Teresa (em preto e branco) – Tãgaha Soares

 

 
E foi na batata da perna de Teresa que escrevi as minhas primeiras palavras na língua nativa. 

No princípio, ela até gostou, ficou lisonjeada quando lhe disse que eu estava escrevendo um livro nela. Depois, me recusava, porque eu só procurava seu corpo para escrever…
 
O livro já estava pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou…
 
Sem ela, perdi o fio do novelo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco…
 
Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom.
 
Então, fui procurar as putas…

Ao leitor do futuro – Por Lulih Rojanski

Por Lulih Rojanski

Eu quero ter leitores, muitos leitores no futuro. Quero ter leitores agora também, aos milhares, mas hoje, particularmente, penso no leitor do futuro, aquele que tomará o livro nas mãos como uma relíquia de um passado distante, e que me lerá, com especial estranhamento às frases líricas, à linguagem poética, ao modo pretensioso de dizer coisas que todo mundo sabe como se fossem grandes novidades.

Não vou arriscar maiores projeções para esse futuro, não sei como serão os automóveis, a arquitetura das cidades, o figurino das criaturas. Apenas imagino que um dia teremos que nos render às mais inimagináveis tecnologias, e que nesse tempo incerto, nenhum livro impresso em papel fará parte do inventário de quem quer que seja. Quem sabe de algum colecionador propenso à nostalgia. Só. E se meus escritos fizerem parte de sua coleção, certamente terá sido por pura distração, pois a lista será composta por vencedores do Nobel de Literatura. E eu lá, plebeia e vulgar, no meio de Gabriel García Márquez, Faulkner, Bob Dylan…

Pois ao leitor do futuro eu quero dizer que aqui estamos, em 2017, crentes de que já vimos de tudo, e que tudo o que vier pela frente será variação sobre o mesmo tema. Que temos árvores em abundância, de todos os tamanhos e espécies, mas que as cortamos para dar espaço à construção de casas, edifícios e condomínios. Que temos rios imensos, povoados de milhares de espécies de peixes, mas que jogamos em suas águas grande parte do lixo que produzimos. Que hoje as ondas do Amazonas nos trazem frascos de bebidas, pacotes plásticos de alimentos, restos mortais de móveis domésticos. Que não nos interessamos mais pelo cultivo de jardins, e em cada quintal, em vez de arbustos e samambaias, há churrasqueiras nobres ou precárias, esculturas artísticas ou grosseiras. Que colocamos garças de cerâmica no lugar dos pássaros que costumavam voejar por entre os verdes. Que não sabemos e não procuramos saber reciclar quase nada. Que somos permissivos com quem destrói rios inventando barragens, com quem saqueia florestas nativas, com quem mata nascentes criando búfalos, com quem contamina águas e terras com resíduos de minério, com quem não reconhece a humanidade e a posse da terra dos povos indígenas…

Imagino que o leitor do futuro saiba exatamente tudo o que fizemos, mas talvez não saiba como nos sentimos. Pois saiba, leitor, que somos indiferentes. Na verdade, temos um magnífico discurso, de preservação, de sustentabilidade ambiental, escrevemos belos manifestos e os lemos publicamente, incitamos a atitude conservacionista, depois amassamos o papel e o jogamos ao pé da acácia que começa a florir, entramos no carro e rodamos por toda a cidade com o escapamento quebrado, distribuindo fumaça e panfletos e despertando ódio, lavamos o carro com a água tratada das torneiras, queimamos as folhas secas do quintal, jogamos fora as mangas caídas durante a noite, soltamos numa rua distante um pacote de gatos quase recém-nascidos, mandamos arrancar o jambeiro cuja raiz quebrou o concreto da varanda, espantamos os passarinhos que vêm comer os mamões, e finalmente vamos ao restaurante e comemos peixes de outra estação. À noite, temos a desfaçatez de dormir o sono dos justos.

Enquanto pensamos e escrevemos, espécies como o rinoceronte-de-java, o orangotango-de-sumatra, a tartaruga-gigante, o gorila-da-montanha e o tigre-siberiano estão dando seus últimos suspiros antes de desaparecer para sempre. Num futuro distante terão se conservado pelo menos as suas fotografias? Araucária, pau-brasil e jequitibá são árvores que não sobreviverão para dar sombra a gerações futuras.

Leitor do futuro, há coisas dessa sua época que você não entende? Pois seja o que for, saiba que faz parte do legado que lhe deixamos, nós, daqui do moderníssimo ano de 2018. Fizemos descobertas incríveis e talvez por isso você até esteja livre de doenças que conseguimos erradicar. Descobrimos a cura para males dos quais você só sabe pelos documentos históricos. Entretanto, nem todos os nossos feitos somados podem compensar o que destruímos e o que provavelmente continuaremos a destruir.

Estou longe de saber como será o planeta e a humanidade daqui a 500 anos… Mas diante do que exponho, não é difícil imaginar que cada gota de água será disputada, assim como cada palmo de boa terra e cada vão com ar puro. Por outro lado, quem sabe se os pequenos humanos já não recebam, ainda no ventre, uma injeção de consciência, um dos inventos do futuro, e cresçam sabendo se portar como seres evoluídos… Do tipo que saiba praticar as mais profundas teorias da preservação e da fraternidade. Aquelas que nestes tempos relegamos ao plano das ideias.

O leitor de 2517 se perguntará por que quisera eu ser lida por alguém de sua época. E eu tenho a responder que é unicamente para que ele tenha a singular satisfação de folhear um livro de papel e encontrar, lá pela página 80, uma pétala quase pulverizada da extinta rosa branca e um sincero e sentimental pedido de perdão.

Ninguém lê! – Crônica de Lulih Rojanski

Crônica de Lulih Rojanski

O que você está lendo? Qual foi o último livro que leu? Onde está o último livro que comprou? Quando o comprou? Onde está o último livro de cujo lançamento participou? Na estante, intacto, ignorado? Eu sinto muito por tudo isso. Honestamente, sinto muito, porque conheço as verdadeiras respostas a estas perguntas, por mais que nas redes sociais a maioria prefira dizer orgulhosa que está atolada em leituras, que tem dormido com Honoré de Balzac debaixo do travesseiro, que gastou em livros boa parte do décimo terceiro salário, que não vive sem Fernando Pessoa… Livros estão ficando no tempo do era uma vez. Editoras estão fechando as portas. Editores estão negociando selos com distribuidoras de literatura vendável e meia-boca. Escritores estão morrendo de desilusão com a cara enfiada na poeira de velhos livros, em arcaicas bibliotecas.

O grande leitor está morrendo. Ele sabe que só é importante para uma geração que está se extinguindo, vagando espaço para os grandes leitores de palavras abreviadas e emoticons sorridentes. Poesia é uma coisa de que o grande leitor de agora ouviu falar mas não sabe exatamente o que significa, como funciona, em que botão se aperta. Conto e crônica são coisas que um professor mencionou, mas ele não se lembra se foi na aula de geografia ou no último filme que baixou no computador. Ele pensa que romance é apenas uma anacrônica história de amor, mais desusada que um rádio de pilhas.

Estou contrariada. Não pertenço a este tempo em que redes sociais influenciam mentes mais do que os livros…

Eu não me preocupo com quem vai se ofender com o que digo. Os ofendidos estão de carapuça. Os que não estão compartilham da minha dor.

Fonte: Para-raio

O Dia em que eu chorei diante de uma tela de Antônio Bandeira – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

No dia em que eu chorei diante de uma tela de Antonio Bandeira, no Museu da Universidade, fiquei até com vergonha do púbico presente. Chorei, como dizem, copiosamente (Até hoje não sei porque falam isso, mas desconfio que é porque uma lágrima copia a outra). Que vergonha! Era apenas uma tela abstrata que explodia em cores, excelentemente pintada pelo famoso artista plástico cearense. Uma tela que falava de uma chuva de neve na Europa, onde ele viveu. Nela, o branco e o azul predominavam sobre os outros tons.

Chorei tanto que o curador da exposição me convidou para chorar no banheiro. Como eu recusei, ele mandou os seguranças me botarem para fora.

E lá fora eu continuei chorando no calor, vertendo um choro esquisito, um choro que jamais chorei em outra exposição. Não que eu me lembre. E olha que eu era chorão. Mas dessa vez eu estava mais sensível que todas, mais sensível do que naquela vez no Louvre quando inevitavelmente me derramei em prantos diante da mais bela e magnética tela que já vi em toda a minha vida: a Gioconda, de da Vinci.

Malditos! Sempre me botam pra fora das exposições de obras de pintores famosos.

Malditos! Não sabem que meu choro não é fingimento, pois eu não sou ator e muito menos produtor de pegadinhas para a televisão.

Malditos! Insensíveis! À flor da epiderme estão ouriçados pelos, e no peito bate um coração magoado e eles não sabem disso. Vão logo expulsando a gente e mandado olhar as pinturas de grafite, como se os pintores das ruas não soubessem pintar em sua linguagem pura e não acadêmica.

Bandeira é Bandeira, não o poeta, mas o pintor, este que eu só conhecia de ver catálogos impressos ou fotos repetidas em revistas de arte.

Antonio Bandeira não é o ator espanhol muito menos o dono do bar da esquina, mas o artista que me convida e me move a seguir seus quadros até chorar de paixão, pois nos seus traços eu nasço, vivo e morro na dimensão dos pigmentos e reentrâncias de cada pincelada decidida bruscamente. Ao olhar suas telas explodo minhas memórias e paixões de um tempo em que me encontrava entre o poder da escolha e o despoder de ficar ilhado em angústias. Um tempo de decisão de amar ou seguir, de me entregar ao insondável ou de viver. Contudo, meu sonho de viver era apenas uma paisagem tátil num horizonte tênue, enevoada pela ausência de razão com seu cromatismo cinza, que de repente encontrou na tela de Bandeira o dia nascente, a tarde e a noite iluminada. Por isso choro. E os curadores da exposição não deixam que eu me cure em nome da arte.

Malditos curadores!

A pretexto de bolos de chocolate – Conto de Ronaldo Rodrigues

Conto de Ronaldo Rodrigues

Esta história aconteceu num tempo e lugar muito remotos. Fui acusado de ter comido um bolo de chocolate. Nem tive tempo de alegar o fato de que não gostava de bolo, muito menos de bolo de chocolate. Era tudo meio confuso naquela época e nada do que pudéssemos dizer, por mais plausível que fosse, alteraria qualquer decisão do Governo Central. Tal governo havia inaugurado uma era de insegurança e delações premiadas, suspeitas e acusações que não precisavam ser fundamentadas para que fossem acatadas e executadas. Decretos aleatórios ressuscitaram leis que há muito tempo haviam sido revogadas. A criação da Comissão da Doutrina da Fé no Bolo de Chocolate foi mais um abuso daquele governo ignorante e incompetente. O bolo de chocolate tinha sido elevado ao status de iguaria divina, destinada somente aos altos escalões do Governo Central e os cidadãos comuns jamais poderiam comer.

A Comissão da Doutrina da Fé no Bolo de Chocolate nem quis me ouvir, não deu a menor bola pra minha declaração de inocência. Me levou preso sem a menor cerimônia, sem que eu tivesse chance de contratar o advogado de porta de cadeia que mendigava bem em frente à prisão de segurança máxima onde eram trancafiados os pecadores comedores de bolos de chocolate.

Fui levado a uma cela onde só cabiam eu e minha autoestima. Como minha autoestima não ocupava muito espaço, fiquei relativamente confortável e nem tive motivo pra reclamar, a não ser do rato que toda noite vinha me lembrar que aquilo era uma cela imunda. Fiquei ali por alguns meses sem saber o que seria resolvido a meu respeito, ingerindo a ração de carne podre que nutria minha covardia, meu medo e meu desalento, cada dia mais vorazes.

Certa vez, olhei pela janela a noite que se estendia lá fora. Estava iluminada por um clarão que não vinha da lua. Era até perigoso ficar olhando a lua, pois os admiradores do luar foram postos na marginalidade pelo governo. A luz também não vinha dos postes que ladeavam os caminhos que levavam à prisão. Estiquei bem o pescoço, pude olhar mais além e o que vi me deixou estarrecido. Era uma cruz de madeira pegando fogo. Ao redor, vários cavaleiros vestidos de uniformes e capuzes brancos e empunhando rifles. Só poderia ser a Ku Klux Klan, mas, apesar da KKK se encaixar perfeitamente naqueles tempos sombrios, ela só seria criada muito tempo depois.

Me recolhi ao cantinho da cela, onde o rato tinha acabado de urinar, e fiquei tremendo de medo de tudo aquilo, tentando dormir e acordar livre daquele pesadelo. De repente, um grupo de soldados entrou na minha cela, tomando Coca-Cola e disputando quem arrotava mais alto. Foi aí que o comandante olhou pra mim e berrou:

– Chegou a sua vez!

Pronto. Estava tudo acabado pra mim. Me levantei resignado e também louco pra que aquilo tudo terminasse. Estendi minhas mãos pra que os soldados me conduzissem até o local da execução. Mas o que ocorreu foi que o comandante me entregou uma garrafa de Coca-Cola e berrou novamente:

– Chegou a sua vez!

Aí compreendi. Tinha chegado a minha vez de tomar a Coca-Cola e participar do concurso de arroto. Então o comandante arrotou sua sentença:

– Se você conseguir arrotar mais alto do que nós, ganhará sua carta de alforria, sua liberdade, o perdão do Governo Central!

Claro que não acreditei que estavam me concedendo uma chance de escapar daquela situação, mas não pensei duas vezes (mesmo porque não era de pensar muito): virei a garrafa de Coca-Cola todinha na minha garganta sedenta e me preparei pra caprichar no arroto.

E foi mesmo o maior arroto que aquela região já havia escutado. Os soldados, todos arrotões de primeira grandeza, ficaram admirados com minha capacidade. Um especialista afirmou categoricamente que eu atingira uma nota ainda não registrada em toda a história da música, fato que só será superado num futuro distante, quando aparecerá um cara chamado Freddie Mercury.

Aí a minha vida deu uma reviravolta. Saí triunfalmente da prisão e me tornei um virtuose do arroto. Muita gente vinha tomar lições de arroto comigo e, dependendo da dedicação, em pouco tempo muitos alunos diplomados pela minha Universidade Musical do Arroto passaram a ocupar os mais cobiçados lugares nas maiores orquestras de arroto conhecidas na época.

Quando o Governo Central foi derrubado e o bolo de chocolate finalmente liberado pra toda a população, eu o introduzi nas lições de arroto. A combinação bolo de chocolate e Coca-Cola fez tanto sucesso que até eu passei a simpatizar com bolos de chocolate.

Assim, terminei meus dias, refestelado na glória, confortavelmente instalado em meu castelo, tendo aos meus pés os serviços de um batalhão de criados e a atenção de um número infindável de admiradores. Quanto ao arroto, passei a direção da minha universidade aos alunos mais destacados. Agora estou aposentado, só arrotando mesmo por esporte e pra não perder a embocadura.

A CASA DO EZEQUIAS – Por do Fernando Canto

Foto: Blog Porta Retrato

Crônica de Fernando Canto

A metade dos anos 80 trazia a grande expectativa de mudanças no caminho político do Brasil. Após a anistia de 1979 restava ainda o término do Governo Figueiredo e a transição democrática que se estabeleceria com a eleição de Tancredo e a posse de Sarney.

No Amapá tudo isso era motivo de conversa e os jornais emitiam opiniões bem diversificadas sobre o destino de nossa terra, causando certo frisson entre os leitores. E com a possibilidade de transformação em estado o antigo Território Federal cedeu espaço a centenas de aproveitadores políticos que para cá vieram em busca de uma vaga no parlamento. Foi nesse contexto que ressurgiu o Amapá Estado, fundado por Haroldo Franco, Silas e Ezequias Assis.

Governador Henning – Foto blog Repiquete no Meio do Mundo

Esse jornal havia sido editado pela primeira vez durante o governo de Henning, que segundo eles, quando leu o primeiro número o amassou e jogou fora dizendo que a pretensão dos jornalistas não passava de um engano,de uma utopia. Foi, também, nesse contexto que posteriormente foi lançado o jornal Fronteira, onde trabalhei com uma coluna informativa, ao lado de grandes expressões do jornalismo local como Alcy Araújo, Luís Melo, Jorge Herberth e Wilson Sena, por sinal o primeiro presidente da Associação dos Jornalistas do Amapá. Antes disso o Silas fechou o Amapá Estado e foi se estabelecer em Belém com um jornal maior.

Humberto Moreira – Foto: Blog Porta Retrato

Mas os grandes assuntos da pauta semanal do Fronteira eram discutidos na casa do Ezequias. Todos os sábados ele nos recebia com aquele jeito brincalhão, mostrando um exemplar que o Ricardo, seu filho, pegava no aeroporto (Naquela época era impresso em Belém.) e não economizava o orgulho de ver editado mais um número. E o que era para ser apenas informação virava celebração, pois nunca faltava uma boa dose do melhor uísque, uma carne de caça que o Baleia fornecia para o dono da casa desde que ele fora chefe de Gabinete da Secretaria de Obras e a viola do Nonato Leal, às vezes em duo com a do Sebastião Mont’Alverne. Ao lado disso, apreciadores da boa música, como o Alcy, se deleitavam ouvindo o Humberto Moreira interpretar Taiguara. Artistas e intelectuais chegavam como se estivessem ligados a uma rede invisível e automática, num tempo em que não havia celulares. Aimorezinho era um espetáculo tocando bossa nova com a sua escaleta e o inesquecível bandolim do Amilar parecia pousar em uma partitura mágica vinda das Brenhas de Mazagão. Ritmos se fundiam numa democracia musical crescente que só acabaria quase no início da noite com o sorriso sempre aberto da ilustre e querida amiga Nazaré Trindade. Antes, porém, Ezequias, Nonato e Sebastião faziam um coral com a música “Saci Pererê” de autoria dos três. Depois cantavam “Tauaparanaçu”, de Nonato, e arrematavam com “Rio Amazonas”, de autor desconhecido. A audiência não poupava elogios ao trio e se despedia de mais uma seresta tropical que a todos encantava.

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Ezequias Assis, Jorge Herberth e Fernando Canto. Professor Munhoz ao fundo – Foto encontrada no blog da Sônia Canto.

Tanto Ezequias como Nazaré já se despediram deste mundo. Mas o dom da generosidade que neles havia fica na memória e na eterna gratidão pelo que ensinaram e pelo que foram.

Certa vez, num tempo de vacas magras do jornal, Ezequias me chamou e disse que não podia me pagar naquele mês, mas que iria dar um jeito. Falou que estava querendo “ajeitar” seu carro e que decidira deixar para o outro mês. Foi lá dentro e voltou com quatro pneus novos e 120 dólares e me disse: – Toma. Troca os pneus carecas do teu carro e fica com esse dinheiro pra quebrar o galho. No mês que vem a gente se acerta.

Depois ele me abraçou e pediu ao Ricardo para preparar uns uísques. Ficamos bebendo em silêncio.

*Fotos: 2-Governador Artur de Azevedo Henning (o que amassou o jornal) – encontrada no blog da Alcilene. 3 – Jornalista e cantor Humberto Moreira (blog Porta Retrato).

Resenha crítica do livro Paisagem Antiga, da escritora Alcinéa Cavalcante – Por Fernando Canto

Por Fernando Canto

Alcinéa Cavalcante é, hoje, a herdeira abençoada de uma geração de poetas amapaenses do início do Território Federal do Amapá que conseguiram expressar seus sentimentos telúricos e representar um modelo de criações modernistas no contexto amazônico. No meio desses poetas estavam seu pai Alcy Araújo junto com Álvaro da Cunha, Ivo Torres, Aluísio Cunha e Arthur Nery Marinho, que chegaram a publicar revistas, livros e a antologia “Modernos Poetas do Amapá”, em 1960.

Antes da autora, porém, outros vates publicaram trabalhos modernistas, como foi o caso de Isnard Brandão de Lima Filho, Raimundevandro Salvador, Ronaldo Bandeira, Nazaré Trindade, Sílvio Leopoldo (estes já falecidos), Graça Viana, Manoel Bispo e Carlos Nilson. Todavia, o atingir de sua modernidade se dá pela forma diferenciada que busca a simplicidade na extensão de sua memória, o que a torna uma poeta, uma prosadora de notável labor – observando a relação com os poetas antecedentes que deram uma nova feição à construção poética local, ainda que com um atraso de um pouco mais de 20 anos, desde o Movimento Modernista de 1922.

No seu caminhar literário Alcinéa Cavalcante usa a imaginação e a memória e aborda a paisagem como um símbolo identitário iniludível que põe à mesa suas observações de mundo (real) e transforma signos e marcas (e por que não cicatrizes?) em expressões linguísticas, pois o que se segue, tanto nos poemas como nas crônicas são as retenções memoriais retratadas pelo seu olhar sensível e trabalhadas literariamente. E a paisagem é tudo diante dos sentidos: é a beleza do horizonte, o fazer do homem e da mulher, os gestos, os cheiros, os sons, o gosto… enfim, a cultura humana subjacente e primorosa, capturada pelos artistas, estes que exercem o ofício de construir figuras por metáforas, para dotar sua arte de maior valor artístico e interpretativo, além do invólucro que muitas vezes cerceia o entendimento.

Foto: Alcinéa Cavalcante ainda adolescente na paisagem antiga de Macapá.

No caso do livro aqui abordado, sua literariedade é madura e enfática e surge agora renovada e simples como na fase do cubismo de Picasso, que o fez refletir, já idoso, sobre o discernimento de pintar como uma criança, após tantos anos de rebuscamento e de experiências. Por isso é também comunicativa e significante. Seu prefaciador, o poeta Paulo Tarso Barros, foi feliz ao afirmar que “Parece que sua mão de poeta e mente treinada nos textos claros, objetivos e sintéticos do jornalismo, ao juntar a alquimia verbal que o seu estilo poético e inato tão bem o demonstra, surgem imagens plenas de ternura, sensibilidade e aquela saudade e nostalgia dos tempos da infância que ficou cristalizado na [sua] memória poética[…]”. Esse trecho reforça formidavelmente o que escrevi acima.

“Paisagem Antiga”, é, então, o testemunho de uma cidade em mudança, um impulso que se transforma em sentimentos de angústia e melancolia em contraste com a beleza e a alegria narradas e do profundo amor presente e carimbado em muitos textos do livro que evocam eventos memoriais. O trabalho da autora também traz e distribui tempestuosidades e temperanças. Porém, é mais motor que âncora pois se impulsiona de moto próprio no rio caudaloso e se instaura na literatura renascida e vigorosa sob o céu do equador, porque somente a revelação cósmica dessa atividade criadora, desse entusiasmo criativo confere seriedade à sua dimensão artística. Nela, o vivido, o lembrado, o esquecido, o silenciado e outras formas de interpretação de mundo – reais ou irreais – podem ser escritos e assim dotar a arte literária de um caráter maior e mais humano.

*Paisagem Antiga, a evocação da memória na obra de Alcinéa Cavalcante. Scortecci (2ª Ed.), São Paulo, 2012.

Meus muito queridos amigos Fernando Canto e Alcinéa Cavalcante.

Meu comentário: tenho orgulho de dizer que sou amigo desses dois monstros da Literatura Amapaense: Fernando e Alcinéa. Li o Paisagem Antiga em 2017 e a resenha do Canto retrata fielmente a obra sensacional da Néa. Parabéns aos dois escritores! (Elton Tavares).

Guitar Hero – Texto sensacional de Régis Sanches

Régis, o “Beck” ou “Anjo Galahell”, um dos melhores guitarristas que vi tocar – Fotos: Elton Tavares

Por Por Régis Sanches

Hoje me preparei para escrever sobre a vida errante dos guitarristas. Pensei nos menestréis, com seus alaúdes, levando alguma alegria para o festim dos lúgubres burgos ao redor dos castelos medievais. E não poderia deixar de reverenciar a memória de Django Reinhardt, o cigano belga que criou o naipe de duas guitarras, tendo seu irmão Joseph empunhando a base e ele próprio no solo. Reinhardt vestia-se a caráter. Em plena segunda guerra mundial, enquanto os foguetes alemães V-1 e V-2 explodiam nos céus de Paris, sua banda animava os sobreviventes do conflito no Clube de France.

Certa noite, a cidade-luz às escuras, Django retornou para casa, exaurido, após mais um show. Ele deitou-se em sua cama, os fumos do sono o absorveram por completo. Sua mulher havia esquecido uma vela acesa, a tênue chama tremulou e alcançou os lençóis. O guitarrista cigano sobreviveu, mas teve sua mão direita lesionada pelo fogo. Nas raras imagens desse precursor das modernas bandas de rock, podemos vê-lo com as cicatrizes do incêndio. Ele nunca desistiu de retirar das seis cordas o lamento necessário para cicatrizar as feridas da vida.

No início desta manhã, eu estava eletrizado pelo som metálico da minha guitarra. Lembrei de uma frase de Eric Clapton, chamado de Deus em pichações nas paredes do metrô de Londres, no final da década de 1960. “Ninguém consegue tocar blues honestamente de barriga cheia”. Mister Clapton é a alma dos guitarristas, uma espécie de Fênix que sobreviveu a todas as tragédias. Como mestre de George Harrison, roubou a mulher do melhor amigo. Transtornado, mergulhou e emergiu do mundo negro das drogas. Certa ocasião, seu filho caiu da janela do apartamento. Seu coração ficou dilacerado. Mas a resposta veio na forma da sublime “Tears in Heaven”.

O melhor de Eric Clapton pode ser sorvido, ouvindo-o executar a belíssima “White room”, de Robert Johnson. A poesia que descreve a solidão – “um lugar onde o sol nunca brilha/onde as sombras fogem de si mesmas” – só encontra dueto à altura no lirismo poético dos riffs arrancados pela slowhand do velho bluesman.

Poderia citar uma legião de guitarristas: Chuck Berry, B. B. King, Jimi Hendrix, Jimmy Page, Jeff Beck… Seria em vão. Os verdadeiros guitarristas, nós podemos contá-los nos dedos de apenas uma das mãos. Os homens de verdade sabem que há duas coisas no mundo que não se vende, nem se empresta: a mulher e o carro. Incluo no rol a minha guitarra. Pois aqueles que tiveram a sorte de nascer com a alma de guitarrista hão de concordar. Na essência de todo guitarrista, além da sensibilidade, da disciplina e de uma dose exagerada de humildade, existe uma tragédia iminente rondando o destino desses modernos menestréis. Vida longa a Eric Clapton! 

Meu comentário: Régis Sanches é o jornalista com um dos melhores textos que conheci na vida e um dos maiores guitarristas que vi tocar (Elton). 

COMO É BOM SER MULHER! – Por Mariana Distéfano Ribeiro

Por Mariana Distéfano Ribeiro

É sim, ser mulher é muito legal. Hoje, que é o dia internacional da mulher, vamos tirar um pouco o foco de todas as dificuldades que a gente sofre e atura todos os dias. Na verdade são as pessoas femininas que passam por isso – homens homossexuais, mulheres transexuais, mulheres e qualquer outro gênero ou qualquer coisa humana que seja feminina.

É só o ser humano que despreza outro ser da sua própria espécie à troco de nada. E de todas as outras pra falar a verdade… Mas vamos mudar o rumo dessa prosa porque a intenção hoje é parabenizar, homenagear, congratular, enaltecer não só a mulher, mas a figura feminina que é linda, cheirosa e gostosa!

Ser mulher é bom demais né?! Já parou pra pensar o tanto de coisa que o mundo produz só pras mulheres? Vamos começar com a maquiagem, porque não tem nada mais feminino que maquiagem. A quantidade de cores e texturas e cheiros disponíveis pra gente escolher, misturar e se pintar é quase infinita. E quando a gente se pinta a gente se transforma. A gente, que é feminina, pode mudar de cara todos os dias e quantas vezes quiser. Até quem não curte maquiagem, só de passar um batonzinho e uma máscara para cílios poderosa já dá um boost na autoestima e a gente dá até uma empinada no nariz, como quem diz: uau, tô gat@!

E quanto a roupas e sapatos?! Ah, mas nem comecemos a falar das roupas e sapatos?! Quem não ama um pisante novo? Até a menos consumista das mulheres ama um sapatinho novo, um chinelo que seja. Eu mesmo adoro chinelos! Coleciono, tenho vários, até porque minha cachorra come os que eu esqueço na varanda (rs). Sem falar na variedade de cores e formas e materiais de que são feitos. A variedade de roupas também segue o mesmo caminho. São tantas e de tantos estilos que a gente nem consegue identificar qual o nosso preferido!

A gente pode até escolher se quer engravidar ou não! Se quer casar ou não, se quer ser professora ou gari, engenheira ou advogada, dona de casa ou empresária. Se quer namorar homem ou mulher, ou os dois! Podemos escolher de quem a gente gosta e de quem a gente não gosta. E quando somos grossas com alguém, sempre podemos botar a culpa na TPM na hora de pedir de desculpas (porque toda vez que faz grosseria a gente tem que pedir desculpas, mamãe ensinou)!

É essa variedade de opções disponível pras mulheres que faz a vida da gente ficar divertida. Nem ligamos de menstruar por sete dias todos os meses, sentir as dores das cólicas e ficar alguns dias extremamente irritada ou sensível. E até isso varia! Tem mulher que fica menstruada por três dias, nem sente cólica e nem irritação. Tem mulher que passa dez dias irritada antes da menstruação, depois menstrua por mais dez dias e sente cólica por cinco dias desses dez! Mas até essa oscilação dos hormônios é divertida.

A gente pode fazer o que quiser, quando quiser, onde quiser, como quiser e com quem quiser! E ainda pode fazer de salto alto, com uma maquiagem bafo e aquele vestidinho que arrasa! É claro, os homens também podem. A diferença é que eles sempre puderam e a gente só pode agora porque mulheres visionárias e guerreiras lutaram e morreram pra gente conseguir todos os direitos e liberdades que a gente tem.

Então, o dia hoje é seu, é pra você, pessoa que é feminina de coração ou de corpo. É nosso. Parabéns pra nós, porque a gente merece!

*Além de feminista com orgulho, Mariana Distéfano Ribeiro é bacharel em Direito, servidora do Ministério Público do Amapá e adora tudo e todos que carreguem consigo o brilho de uma vibe positiva.

A Mulher Amapaense – Por Raul Tabajara

Por Raul Tabajara

O dom que leva diretamente a mulher a divindade é sem dúvida a maternidade, e na opinião de muitas pessoas, não existe DEUS e sim DEUSA, que pare, e não um DEUS macho que está no céu e a mulher na terra. Mas isso é papo para outra ocasião.

Hoje, verificamos que o movimento em defesa das mulheres no Amapá, com suas diversas frentes, é proporcionalmente um dos mais intensos do País. Estão na mídia o ano todo, exercem pressão por Políticas Públicas que visam à melhoria da qualidade de vida das mulheres, principalmente as mais necessitadas, que são as de baixa escolaridade e renda, e dentre essas, as que mais se destacam são mulheres negras. Isso ocorre devido alguns grupos de mulheres já terem alcançado certo grau de organização e de reconhecimento de seus direitos básicos de cidadã e principalmente de MULHER.

Em decorrência dessas atuações, observamos nas últimas pesquisas oficiais que os indicadores socioeconômicos têm melhorado com uma taxa acima da média nacional para as mulheres amapaenses e isso é devido a Políticas Públicas implementadas nos últimos anos pelos Governos: Federal, Estadual e Municipal.

Nesta semana li em uma coluna de um diário, a afirmação de que as mulheres amapaenses são maiores que as de Atenas. Essa afirmativa é relativa como tudo é nessa vida, porém, LINDAS, como as mulheres amapaenses. Mas de uma coisa tenho certeza, a mãe amapaense é a maior do BRASIL.

Em 1970, a taxa de fecundidade da mãe amapaense girava em torno de 8 filhos por mulher. Essa era a maior taxa de fecundidade do país na época, e correspondia a taxas de países bem menos desenvolvidas que o nosso. Cerca de 30 anos depois, em 2000, esse indicador teve uma queda de 50 %, e as mulheres amapaenses já tinham quatro filhos em média.

Vale salientar que essa redução não ocorreu naturalmente, pois uma queda dessa proporção em um período de tempo relativamente curto, não ocorre em um indicador tão importante como número médio de filhos por mulher. Então o que ocorreu com as mulheres do Amapá?

Claramente a resposta que vem é a EDUCAÇÃO. A partir da metade dos anos 70, quando a televisão começou a atuar em Macapá, as mulheres começaram a ter acesso às informações da maneira de lidar com seu corpo e exigir seus direitos de mulher. Ainda no começo dos anos oitenta, começou a popularização aqui no Amapá, o que já vinha ocorrendo nos centros mais desenvolvidos, os métodos contraceptivos, principalmente a pílula anticoncepcional, que já havia sido moda nos anos 60 nos grandes centros do país.

Lembramos também que na primeira década dos anos oitenta, programas de televisão como TV mulher e Malu Mulher, tiveram sua contribuição nesse despertar da mulher amapaense, porem o aumento da escolaridade e o acesso das mulheres a universidade e ao mercado de trabalho, foram fundamentais nessa redução da fecundidade.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD e o censo de 2010 revelam que a mulher amapaense continua com uma das maiores taxas de fecundidade do país, próximo de 3,0 filhos por mulher, enquanto a do Brasil ficou abaixo de 2,0, praticamente uma taxa de reposição. Essas pesquisas revelam ainda que 70 % das mulheres amapaenses entre 15 a 49 anos já tiveram filhos, hoje correspondendo a 158 mil mulheres, e 57 % das mulheres que já tiveram filhos nascidos vivos, possuem 3 ou mais filhos (um pouco mais de 60 mil mulheres).

Além da redução da fecundidade, outro indicador que mostra o avanço das mulheres amapaenses nas últimas décadas é a responsabilidade pelos domicílios. Possuímos algo em torno de 160 mil domicílios, sendo que em 30 % deles as mulheres foram identificadas como responsáveis, e essa taxa é a terceira do país ficando atrás do Rio de Janeiro e o Distrito Federal. Dentro dessa linha, observamos que dos domicílios cujo responsável é uma mulher, um terço, por volta de 16 mil domicílios, as mulheres se declararam responsáveis mesmo possuindo cônjuge, sendo essa taxa menor apenas ao Distrito federal.

O avanço é também observado nos novos arranjos conjugais que são formados. No censo de 2010 verificou-se que 188 casais se declaram serem do mesmo sexo, e o que chama a atenção é que desses, 148 casais (78 %) são formados por mulheres e 40 (22 %) são casais masculinos.

Essas e outras informações fazem parte de um sistema de indicadores sobre os diversos aspectos associados ao desenvolvimento humano e social das mulheres no âmbito da família, do trabalho, da educação etc., elaborados a partir dos micro dados da amostra dos Censos Demográficos pelo IBGE.

O Sistema Nacional de Informações de Gênero (SNIG) é uma iniciativa da Secretaria Especial de Política para as Mulheres, órgão ligado diretamente à Presidência da República. O Sistema foi desenvolvido para servir como instrumento de conhecimento da realidade das mulheres no Brasil, oferecendo subsídios indispensáveis para o planejamento e implementação de políticas públicas nesta área.

* Contribuição de Fernando Canto.

 

Depois do Carnaval a gente recomeça (Crônica sensacional de Fernando Canto)

Por Fernando Canto

Não tenho nenhuma dúvida que quem gosta do carnaval é hedonista, e nesse caso guarda a obrigação para depois do prazer. O carnaval é o tempo em que se tira o uso da carne, no seu sentido literal do latim carnelevamen, mas que é tempo também em que se promove a licenciosidade, a crítica, o erotismo e a voluptuosidade.

Deixar as coisas para depois desse grande acontecimento na vida do brasileiro é prática normal. Tudo se resolve depois do carnaval. O tratamento daquela gastrite, a construção da calçada, o pagamento da luz e do cartão de crédito e até o abastecimento da geladeira. – Ora, ainda tem muita coisa pra se aproveitar na despensa. Pensa o guerreiro fantasiado. – Depois a gente resolve isso, fica frio, diz o chefe da repartição. O Governo abre o orçamento bem pertinho do carnaval, mas só depois é que as ações deslancham e se encaixam, após a imprescindível curtição da ressaca. Às vezes até adianta o pagamento dos funcionários públicos para que estes possam ser felizes e não se esquecerem jamais o quanto os governantes são legais. Depois que acaba o dinheiro do salário, o folião não tem o menor pudor de pedir fiado no mercantil da esquina, no boteco da praça e até no ambulante que conheceu um dia desses no ensaio da escola de samba. Pagará depois, se assim o dono da birita ou da comida aprovar.

O depois do carnaval pode ser espichado para muito longe, depende do valor do fiado, dos interesses do chefe da repartição ou do Governo, que sempre aproveita essa época para encaminhar projetos ao Legislativo, sem alarde, porque o povo nem vai saber. O povo não está nem aí, quer curtir o carnaval. E só. Se souber, diz: – Depois a gente pensa no assunto e tenta resolver.

Soube pelo jornal que o Governo e a Prefeitura vão mudar o secretariado logo que termine a quadra momesca, porque se mexer muito agora pode ter prejuízos políticos. Desde pequenos damos ouvidos a expressões idiomáticas como “Não se deixa para depois o que se pode fazer hoje” e “Deus ajuda quem cedo madruga”, que ensejam a necessidade do trabalho bem feito, com tempo e disposição ou aquela que trata do mau trabalho, daquilo feito com má vontade, onde o tempo também é elemento necessário: “o preguiçoso trabalha duas vezes”. Ideólogos dizem que elas são frases carregadas do espírito capitalista que desde o início da colonização tentou mudar o rumo da vida brasileira a dizendo que o índio era indolente.

Que besteira, dizem uns, por que iria querer trabalhar feito um cão para ganhar dinheiro se a natureza dava tudo a ele? O peixe, as caças, as frutas da floresta, a água… Talvez por isso tenha sido escravizado em algumas regiões. Mal sabiam, porém, os portugueses, que eles mesmos iriam introduzir o carnaval do Brasil e com isso deixar a festa rolar. Assim abandonaram a grosseria do entrudo para depois, em 1852, trazerem a novidade do Zé Pereira, que era “um conjunto de bombos e tambores capitaneados pelo sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes”, segundo o musicólogo Edigar de Alencar. Por ser ruidoso e contagiante logo se alastrou pelo Rio de Janeiro e depois por todo o país.

Para muitos de nós, brasileiros, as resoluções que tomamos no ano novo só iniciam mesmo depois dessa festa, quando pensamos em criar vergonha e caminhar para perder uns quilinhos, quando decidimos sobre o que precisamos e queremos há tempos, para depois realizarmos algumas ações hipocritazinhas como se nada tivesse acontecido no carnaval, embora sempre haja a conivência de alguém. Eu poderia ir bem mais longe com estas elucubrações, porém hoje é dia de desfile e a minha escola me chama.

Não posso deixar esse desfile tão esperado por um ano para nele faltar, assim vão falar mal de mim até depois do carnaval. Talvez nem venha a concluir este artigo, por causa da agitação que precede um acontecimento importante como este, onde minha agremiação é uma das favoritas para ser a campeã. Também não posso de jeito nenhum deixar de assumir minha responsabilidade que é escrever este artigo. Mas hoje é sábado e posso concluí-lo mais tarde. Ou talvez depois das 12h00 da quarta-feira de Cinzas quando me recolho, como milhões de outros brasileiros, a uma quase santa meditação.

É que vem o tempo da Quaresma e depois da Semana Santa, no Domingo da Páscoa, rompendo a Aleluia, inicia o ciclo do Marabaixo.

Publicado em 2008. Jornal do Dia

Depois que A Banda passa – Texto porreta de @heluanaquintas

Por Heluana Quintas

Passa a Banda com toda a gente da cidade. Estranhas figuras reptilianas respiram água no mormaço e transpiram sob tecidos coloridos. Para cada penacho molhado, há um milhão de gotinhas de suor varando o poro das lantejoulas e explodindo no choque, no chacoalho e no chão.

A marcha pirada, foliã do improvável, do cenário verde-molhado, conduz uma alegoria movida a vapor de asfalto e um sentimento de disposição para o inesquecível. Acenam galhofeiros, fanfarrões, lambisgoias e no destaque uma mulher de meia rasgada côa assovios entre os dentes.

Chega a noite e todas flores de mangue já estão carnívoras. Sobram pela FAB os brigões, os bêbados e os blefados. Pela manhã, passa nas avenidas, o bloco das sandálias perdidas. É a banda da sandália. No seu curso ímpar, ela é a piada do amigo, o resto da briga, o passo incompleto. Ela é parte do conto inesquecível de alguém, é a prova de que a Banda passou mais uma vez com seu antigo sucesso de mormaço aos cinco dias do mês de março.

Calças de Linho Flutuantes e os Nomes dos Blocos- Crônica porreta de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Na constelação de brilho intermitente do carnaval você pode se tornar uma estrela. Basta querer. Quem não se identificar com o samba tem a opção de sair no meio de um bloco carnavalesco, onde os brincantes se esbaldam no frevo rasgado ou ao som das tradicionais marchinhas que trazem temas diversos na competição anual entre eles.

Dada a sugestão está feito o convite. Um pouco tardio, creio, mas feito com o carinho de quem quer ver o carnaval macapaense brilhar mais do que do que brilhou no passado. “Um passado de glórias”, como diz um antigo samba dos Boêmios do Laguinho. Um passado feito de desfiles e batalhas de confetes que encantavam as crianças nos domingos de fevereiro em diversos pontos da cidade e faziam a alegria da juventude.

É inesquecível para mim a figura da porta-bandeira Telma e do mestre-sala Sucuriju rodopiando no asfalto da avenida FAB sob o calor dos holofotes e do aplauso do povo laguinhense. O povo aplaudia e gritava quando o grande passista, o Mestre Falconeri dançava, balançando as largas calças de linho que pareciam fazê-lo flutuar sobre o chão.

Mas o povo delirava mesmo era cantando o samba aprendido às pressas nos últimos dias que antecediam ao desfile, uma prática usual de todas as escolas. Era a partir do samba que se faziam os enredos. Então ele era guardado a sete chaves até próximo do dia do desfile oficial para que as escolas concorrentes não o plagiassem e nem ao enredo. Francisco Lino, o Menestrel, que o diga.

As escolas da déuntitledcada de 60 e parte da de 70 eram parecidas com os blocos de hoje que almejam serem escolas de samba: traziam apenas um carro alegórico e um pequeno contingente de brincantes. A diferença é que a maioria dos instrumentos musicais era fabricada por aqui mesmo. Os próprios brincantes faziam seus querequexés e agogôs, frigideiras e tamborins. Minutos antes de entrarem na passarela acendiam fogueiras para esticar o couro dos tambores a fim de evitar que murchassem devido ao tempo ou a uma chuva inesperada. De acordo com o Pedro Ramos, o maior repiquinista dos Estilizados, o instrumentista tinha que levar uma folha de jornal no bolso para esquentar os tamborins feitos de couro de cobra pelo seu Joaquim Suçuarana. Sambistas e passistas mirins, como o Neck e o Kipilino, se revelavam novos talentos e se tornaram o orgulho de sua escola.

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Antigo Carnaval na Avenida Fab. A multidão amanhecia e ia atrás da última escola a desfilar

Enquanto Luís do Apito (pai do Bababá, atual mestre de Bateria dos Boêmios) organizava a batucada, R. Peixe se preparava para trazer a sua recém-criada Embaixada do Samba, uma dissidência da Piratas da Batucada. Esta, por sua vez, trazia em suas hostes os incansáveis e pouco reconhecidos compositores Jeconias Araújo e Juriel Monteiro. Lá atrás Pelé e Fifita, Neusona e Escurinho aguardavam sua vez de desfilar ao som dos sambas de Izar Leão ou de Nonato Leal e Alcy Araújo, apaixonados que eram pela verde-rosOLYMPUS DIGITAL CAMERAa macapaense.

Nos anos 80 surgiram as escolas de samba de 2º grupo, como a Piratas Estilizados (que foi bloco por muitos anos) a Unidos da Coaracy Nunes, a Quilombo dos Palmares, Emissários da Cegonha e a Solidariedade. Daí, então, o carnaval amapaense teve outra formatação até o advento do sambódromo, que foi o território do Piratão por um longo reinado. De 1997 para cá, o brilho do carnaval foi mais intenso.kubalanca_2005_thumb[2]

Mas uma coisa marcante, hoje, é o desfile dos blocos. Eles estão em todos os bairros e todo ano se multiplicam levando suas temáticas e irreverências pelas ruas da cidade até se encontrarem no desfile da terça-feira na Banda. Creio que são a cara do nosso carnaval, ainda que queiram embotar-lhe o brilho com falso moralismo, em função dos nomes de dupla conotação que carregam. Carnaval em São Paulo no início do século XXOra, o carnaval amapaense é muito brasileiro. É irreverente e feliz. Traz como características a eliminação da repressão e da censura e a liberdade de atitudes críticas e eróticas. Realça o sorriso das crianças e não descarta nem esconde a sensualidade das mulheres tão sensualmente amapaenses, tão lindas e alegres, que optaram por brilhar no carnaval.

SÍMBOLOS E MARCAS DAS ESCOLAS DE SAMBA – Por Fernando Canto

 

Por Fernando Canto1765_boemios10fotomarciadocarmo

Enquanto as campanhas políticas estão nas ruas as escolas de samba amapaenses iniciam nos bastidores sua competição anual em busca da vitória no carnaval. A guerra se ensaia pelos preparativos necessários à materialização dos enredos que sempre são vastos e interessantes.

Mas hoje me detenho na interpretação de seus símbolos, escolhidos para apresentar no carro abre-alas e dar de imediato ao público a expectativa das outras alegorias que acompanharão o cortejo pelo sambódromo.

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Duas dessas escolas escolheram como símbolos a águia. A Jardim Felicidade e a Império Santanense podem se dar ao luxo de terem a chamada “rainha das aves” e um dos mais importantes símbolos das mitologias de todas as civilizações como marca, a exemplo da Portela, do Rio de janeiro. Para os índios norte-americanos a águia é o poder do Grande Espírito. Representa a habilidade de se viver no reino espiritual e ao mesmo tempo permanecer em conexão e equilíbrio com o reino terrestre. Carminha Levy e Álvaro Machado informam em seu livro “A Sabedoria dos Animais”, que na América do Norte “a admiração pelo pássaro parece ter passado de nativos a colonizadores sem prejuízo, já que um grupo de maçons que idealizou as leis e símbolos dos Estados Unidos elegeu a orgulhosa águia-de-cabeça-branca (ou águia americana) como representante de seu país”. Mircea Eliade relata que a águia era a ave solar entre os antigos povos siberianos e que os gregos tomaram emprestado o simbolismo dos sírios, e ela tornou-se o animal sagrado de Zeus. Sua qualidade de animal psicopompo também era bastante ressaltada entre eles, e a imagem da águia foi gravada na tumba de Platão, para bem conduzi-lo às regiões celestiais.soli

Mas apesar de todo o imaginário dos antigos astecas e de outros índios sul-americanos (com o condor e o gavião real) é zoologicamente incorreto chamar de águia, do gênero Aquila L., os nossos falconiformes. A verdadeira águia não existe no Brasil.

A escola Solidariedade é representada por um Jacareacanga (cabeça de jacaré). Em que pese a interpretação popular que é um animal “que vai na beira e volta” (uma alusão aos constantes descimentos e subimentos da escola), o jacaré é uma divindade noturna e lunar, senhor das águas primevas. Segundo Chevalier e Gheerbrant, o Ocidente retém do jacaré (crocodilo) a sua voracidade, mas faz dele um “símbolo de duplicidade e hipocrisia”. Na mitologia chinesa ele é o inventor do tambor e do canto. Tem, então, certo papel no ritmo e na harmonia do mundo. Como intermediário entre a terra e a água é o símbolo das contradições fundamentais e de uma natureza viciosa.

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A Maracatu da Favela traz em suas insígnias a coroa do Divino Espírito Santo,a terceira pessoa da Santíssima Trindade no panteão católico. Representa luz divina espalhada sobre a humanidade. A pomba do Divino é o símbolo da paz, esperança, fidelidade conjugal e simplicidade, bem como dor resignada, de acordo com Levy e Machado. Op. Cit.).

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Os Emissários têm a cegonha em seu estandarte: uma ave migradora, portadora da lenda de que traz os bebês recém-nascidos. Os boêmios mudaram seu símbolo para ao guará, ave que se assemelha à íbis egípcia. Ela é a encarnação do deus Tot, deus da palavra criadora, patrono dos astrônomos, dos contabilistas, dos mágicos, dos curandeiros e dos feiticeiros. O guará da mitologia indígena, assim como a íbis, tem o dom da previsão e da sabedoria.

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Já os Piratas da Batucada e os Piratas Estilizados trazem um pirata, que segundo o Aurélio, é bandido que cruza os mares só com o fito de roubar; ladrão, gatuno, tratante, espertalhão, malandro, e outros epítetos inerentes a esse símbolo.

O tema é amplo e certamente voltará a ser tratado neste espaço.

* Fotos encontradas no site G1 Amapá e nos blogs da Alcinéa Cavalcante e Notícias Daqui.