chegaram na madrugada, muitas roupas coloridas, penas  e boas-vindas em vários dialetos. É um encontro para discutir políticas indígenas, mas também para confraternizar e rever amigos e parentes distantes.

 

Antes do fim da viagem de volta, tive  a certeza que eu tinha que estar ali, pra resgatar lembranças perdidas em meio aos problemas do cotidiano. Aprendi que 10 minutos devem ser aproveitados como se fosse 60, sem pressa. Compreendi que a simplicidade, humildade e sinceridade, se não nascem com a gente, podem ser aprendidas com pessoas de mundos distante. Vi que a vida tem que ser vivida sem rancores, raiva ou mal humor, reclamar, só se for resolver o problema, se não, alimenta nossa alma de coisas estranhas e ruins. Conheci outra forma de prisão, ao ar livre, onde o que dói não são as algemas, mas a ausência de amigos e parentes. Tecnologia é muito bom, mas pode ser substituída por coisas simples. E finalmente, que o Turé, a dança do agradecimento e de encontro com os antepassados, deve ser dançado com pessoas queridas, sempre que sentirmos vontade de estar com elas e tivermos saudade do que se foi.
Mariléia Maciel – Jornalista.
*Texto de 2012

Três Tempos – Por Lara Utzig (@cantigadeninar)

Segunda-feira, rumo à UNIFAP, pista do meio, 40-50 km/h, passa o Macapá Shopping, semáforo da Leopoldo Machado com a Feliciano Coelho. Freio. Colada no ônibus da Sião Thur-transportando-os-filhos-de-Deus-tá-estressado-vai-orar vidro abaixado folder do Amapá da Sorte distribuído por fantasias felpudas e calorentas malabares com facas moeda de um real gracias, señorita, buenos días

Segunda-feira, retorno da UNIFAP, pista da direita, 40-50 km/h, em frente ao Hipercenter Santa Lúcia, semáforo da Jovino Dinoá com a Acelino de Leão. Freio. Ajude a pagar minha faculdade comprando uma trufa pendurado fazendo acrobacias no tecido aéreo um Homem-Aranha circense prefere árvores em vez de arranha-céus moeda de cinquenta centavos gracias, señorita, buenos días

Final de semana, sem destino, rolê pela cidade, pista da esquerda, 50-60 km/h, na diagonal a praça da Bandeira, saudades do Liberdade ao Rock, quem sabe hoje praça Floriano Peixoto, ou a Veiga Cabral, talvez um filme no Cine Imperator, semáforo da Eliezer Levy com a Avenida FAB. Freio. Contribua para que possamos ir para um retiro espiritual qualquer valor serve Jesus te ama a moça sobe pallets e caixotes de feira apodrecidos fazem papel de escada no alto malabares dessa vez com tochas acesas o fogo moeda de vinte e cinco centavos gracias, señorita, buenos días engraçado que nesses anos todos nunca ouvi nenhum artista de rua gringo me agradecendo thank you so much have a nice day

Lara Utzig

Pode dar o cano quem quiser porque não vou mais correr atrás de ninguém – Conto de Ray Cunha

Conto de Ray Cunha

Não havia sido um dia de sono restaurador para Amarildo Teixeira. A periodontite o torturava, de modo que passou o dia em claro. Foi trabalhar azedo. Era garçom no Chorão da Asa Norte.

Lá pelas seis horas da tarde apareceu uma cliente, uma senhora elegante, trajada com sapatos altos de couro preto, meias e vestido também pretos. Bonita, de belos cabelos negros, quase longos, era patente que estivesse de luto, pois acumulava duas alianças no dedo anular esquerdo. Pediu o cardápio e passado um momento perguntou se a caldeirada de frutos do mar dava para duas pessoas.

– Dá para quatro, senhora – informou o garçom Amarildo.

– Traga, então.

– E para beber?

– Nada. Fico sempre muito cheia quando bebo alguma coisa durante o jantar.

Naquela hora não havia quase ninguém no Chorão. Estava tudo silencioso e agradável. Tudo bem arrumadinho, à espera da turba que não demoraria a chegar noite afora. Depois que o garçom Amarildo serviu a caldeirada de frutos do mar, pôs-se a observar a mulher. Estava desconfiado de alguma coisa. Não sabia bem de quê. Ela pediu bastante pão francês e Amarildo serviu-lhe quatro pães. Um, ela comeu num relâmpago.

O impressionante é que a caldeirada dava mesmo para quatro pessoas normais e ainda sobrava. Era uma terrina enorme, cheia de um caldo cheiroso e saboroso, com grandes pedaços de peixe, moluscos e toda sorte de crustáceos. Amarildo Teixeira não acreditou no que viu quando ela o chamou para pedir a sobremesa. A terrina estava seca, o arroz e o pirão foram devorados e os pães sumiram.

– Queijo com goiabada! – ela disse.

O garçom Amarildo ficou confuso. Foi buscar a sobremesa. Quando voltou, a bela viúva sumira. Amarildo correu para a rua e ainda pôde ver o vulto na esquina, iluminado pelas primeiras luzes da noite. Não pensou duas vezes. Saiu no seu encalço. Ao alcançar a esquina, a mulher estava à sua espera e atirou-lhe uma pedra na cabeça. O garçom escorregou e caiu. Levantou-se. Ela desaparecera. Amarildo Teixeira voltou para o restaurante. A pedra fez-lhe um galo. “Ainda bem que não foi na testa” – pensou, apalpando o calombo no lado da cabeça. “Não vou nem contar essa. Ninguém vai acreditar. É melhor não contar. O pior é que eu vou ter que pagar a conta daquele animal; me deu o cano e quase quebra minha cabeça. Como é que pode?”

De volta ao Chorão, Amarildo Teixeira foi ao banheiro. Muita gente havia chegado e o gerente estivera atrás do garçom. Quando Amarildo saiu do banheiro havia um sujeito numa das mesas de sua responsabilidade. Um sujeito grandalhão, um verdadeiro mastodonte, olhando atentamente o cardápio. Aproximou-se cautelosamente.

– Escute aqui, meu jovem, esta caldeirada de frutos do mar dá para duas pessoas? – perguntou.

– Dá para quatro – disse Amarildo Teixeira.

– Quero uma. Traga logo uns pãezinhos até chegar a caldeirada.

“Não é possível que esse cara saia correndo também. Não acredito! Até porque não agüentaria correr com esse corpanzil” – pensou Amarildo, levando quatro pães franceses para o freguês.

– Putz, ô meu, só isto? Traga uns dez – pediu-lhe o homem, passando manteiga num deles e comendo-o em duas bocadas.

Amarildo Teixeira serviu a terrina de caldeirada olhando fascinado para o homem. “É um animal de bruta raça” – pensou.

O freguês era bom de boca. Em pouco tempo não restava mais nada na mesa que pudesse ser comido.

– Ô, meu, queijo com goiabada! – disse o homenzarrão.

O garçom Amarildo foi buscar o que o sujeito pedira. Serviu a sobremesa; o tipo devorou-a em segundos e pediu outra. Após comer quatro porções de queijo com goiabada o gajo não deu tempo para nada. Ergueu-se subitamente da mesa e partiu para a porta, ganhou a rua, e correu em direção à Avenida W3 Norte, com Amarildo Teixeira atrás. Mas o freguês tinha fôlego de peso pesado. Alcançou facilmente o calçadão da W3 Norte, onde estacou abruptamente. Amarildo aproximou-se dele e recebeu um cascudo na cabeça que o fez cambalear e cair. Levantou-se e retrocedeu. O brutamontes partiu para cima dele. Alcançou-o e lhe deu uma rasteira, fazendo o garçom se acabar na calçada. Levantou-se às pressas e correu o quanto pôde para o Chorão. Quando se sentiu em segurança olhou para trás e viu o mastodonte atravessando lentamente a W3 Norte. Olhou para si e viu que ficara bastante estragado.

– Aquele desgraçado quebrou a minha cabeça só com um cascudo. Acho que tinha um pedaço de ferro na mão. Agora vou ter que pagar duas caldeiradas de frutos do mar e mais quatro sobremesas – choramingou. – A melhor coisa que eu faço é ir embora para casa.

Mas Amarildo não pôde ir embora, pois faltaram três colegas seus e na sua ala havia dois esgalamidos querendo caldeirada de frutos do mar.

“Droga, droga, droga” – disse de si para si, e foi buscar a primeira terrina, decidido a não correr mais atrás de ninguém, nem que tivesse que pagar a conta com sua poupança na Caixa Econômica Federal.

*Contribuição de Fernando Canto.

O MAMELUCO – Conto de Luiz Jorge Ferreira

O Cenário

Paredes de reboco manchado.
Fios dependurados , talvez de antena de TV, talvez fiação de um rádio antigo, fora de uso.
Um pano esfiapado servindo de porta para a saída dos fundos.
Um caco de espelho preso por dois pregos na parede.
Uma mesa tosca, sobre a qual meia dúzia de copos sujos de nada.


Uma geladeira de meio metro sobre meia dúzia de tijolos, com porta fechada com o auxílio de um tamborete.
Um fedor de suor que por ficar difícil explicar no Cenário, contrapõe-se então muitos frasco vazios de desodorantes espalhados, e alguns largados sobre a caveira da cama que jaz no fundo do espaço- cozinha-quarto, sobre o qual repousa um gato colorido de marrom e branco.

O personagem é Álvaro, na verdade, Seu Álvaro, oriundo do interior do Amapá, na verdade um povoado dito Calçoene, criado por proscritos, ingleses, franceses, holandeses, e brasileiros.
Moreno, rosto sulcado pelo sol, muitos anos a cata de peixes, Castanha do Pará, plantas medicinais, para contrabandear para a Europa, em meio as caixas com as cobras venenosas, e outras espécies peçonhentas.

Daí as cicatrizes no braço, e as marcas de cortes para salvar sua vida, ferindo a faca o local e criando uma falsa hemorragia para que chupando com a boca cheia de tabaco mascado, o filete misto de sangue e veneno,diminua sua ação mortal, mas sobrevivido taí em pé, encorpado, puxando da perna direita, e o andar marcando no chão da terra ribeirinha, sempre úmida ou molhada, um orifício de pouca profundidade, onde depois de algum tempo, a plantado pela própria perna postiça, germinará cânhamo.

Mameluco.
Subindo o rio de canoa, por diversas vezes, desembarcara da embarcação, e fizera mira na direção dos gritos.
Algum desafeto destes que deixará sangrando nos povoados, nos cabarés, nas desavenças. Apelidaram-no de Mameluco.


Fora ao mundo, agora seu mundo era este espaço entre estas quatro paredes que nada mais eram do que a lateral de duas casas abandonadas, e a traseira de um outro barraco, e a portinhola que o pano velho e encardido, definia a fronteira, com o mundo lá fora.

Cacoentes que cultiva…o olhar fixo em quem consigo fala, um tique de enfiar a unha do polegar entre os dentes da frente, e a Mantra de repetir aleatoriamente em Nagô, a oração de São Jorge, que aprenderá com os capuchinhos, em Angola.

Os outros personagens, estão espalhados em seus retratos, e recortes de Jornal que colecionou ao longo do tempo, e das viagens.

As vezes o gato deita e se espreguiça sobre eles, então ele o espanta, imitando com um assovio entre os dentes, o silvo de uma jararaca, o que faz com que Jirau, este é o nome do gato, em homenagem ao lugar onde foi encontrado, no garimpo do Jari, debaixo de um Jirau.
Jirau…este jirau como todos os jiraus era um lavatório feito de madeira, próximo a um curso d’água para que a água usada na lavagem da louça usada escorra sem ficar empoçada perto da casa para não se atrair mosquitos e pernilongos.  Ver os retratos, e os recortes… Da o gancho para que fatos sejam relembrados.


Quando vai remexer neste seu tesouro… Ele põe o espelho, em um ângulo que possa ver refletido na porta clara da geladeira, suas costas, onde guarda uma cicatriz, resultado de várias brigas e açoites dados como castigo para quem como ele fazia arruaças, arrumava brigas, e não temia o Corpo Policial, encarregado da ordem.
Cicatriz de aproximadamente 12 centímetros, descendo do ombro direito, para o meio da costa, sem atravessar o limite do meio.


Fora semelhante a um Escorpião, depois de uma queda do dorso de um novilho, se assemelhará, a uma lagartixa, mais tarde depois que sofrerá uma queimadura com querosene de barca em Barcarena, assemelhou-se a um puraqué, e com a insistência do Jirau o arranhando quando deitado de bruços, na sesta da tarde, sagrada para ele…


Um Morcego.
Porque mora ali…
Onde é este ali.
O que quer alcançar com todas as adversidades que sente lhe obstruir a estrada em sua vida.

Nada…

Por nada chegou a este lugar quando a extração de bauxita estava no auge…
E a lucratividade movia uma engrenagem de luxo e fartura, o que fazia dos aventureiros que como ele ali chegaram, abastados e novos ricos.


Nas ruínas onde morava existirá um Hotel Cassino.
Aquele pedaço de pano roto servindo de porta, fora o lençol de uma das Suítes Presidenciais, houvera duas.
E o cinzeiro ali sobre a tosca mesa, e a caixa com bailarina servindo de escora ao pedaço espelho, um adorno ao lado do quadro de dependurar chaves dos apartamentos, no saguão.
Lá fora o saguão, abrigava os morcegos, que vez por outra em rasantes pelo quarto, se espantavam com o seu as suas costas.

Mameluco.
Circula pelas ruínas, e flerta com as coisas que viu, e enamorado com as estrelas da Broadway seminuas nos recortes de jornal, e cantarola canções do meio do ano, marchas de carnaval, todo o tema de Carruagens de fogo…assovia em Mi menor.
Não há álcool.
Mas se embriaga.
Com raízes e beberagens, e quando faz sobe no palco agora um monte de ferragens e canta e dança como um Fred Astaire, desviando se de cipós e ramos tombados.

A noite quando sai a lua, alvoraçam os habitantes da tatuagem, e o incomodam muito, por isso está sempre com o corpo dolorido, pelas noites mal dormidas, e o sono assustado pelo alvoroço das figuras no dorso, todas em uma só, a dependerem da posição, em que a luz da lua, única ali incide

Segundo ato. Toca ‘Belém é Bíblica’ de Milton Hatoum/ e Gandi…cantada por Gandi.
Descem as cortinas, explodem os aplausos. 12 anos encenando o mesmo espetáculo, muitas vezes automaticamente, a dizer as falas, como se fosse ele o narrador, enquanto o personagem permanece calado.

Ele vai até o camarim, apanha a escova de cabo longo, entra no banheiro, e esfrega a maquiagem feita pelo maquiador, e vê escorrer pelo ralo uma profusão de cores, criando um arco-íris líquido que se esvai até ficar só a espuma perfumada do sabonete líquido.

Sobre a cadeira, o gato de feltro, caco de espelho, o punhado de jornais, empilhados e presos, e a barba mal feita aplicada a esmo, sobre a calça de brim desfiada em ambas as pernas, e o radinho, descascado com produtos químicos, aos pés da cadeira o pano que serve de porta , e num último gesto ele arranca e sai.

Londres esta esfumaçada, ele anda a esmo por Leicester Square, e ao seu lado passam dezenas de pessoas cobrindo pescoço e meio rosto, com a aba de seus sobretudos, se transformam em figuras a semelhança dos extras em filmes de Jack O estripador, o que chega a lhe assustar quando olha-o nos rostos e não descobre luz em seus olhos, mete a mão nos bolsos como a procurar, cigarros, isqueiro, canivete, encontra moedas, que usa para por na maquina e retirar algumas gomas de mascar.

De onde esta já pode avistar o prédio onde mora, um antigo deposito de livros, cujo o interior é dividido por ele usando os próprios livros ali deixados pelo Espolio que dividiu as propriedades após a morte de Sir Herald Finn. Dividiu entre velhos cães, anciões solitários, e artistas de teatro e cinema para quem a fama foi só uma palavra encontrada nos textos decorados.


Cartazes dependurados na frente das fachadas de Cinemas, trazem as fotos de Marylin Monroe, o perfil do Zorro, o torax de Tarzan…apressa os passos porque o frio começa a incomodar, caminha e esmigalha a bagana de um cigarro Turco no bolso direito da calça.


Anda o mais rápido que pode, sessenta e três anos, estatura mediana, dependente de Vodka e Gim, pensa no sanduíche de salame feito de manha que debaixo de dois pratos de alumínio emborcados um sobre o outro, espantara a fome que lhe roe as entranhas.

Nada mais no seu testamento, ali imaginado…Um ator sem nada. A não ser textos a decorar. Volta de súbito, vai ate a porta já as escuras do derradeiro Cinema localizado um pouco antes que a avenida se extinga, e cospe no rosto de Marylin Monroe, pega do chão um toco de cigarro fumado e risca com o carvão restante na ponta.


Deus salve a Rainha. Urina sobre o Cartaz.Escrevendo em inglês…com o jato fino e fraco interrompido por dor ardida, a todo o momento…Queen Save… Mameluco.
06.36 hora de Greenwich…pula de encontro ao solo, na mão cheia de ingressos devolvidos de espetáculos antigos fadados ao fracasso.

De manhã mais tarde… nos jornais criticas elogiando seu desempenho por doze anos com a fenomenal peça O Mameluco. Adaptada para a língua inglesa pelo não menos premiado Sir Herald Finn… ate que cai a tarde, a noite e Londres fica esfumaçada demais, ate para os gatos de feltro aguardando o sinal para ficar imóvel sobre o sofá descascado.

* Do livro “O Chalé” – Scortecci Editora – 2018.

O Bar é uma Antena Social (crônica porreta de Fernando Canto)

Por Fernando Canto
Antigo Bar do Abreu, na Avenida Fab

Cansados estamos de saber que o bar é um espaço democrático, principalmente se é popular, aberto. No entanto é o lugar onde as ideologias emergem até com fundamentalismo. É um mundo em que os fatos ali ocorridos e as histórias contadas também são objetos de exposição de valores, de ocultação de defeitos e de promoção e marketing pessoal, demandados pelas incertezas do futuro, pelo processo político e pelas contingências da história. Logicamente tam

Bar Lennon – Macapá anos 80 – Foto cedida por Edgar Rodrigues

bém é um espaço de festa e de lazer; local onde as emoções se eriçam e se cruzam, onde notícias quentinhas esclarecem novos conhecimentos; amores secretos são aprofundados ou descobertos e por isso geram descontroles emocionais e físicos entre pessoas que até então nunca podíamos pensar tão valentes ou covardes. No bar as emoções se revelam em paradoxos inusitados.

 
Talvez por isso, e nesta crônica despretensiosa, eu possa entrar no mundo do bar para dizer o quanto ele é, também, um gueto disfarçado, às vezes uma roda violenta de preconceitos, que envolve quase todos os integrantes dessas assembleias ocasionais. O bar, antes de ser um balcão onde as pessoas ficam em pé ou sentadas em bancos altos consumindo bebidas alcoólicas, é também uma unidade de medida de pressão, segundo o Aurélio. O interesse pelo bar tem um condicionamento sociológico que vai além da mera vontade de tomar uma cerveja gelada, ou de querer ficar só por alguns momentos, ou mesmo se envolver em assuntos antagônicos aos problemas sentidos para não ter que cair na real. 
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O primeiro bar de Macapá – Foto: Elton Tavares

Cada qual sabe a casca que tem para aguentar o que ronda cada cabeça pensante e a sua sentença sarcástica, pois inúmeros são os que ali vão para somente consumir o inconsumível, ou seja, a paz que o outro carrega. Os chatos, de certa forma dão vida ao bar.

A família dos chatos é grande, tradicional, seus membros estão em todas as partes; muitos são perdulários e só demonstram humildade quando perdem tudo no jogo ou quando têm suas contas confiscadas por ordem judicial. Mas esses são os que conseguiram se ascender na escala social à custa do dinheiro público. Mesmo depois que são soltos da cadeia continuam chatos e arrogantes. Existem os chatos desmemoriados: aqueles que contam as mesmas piadas, mas sempre se esquecem dos finais, assim mesmo só eles riem da sua própria graça. Os chatos pedintes são os mais comuns. Revelam-se humílimos, franciscanos ao extremo e matam a mãe para acertar em cheio no alvo da comiser

Bar Xodó – bebi muito aí.

ação alheia. Ao contrário desses existem os chatos barulhentos, que no jogo de futebol, na televisão, gritam tanto que cospem no copo de todo mundo num raio de três metros. E haja perdigoto na cerveja dos torcedores contrários. É claro que se podem identificar muitos desses elementos e até classificá-los, o que para tanto peço ajuda dos companheiros que não se autorrotulam nesse metier. Quem sabe não façamos um tratado sobre esse bloco afamado e muito peculiar, cujos elementos também são conhecidos cientificamente como insetos anopluros da família dos pediculídeos, os famosos Phthirius pubis (L.), que vivem no mundo inteiro sugando as pessoas.

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Bar Norte das Àguas

Desde muito tempo frequento bares e neles tenho encontrado pessoas de todos os tipos: políticos, beberrões inveterados, jogadores de futebol, profissionais liberais, padres, estudantes, gente de preferências sexuais diversificadas, funcionários públicos, poetas, jornalistas então… No bar há excelentes contadores de piadas e cantadores da noite com suas alegres vaida

Eu, Fernando Bedran e Fernando Canto – Mestres em boemia produtiva (papo bom demais)

des. Mas também há os professores de Deus, que do alto de suas sapiências enojam, mas recebem os olhares irônicos dos mais humildes que acham que eles “só querem ser o que a folhinha não marca”.


O bar pode dar condições para o diagnóstico de uma sociedade. É uma antena extremamente poderosa e propícia para captar preferências individuais e coletivas. Pode ver! Pelo meu lado, faço minhas observações e bebo. E vice-versa. Malograda alguma companhia, só penso no ditado do Paulinho Piloto: “passarinho que acompanha morcego dorme de cabeça pra baixo”. 
 
(Do livro “Adoradores do Sol”, de Fernando Canto. Scortecci, S. Paulo, 2010).

THE CURE – São Paulo (06/042013): minha visão sobre algo realmente histórico (por Marcelo Guido)

 
É realmente impressionante como seguimos nossas vidas dando importância a fatos, histórias, mensagens e como a música esta relacionada a isso. No mundo perfeito, acredito, a vida teria trilha sonora.
Passei por mais um acontecimento marcante em minha trilha imaginaria. O THE CURE, resolveu botar as caras por aqui depois de exatamente 17 anos, um hiato relativamente grande para uma banda desse quilate, os puristas vão dizer que “Ha são uns mercenários”, “estão no limbo (tá a igreja já disse que isso é baboseira), e vem tirar dinheiro dos trouxas”, “tá velho, esquecido e vem fazer bestas felizes”. Foda-se! Para mim, apenas palavras ao vento. 
Beleza, 17 anos é muito tempo, muita onda, muita coisa. Tornei-me pai, me apaixonei varias vezes e casei, ou seja, vivi. Mas curiosamente, o sentimento pela banda não sofreu nenhum abalo.
 
Lembro-me dos saudosos anos 90, não serei falso em dizer que “há gostava desde os anos 80”, não, conheci a banda através de “Staring At The Sea”, aquele mesmo, o popular disco do “velho na capa”. O ano era 1993, e eu, na época, um amante do som pesado, me encantei com toda poesia tortuosa daquela banda do cara que “usava batom e tinha cabelos desgrenhados”. É realmente soava meio estranho alguém como eu escutar aquilo.
Quando soube que os caras viriam por aqui de novo, me lembrei de todo desespero que senti quando não consegui velos no “Hollywood Rock”, naquela época, eu com 16, não tive como ir. Jamais deixaria outra oportunidade passar.
 
Mas vamos lá, o show prometia muito, fãs sedentos querendo ver o que foi realmente marcante para todos (ou a maioria), pais, filhos e encontrei até um avô com netos (se tem algo que junta gerações é o rock). Todos lá querendo ver o senhor Robert Smith com sua trupe, elevar ao máximo suas notas musicais, colocar em dia sua guitarra e como não esperar pela sua peculiar “dancinha”. Eu era um desses caras por lá.
O show começa sempre por cima, “Open”, nessa hora, nem eu acreditei que estava lá, e foi caminhando por uma sequencia incrível de hits “oitentistas” , “noventistas” (atenção Cults de plantão)  pra não deixar nenhum tiozinho (já me incluo nessa categoria) botar defeito.
 
Chorei copiosamente em “Just Like Heaven”,uma das canções  de amor mais perfeitas de todos os tempos, “Pictures  Of You”, passou por lá também, “The Walk” pra lembrar de toda minha caminhada até aquele momento, em “Friday I`m Love”, eu te liguei “pessoa muito especial”, você deveria estar naquele momento comigo, não atendeu (chorei também), “The Love Cats”, “In Between Days”, “Boys Don`t Cry”, “Killing an Arab”, enfim todas passaram por lá e o senhor Smith estava realmente a vontade. Foram quarenta (pode escrever isso aqui?), musicas, três horas de show. Realmente algo épico, histórico, fantástico.
Minhas melhores impressões sobre a banda realmente se multiplicaram, em minha opinião o “melhor show dos caras de todos os tempos”, se me perguntarem o porquê?  Respondo: “Eu estava lá”.
Durante as horas que o concerto se deu, voltei a ter meus 16 anos, e realmente curti muito. E pensei comigo mesmo se passei por tudo que passei pra esses caras tocarem perto do meu aniversário, realmente valeu muito a pena (sei, é idiota mas foi isso que veio na mente).
 
Já posso dizer prestes há completar 33 anos, que eu no dia 06/04/2013 “estava no melhor lugar do mundo”.
 
Senhor “Bob” Smith, não demore muito a aparecer por aqui. E sim, minha vida volta a ter sentido.
 
MARCELO GUIDO.
*Republicado pelos 6 anos desse show.

Nem morto! – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Fui ao médico e ele me disse uma coisa que me deixou muito chocado:

– Seu Ronaldo, sinto informar que o senhor não está mais entre nós.

– Hein? Como assim?

– Estou dizendo que o senhor está morto.

Me apalpei, me olhei, me examinei e nada indicava que eu estivesse morto:

– Doutor, o senhor disse: morto?

– Sim. Mortinho da silva, como se falava antigamente.

E o médico foi logo me apresentando um documento que acabara de assinar:

– Aqui está o seu atestado de óbito.

– Ei, o senhor está falando sério mesmo?

– Nunca falei tão sério!

Saí do consultório sem entender nada, mas eu não sou um exemplo de alguém que entende muito bem as coisas que acontecem. Devia ser a minha já conhecida distração. Me distraí e nem percebi que estava morto.

Já passei antes pela sensação de estar morto, mas aquela confirmação me deixou perplexo. E agora? O que fazer da minha morte, eu que nunca soube o que fazer da minha vida? Devia ser por esse motivo, o fato de eu estar morto, que as pessoas passavam por mim sem demonstrar qualquer sinal de me avistar. Atribuí ao costume atual de ninguém mais prestar atenção em ninguém, todos abduzidos pelos aplicativos dos celulares.

Levei o atestado de óbito ao INSS para saber quais seriam os próximos procedimentos, mas ninguém percebeu a minha presença. Achei normal, já que nessas repartições públicas dificilmente os funcionários prestam atenção em que está vivo, imagine em quem já morreu. Eu, que precisava provar que estava morto, tinha uma senhora ao lado que, para receber certo benefício, precisava dar conta de uma papelada imensa para provar que estava viva.

Bom, eu precisava me tocar (até me toquei, mas não senti o meu toque) e assumir a minha morte. Assumi tão poucas coisas na vida que assumir a própria morte seria algo bem estranho. Aí a curiosidade me tomou (sim, as pessoas continuam curiosas após a morte) e olhei mais atentamente o atestado de óbito para saber a causa da minha morte. Descobri que não teve um motivo só, mas vários motivos. Morri de tédio, de solidão, de euforia, de farra, de melancolia, de bebida, de cigarro, de respirar, de ficar doente, de ficar são, de sair pela madrugada, de ficar horas em frente à TV, de submissão, de rebeldia, de ouvir música, de falar palavrão, de gritar, de pedir silêncio, de comer, de jejuar, de fazer sexo, de fazer abstinência… Enfim, morri de uma coisa chamada vida. Lembrei imediatamente do meu amigo Gino Flex, que teve a mesma causa mortis: excesso de vida. Portanto, obrigado à vida que me deu tantos motivos para vivê-la, às vezes muito afoito, às vezes com uma preguiça terrível; aqui tomando as rédeas da situação, ali deixando as coisas rolarem.

Agora vou me encontrar com o Gino, fazer um brinde e continuar pela morte com a mesma disposição com que enfrentamos a vida.

Adeus! E saúde!

PORCA – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Eu insistia com ela todas as noites de lua cheia.

– Para com essa história de se transformar em porca, mulher. Não aguento mais esse cheiro de lama.

Era um segredo nosso que tive de aceitar por pura dependência financeira, desde que nos casamos. Mas ela não parava. Queria porque queria parecer melhor que a Velha Xambica, do sítio do seu Ladislau, vizinho ao nosso, que tinha o mesmo fado dela e se transfigurava em Matinta. As duas concorriam para ver quem assustava mais as pessoas desprevenidas nas noites enluaradas da minha cidadezinha.

Um dia eu estava num couro doido, numa pindaíba roxíssima. Era meu aniversário e eu vivia sempre cobrado pelos meus amigos do boteco da Waldirene Boca de Tambor.

– Quando é o churrasco, porra? Perguntavam o tempo todo, me pressionando pra valer.

Eu dizia que ia depender da indenização que estava para receber do frigorífico que fui botado injustamente pra fora, sem justa causa. O processo estava tramitando há tempos, sempre acompanhado de perto pelo iminente causídico Dr. Robário Paladino, que me garantiu o recebimento para logo, antes do fim do mês.

Na véspera do aniversário eu não aguentei mais o fedor da minha galega. Ela havia voltado de um Passeio de Assustamento da lua cheia e estava no quintal grunhindo e chafurdando na lama do chiqueiro, antes de voltar a ser mulher. Ela dizia sempre que a transformação era um processo doloroso, mas que tinha prazer em fazer sempre, pois se achava renovada toda vez que isso acontecia.

Ela estava lá. Tinha acabado de chegar. Eu fiquei pensando, pensando, pensando… peguei a peixeira e a enterrei no pescoço dela por trás. A porca revirou os olhos e o sangue esguichou com tanta força que me sujou todo. Estrebuchou e deu três longos e desesperados grunhidos. Enrolei a boca e o focinho com uma corda até ela parar de se debater. Depois coloquei o corpo em um camburão de água fervente para raspar os pelos, e, como bom açougueiro, comecei a preparar o corpo do animal para fazer um belo churrasco. Os raios do dia chegaram com uma intensidade que me feriu os olhos.

Fui ao boteco da Waldirene Boca de Tambor e convidei a rapaziada malandra pro churrasco. E ainda dizia, brincando:

– Levem um presente, seus vadios. Cheguem perto do meio-dia pra me ajudarem a assar.

Cada um se servia como podia. Eu havia trocado os miúdos da porca por cachaça e farinha com a Wal. Todo mundo se refestelou e ficou de bucho cheio. Tomaram cachaça à beça, arranjaram uns tambores e o batuque correu o dia todo. Quem chegava pro churrasco também trazia uma bebida. Mas eu não tive coragem de comer nenhum pedaço de carne, talvez em respeito à minha falecida mulher.

Já era quase meia noite e todo mundo já estava “calibrado”, tomando cachaça e dançando uns sambas de cacete. Ninguém notou a ausência da minha galeguinha, só o Ambrósio, saliente que só ele. E eu lhe disse que ela tinha ido à casa da mãe doente lá em Mazagão.

A lua rompeu uma nuvem escura e iluminou mais ainda o terreiro da festa. E o batuque ensurdecia e ecoava em toda a área.

Mas tudo parou de repente quando uma mulher idosa com bico de pássaro surgiu perto da mata onde ficava o chiqueiro da minha esposa.

– Quero tabaco, ela dizia. Quero tabaco pra levar pra minha comadre.

Os convidados se entreolharam e o medo tomou conta de todos. Atônitos viram seus ventres se mexerem involuntariamente e em todos eles uma voz dizia:

– Onde está minha costela? Cadê minhas coxas? Quede meu peito?

A lua parecia descer do céu de tão grande, naquele momento de desespero dos convidados. E todos eles saíram correndo para o mato se transformando a cada passo em caititus, porcos-do-mato, queixadas e javalis.

A velha Matinta me olhou de soslaio, cuspiu pelo bico de pássaro um cuspo negro de quem masca tabaco. Eu caí de costas no chão e tive que sustentar com os braços até de manhã a lua quase cheia que parecia ter caído em cima de mim.

25 anos do lançamento do disco Raimundos (1994 foi um grande ano mesmo) – Por Marcelo Guido

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Hoje, 2 de abril, completam exatos 25 anos do lançamento do disco Raimundos (1994). Raimundos foi o disco de estreia do da banda homônima (que fez estrondoso sucesso), lançado em 1994 pelo selo Banguela Records, criado pela banda paulista Titãs em parceria com Carlos Eduardo Miranda.

Apesar do clipe da música “Nega Jurema” ser de produção precária, a pedidos do público, ele participou da escolha da audiência na MTV, para representar o Brasil nos Estados Unidos, que concorreu nada mais, nada menos, com o videoclipe “Territory”, da banda mineira de thrash metal Sepultura (que saiu vencedora).

Para celebrar esse clássico álbum do Rock Nacional, republico o texto do amigo Marcelo Guido.

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Discos que formaram meu caráter (Parte 2) – Raimundos (1994)

Então amiguinhos, estamos aqui de novo para falar de mais uma bela “bolacha”, que com certeza fez muita gente, assim como eu, também botar a cabeça pra balançar, poguear e pirar conforme a música.

O disco em questão trata-se de “Raimundos”, primeiro álbum da banda homônima (qualquer semelhança com Ramones não é mera coincidência) que veio do Distrito Federal dar uma nova cara para o Rock Brazuca, no começo dos já longínquos anos 90.

O momento histórico da música brasileira não era lá aquela maravilha, diga-se de passagem, sertanejo e um tal de “new pagode” tomavam conta de todas as paradas musicais naquela época, realmente era um verdadeiro cenário de terror para os fãs do velho e bom rock and roll.raimundos-1

As bandas nacionais sobreviventes dos anos 80 já se encontravam naquele esquema de “vamos fazer um disco conceitual, e sair em turnê para tocar o que a gente já gravou”, patético. (Menção honrosa para os excelentes “Descobrimento do Brasil de 93 da Legião Urbana e “Titanomaquia” dos Titãs, também do mesmo ano”).

Nesse sombrio cenário vê que aparece do cerrado, quatro moleques que falam palavrão a torto e a direito, trazendo uma energia que faltava para aquele angu enjoativo que se tornou a música brasileira.

imagesProduzido pelo Carlos Miranda e lançado pelo selo “Banguela” dos Titãs, “Raimundos” chegou fácil a 150 mil copias. Além disso, o álbum foi inovador por mostrar para nós o “forrócore”, a mistura do forró tradicional com o hardcore, coisa nunca tentada antes.

Meu primeiro contato com o disco foi através de meu grande amigo, Adriano Bago (que hoje também é um Guarani Kaiowa), que em um esquema “brodagem” me presenteou com uma fita gravada onde se encontrava a balada de duplo sentindo “Selim”.

Quando ouvi aquilo pela primeira vez, pensei: “Que porra é essa???”. Tratava-se de algo inovador, os versos da canção que diziam “Eu queria ser o banquinho da bicicleta pra ficar bem no meio das pernas…” era tão novo que me fazia lembrar que ser o caderninho da menina já estava muito ultrapassado. Aquilo sim era Rock, ou melhor, aquilo eu queria ouvir.

Recheado de palavrões, chegou de dois pés e colocou os caras no cenário nacional que era muito difícil na época, já que não tinha ninguém dançando de shortinho coreografias pré-ensaiadas.

O disco mostrou de cara que a banda tinha muito a dizer, o que se tornaria fato no decorrer da década, “Puteiro em João Pessoa” abre o disco contando logo história de uma transa adolescente (virou quadrinho nas mãos do Angeli), vai para “Palhas do Coqueiro”,”MM`S”, que tem a participação do João Gordo, “Nega Jurema” que vem descendo a ladeira trazendo uma sacola de Maria “Tonteira”, enfim, um discaço.

Antes de tudo, é importante falar que o disco remodelou o cenário musical e influenciou praticamente todas as bandas que se formaram depois na década de 90. Considero “Raimundos “como obra fundamental porque a molecada mandou à merda todos os conceitos reinantes na época, com suas guitarras barulhentas pra caralho (será que posso usar esse termo no site do Elton?), letras sujas e bateria passado por cima de tudo com muito orgulho. Foda-se a surdez (opa de novo).

“Puteiro em João Pessoa, MM`S, Be-a-bá”, “Marujo”, “Selim”, realmente entraram no gosto da garotada que estava na rua nos anos 90.“Raimundos” nos mostrou também, que não era mais legal parecermos ingleses como nos anos 80, que legal mesmo era chamar o Zenilton pra tocar….“Por isso que o Raimundos nunca vai se acabar”.

* Marcelo Guido, é Punk, Pai da Lanna e Bento, Jornalista, Professor e Marido da Bia.

O PROBLEMA QUE QUASE TODO MUNDO TEM COM A MÃE – Por Mariana Distéfano Ribeiro

Participar de uma terapia em grupo, do tipo constelação familiar, renascimento, ou qualquer outra coisa dessas terapias holísticas naturais e não convencionais, é uma experiência que muda a vida de uma pessoa. Acho que porque são terapias que não tratam a mente ou o corpo físico, mas sim, o espírito, o corpo etéreo.

Na terapia de constelação familiar, quase todo mundo tem problemas com a mãe. Alguns são mais tranquilos e outros mais graves, mas é quase todo mundo mesmo. A título de exemplificação: geralmente em um grupo de umas vinte pessoas apenas umas duas não têm embaraços profundos com suas mães. Desses dois, um tem um nozinho de boa, que se cura com uma palavra de perdão ou gratidão. O outro, que é raro, não tem qualquer problema com a mãe.

Às vezes é um imbróglio tão profundo que a pessoa precisa de muita terapia para alcançar a cura. As mães têm um poder espantoso sobre os filhos. Acredito que seja alguma coisa mais profunda do que nossas mentes industriadas possam compreender. É algo que somente a consciência e o espírito conseguem dissecar.

As pessoas têm que parar de endeusar o instituto da maternidade. Existem pessoas ruins no mundo, não existem? Psicopatas sociais, gente manipuladora, mentirosa, invejosa, preconceituosa, dissimulada, sugadora de energia do próximo, gente nociva mesmo. Essas pessoas são seres humanos como qualquer outro e, assim sendo, também se reproduzem e se tornam mães e pais.

Aliás, já assistiu Mindhunter? Aquele seriado da Netflix em que dois investigadores e pesquisadores do FBI entrevistam vários assassinos em série na década de 70, sendo a maioria deles psicopatas. Tem um episódio em que o personagem principal, que o investigador pesquisador, fala: “é sempre a mãe”. Enfim, é muito bom, recomendo.

Voltando ao rumo da prosa, eu falo aqui apenas da mãe porque é estatístico, os terapeutas sempre falam: a mãe geralmente é a figura principal no subconsciente do filho, o pai, por consequência, geralmente é secundário. E, sendo assim, nem vou discutir a figura materna sob o aspecto feminista, porque essa discussão pertence a outras searas – a sociológica, a política, a comportamental, etc.

Uma pessoa má, nociva, que engravida e se torna mãe, vai se transformar numa pessoa boa só porque pariu uma criança? Não né, gente. A maternidade não deve e nem pode ser sinônimo de perdão dos pecados, lavagem da alma e transmutação em ser imaculado. Parece que criticar uma mãe é um tabu, e criticar uma criança também parece ser.

Algumas mães escangalham de tal maneira a vida de um filho que muitas vezes é muito difícil para a pessoa recuperar o poder e o controle sobre sua vida. Mas, ainda assim, em alguns casos, com alguma autorreflexão, meditação e, principalmente, comprometimento, é bem possível sim conseguir curar-se sozinho.

Os terapeutas também falam que se você tem algum problema com sua mãe ou seu pai é melhor resolver logo. Porque as coisas da vida acabam sempre ficando meio atropeladas enquanto não nutrirmos gratidão, amor, perdão e respeito pelos nossos genitores. Afinal, foram eles que nos deram a vida, somos cinquenta por cento um e cinquenta por cento o outro. Mas isso também não quer dizer que você tenha que viver grudado no rabo da saia da sua mãe, né… Aliás, os terapeutas também falam que, geralmente, é melhor viver longe mesmo.

A gratidão é um dos sentimentos mais poderosos que existe. Falo da gratidão pura, sem expectativa nem contrapartida. Depois que a gente nutre gratidão o amor vem naturalmente e sempre substitui o ódio, o rancor e dá lugar ao perdão.

Então amig@, se existe alguma coisa que te incomoda com relação a seus pais, ou seus filhos, ou seus irmãos, ou a qualquer pessoa, é bom parar, refletir, meditar e fazer brotar a gratidão de dentro para fora, naturalmente e sem forçar a barra. Mesmo que demore alguns vários anos, um dia vai acontecer e aquele sentimento ruim que sempre fez parte de você vai sumir e você vai sentir um alívio imenso.

Vai por mim. O que você tem a perder ao desenvolver perdão e gratidão? Orgulho talvez? Ah, mas esse já não vale muita coisa mesmo. Larga mão, se desprenda e deixa fluir.

*Além de feminista com orgulho, Mariana Distéfano Ribeiro é bacharel em Direito, servidora do Ministério Público do Amapá e adora tudo e todos que carreguem consigo o brilho de uma vibe positiva.

Teresa (em preto e branco) – Tãgaha Soares

 

 
E foi na batata da perna de Teresa que escrevi as minhas primeiras palavras na língua nativa. 

No princípio, ela até gostou, ficou lisonjeada quando lhe disse que eu estava escrevendo um livro nela. Depois, me recusava, porque eu só procurava seu corpo para escrever…
 
O livro já estava pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou…
 
Sem ela, perdi o fio do novelo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco…
 
Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom.
 
Então, fui procurar as putas…

Ao leitor do futuro – Por Lulih Rojanski

Por Lulih Rojanski

Eu quero ter leitores, muitos leitores no futuro. Quero ter leitores agora também, aos milhares, mas hoje, particularmente, penso no leitor do futuro, aquele que tomará o livro nas mãos como uma relíquia de um passado distante, e que me lerá, com especial estranhamento às frases líricas, à linguagem poética, ao modo pretensioso de dizer coisas que todo mundo sabe como se fossem grandes novidades.

Não vou arriscar maiores projeções para esse futuro, não sei como serão os automóveis, a arquitetura das cidades, o figurino das criaturas. Apenas imagino que um dia teremos que nos render às mais inimagináveis tecnologias, e que nesse tempo incerto, nenhum livro impresso em papel fará parte do inventário de quem quer que seja. Quem sabe de algum colecionador propenso à nostalgia. Só. E se meus escritos fizerem parte de sua coleção, certamente terá sido por pura distração, pois a lista será composta por vencedores do Nobel de Literatura. E eu lá, plebeia e vulgar, no meio de Gabriel García Márquez, Faulkner, Bob Dylan…

Pois ao leitor do futuro eu quero dizer que aqui estamos, em 2017, crentes de que já vimos de tudo, e que tudo o que vier pela frente será variação sobre o mesmo tema. Que temos árvores em abundância, de todos os tamanhos e espécies, mas que as cortamos para dar espaço à construção de casas, edifícios e condomínios. Que temos rios imensos, povoados de milhares de espécies de peixes, mas que jogamos em suas águas grande parte do lixo que produzimos. Que hoje as ondas do Amazonas nos trazem frascos de bebidas, pacotes plásticos de alimentos, restos mortais de móveis domésticos. Que não nos interessamos mais pelo cultivo de jardins, e em cada quintal, em vez de arbustos e samambaias, há churrasqueiras nobres ou precárias, esculturas artísticas ou grosseiras. Que colocamos garças de cerâmica no lugar dos pássaros que costumavam voejar por entre os verdes. Que não sabemos e não procuramos saber reciclar quase nada. Que somos permissivos com quem destrói rios inventando barragens, com quem saqueia florestas nativas, com quem mata nascentes criando búfalos, com quem contamina águas e terras com resíduos de minério, com quem não reconhece a humanidade e a posse da terra dos povos indígenas…

Imagino que o leitor do futuro saiba exatamente tudo o que fizemos, mas talvez não saiba como nos sentimos. Pois saiba, leitor, que somos indiferentes. Na verdade, temos um magnífico discurso, de preservação, de sustentabilidade ambiental, escrevemos belos manifestos e os lemos publicamente, incitamos a atitude conservacionista, depois amassamos o papel e o jogamos ao pé da acácia que começa a florir, entramos no carro e rodamos por toda a cidade com o escapamento quebrado, distribuindo fumaça e panfletos e despertando ódio, lavamos o carro com a água tratada das torneiras, queimamos as folhas secas do quintal, jogamos fora as mangas caídas durante a noite, soltamos numa rua distante um pacote de gatos quase recém-nascidos, mandamos arrancar o jambeiro cuja raiz quebrou o concreto da varanda, espantamos os passarinhos que vêm comer os mamões, e finalmente vamos ao restaurante e comemos peixes de outra estação. À noite, temos a desfaçatez de dormir o sono dos justos.

Enquanto pensamos e escrevemos, espécies como o rinoceronte-de-java, o orangotango-de-sumatra, a tartaruga-gigante, o gorila-da-montanha e o tigre-siberiano estão dando seus últimos suspiros antes de desaparecer para sempre. Num futuro distante terão se conservado pelo menos as suas fotografias? Araucária, pau-brasil e jequitibá são árvores que não sobreviverão para dar sombra a gerações futuras.

Leitor do futuro, há coisas dessa sua época que você não entende? Pois seja o que for, saiba que faz parte do legado que lhe deixamos, nós, daqui do moderníssimo ano de 2018. Fizemos descobertas incríveis e talvez por isso você até esteja livre de doenças que conseguimos erradicar. Descobrimos a cura para males dos quais você só sabe pelos documentos históricos. Entretanto, nem todos os nossos feitos somados podem compensar o que destruímos e o que provavelmente continuaremos a destruir.

Estou longe de saber como será o planeta e a humanidade daqui a 500 anos… Mas diante do que exponho, não é difícil imaginar que cada gota de água será disputada, assim como cada palmo de boa terra e cada vão com ar puro. Por outro lado, quem sabe se os pequenos humanos já não recebam, ainda no ventre, uma injeção de consciência, um dos inventos do futuro, e cresçam sabendo se portar como seres evoluídos… Do tipo que saiba praticar as mais profundas teorias da preservação e da fraternidade. Aquelas que nestes tempos relegamos ao plano das ideias.

O leitor de 2517 se perguntará por que quisera eu ser lida por alguém de sua época. E eu tenho a responder que é unicamente para que ele tenha a singular satisfação de folhear um livro de papel e encontrar, lá pela página 80, uma pétala quase pulverizada da extinta rosa branca e um sincero e sentimental pedido de perdão.