Minha amiga Júlia Canto casou e seu pai, o também querido Fernando Canto, escreveu esse textaço como votos de felicidade

Qualquer um de nós deseja felicidades aos nossos entes queridos de um jeito. Gosto de escrever para os meus, mas queria mesmo era redigir votos como o Fernando Canto, que escreveu esse texto lindão para a Júlia, sua filha e assim como ele, amiga minha. Leiam a lindeza (Elton Tavares):

Hoje é o casamento de minha filha Júlia Martins Canto com Jerry Max Hilder em Denver, Colorado- EUA. Parabéns, filha. Seja muito feliz.

Querida filha, você me pediu um poema para o seu casamento. Entendi que seu desejo talvez fosse um texto que falasse do amor, de um amor maduro, feito de areia, cimento e água, para ser modelado segundo a sua vontade. Um amor que misturou o tempo e a realidade, o sonho e o espaço nas andanças que você fez apreendendo geografias e paisagens nos seus olhos.

E certamente você andou. Você viu além das suas janelas de criança um Atlântico azul, visualizou os mistérios da Amazônia diante das águas do maior rio do mundo, sob o sol claro na linha do equador. Você sentiu na pele o vento gelado e o manto branco da neve do Colorado e de outros lugares do planeta que carregou na memória até hoje.

E agora, em frente a seu marido, fará uma promessa sob a beleza de um ritual de milênios, onde se consagra um sentimento para a continuação da humanidade.

Querida Júlia, o antes vem agora em reais aplicativos que não se compram na internet, pois é um estado de permanente mudança que idealizamos e aceitamos até mesmo quando não queremos. E nenhuma vontade expressa deve subjugar o sonho do outro no caminhar de duas pessoas que se amam.

Olhe, o amor tem ponto de partida e uma longa caminhada quando os olhos miram outro ponto no horizonte. O amor mais verdadeiro é um iate que precisa de hábil condução dentro das tempestades ou na calmaria dos mares, quando procuramos portos para abastecê-lo e consertá-lo para seguir as novas rotas que se impõem ao sabor das estações.

Talvez o mar seja o amor. E o barco a vela a lâmina cortante das ondas inevitáveis. Talvez o céu seja o amor e o avião um lírico objeto das nuvens irreais que mudam de figura quando o vento sopra em seu interior. Ah, mas este mar me parece um sonho desenhado sobre uma guitarra que toca um rock com o som de Jimmy Hendrix. O amor suporta tímpanos, ouvidos suportam o amor e as mãos sinceras aplaudem cada gesto, pois o amor é silêncio e barulho, é água e fogo, é ação humana na estação dos deuses.

Às vezes corta a pele e o coração, mas cura suas feridas e se tatua sobre as próprias cicatrizes.

Querida filha Júlia, seja muito feliz no seu casamento, com seu marido que um dia espero conhecê-lo. Te amo.

Fernando Canto
21 de fevereiro de 2019

VAZANTE – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Ele há muitos anos não bebe água…

Ocupado em recolher as datas, as que são ocupadas por episódios trágicos.

Arranca dos Calendários da parede as folhas numeradas marcando as datas dos meses, e os dias das semanas.

E as coloca dentro de um saco de plástico bege que chama de Existência.

Sua mulher doutro lado da sala, onde nestes últimos anos eles transformaram em sala, quarto, cozinha e área de seus raros banhos…o observa em silêncio…sua ocupação, aparar as bordas desniveladas da papelada que ele ensaca para lhes dar um primoroso acabamento…

Ele não bebe água…embora a vasilha que ela encheu na bica que a chuva transborda e deixa escorrer abundante, houvesse chegando ao meio, só ela havia consumido o líquido.

Ele, da água não beberá um gole.

Estava magro e ressecado, como uma mala velha de couro, e sua calça e camisa pareciam tão secas como ele próprio.

Estava recolhendo o que ele próprio chamava de sobrevivência…para ensacar nos sacos chamados por ele de Existência.

Os discos, as fichas telefônicas, as gaiolas onde antes pulavam os Curiós, o tapete espesso onde procriaram três gerações de gatos Siameses, e estampilhas de imagens de toureiros, damas tocando castanholas, e espadachins portentosos.

Um monte de sacos amontoados no caminho do antigo corredor que ia rumo ao quintal… desaparecerá…o barulho da televisão, agora mais um chiado continuo, que fala inaudível, se fazia presente…longinquamente.

E vários pacotes de vela, para serem acessas em sequência, pois a tempos se fora a luz elétrica, não que não houvesse fios, apenas quebraram-se as lâmpadas, vieram as velas.

A casa era triste…as dobras da rua defronte pareciam querer fugir dali…mas ele não bebia água…

As árvores plantadas no quintal decorando de folhas o chão,os troncos não eram mais de madeira, eram agora de papel machê, porque também não bebiam água…

Ele catando passos, falas, espirros, algazarras, sorrisos, e desenhos feitos a mão, em determinados momentos,fazia trejeitos e repetia monólogos, cuja a única testemunha eram os ponteiros do relógio, que ele usará para prender um cadarço de sapato na parede para nele dependurar coisa esquecidas…

Um caos…a própria vida começou a evitar aquela casa.

A noite passava ao largo.

A chuva deixou de vir…

Um silêncio triste, sentou debaixo das árvores, e ficou calado.

Tudo era um traçado de ensacar coisas deles, e de tudo,e o todo, que ele achava que era um grão.

Ela doutro lado da então agora uma coisa qualquer chamada antes de sala, se transformou, em água.

E ele cabisbaixo entrando no derradeiro saco, não bebeu.

* Além de contista, Luiz Jorge Ferreira é poeta, escritor e médico amapaense que reside em São Paulo e também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

A barreira ao feminismo contemporâneo – Por Mariana Distéfano Ribeiro

Por Mariana Distéfano Ribeiro

Sabe que esses dias eu me dei conta de que a luta pela igualdade entre homens e mulheres hoje em dia é muito mais difícil que a luta travada antigamente, quando mulher não podia votar, não podia usar calça, não tinha direito a dispor de sua herança, não podia estudar (até hoje há lugares em que é proibido), era um ser que servia apenas para procriação (a criminalização do aborto pela Câmara dos Deputados não é mera coincidência).

Estranha essa afirmação, né? A luta feminista dos dias de hoje ser mais difícil que a luta de antigamente parece até falácia, mas vem comigo nesse raciocínio que eu te mostro o porquê.

Quando se tinha uma linha divisória bem definida entre a existência de um direito ao homem e a impossibilidade do exercício desse direito por uma mulher, ficava muito clara a injustiça. Vejamos o direito ao voto, por exemplo, um dos maiores marcos civis da vitória das mulheres por direitos iguais. A barreira era formal (porque a lei proibia) e material (porque o próprio direito da mulher não existia).

Aí eu pergunto: qual explicação jurídica, ontológica, antropológica ou até biológica que justifique o impedimento de uma mulher ao voto? Nenhuma né?! Ou o fato de ter uma vagina entre as pernas seria uma justificativa?

Outro exemplo é o direito de frequentar escolas e universidades. Até hoje existem regiões do mundo em que meninas não podem frequentar escolas e nem as mulheres podem frequentar universidades. A história da paquistanesa, ganhadora do prêmio Nobel da paz, Malala Yousafzai, é um exemplo de ativismo pelos direitos humanos das mulheres e do acesso à educação no Paquistão.

Mais uma vez eu pergunto: qual explicação jurídica, ontológica, antropológica ou até biológica que justifique o impedimento do acesso de uma mulher à educação, às escolas e universidades? Nenhuma né?! Ou o fato de ter uma vagina entre as pernas seria uma justificativa?

Mas hoje em dia, pelo menos na esfera civil e jurídica, tanto formal e materialmente (perante a lei e o direito), existe paridade de direitos entre homens e mulheres. Isso nas regiões do mundo em que impera o regime democrático de governo.

Então, a barreira que tem que ser vencida aqui e agora é a barreira moral, filosófica, cultural, dos costumes. E isso é muito mais difícil de derrubar. É o preconceito velado, oculto, latente que a gente, que é mulher, vivencia todos os dias.

Percebeu que a barreira que limita o direito da mulher hoje em dia é cultural? Quando um homem se relaciona com várias mulheres solteiras ou casadas, sendo ele mesmo solteiro ou casado, o que as pessoas vão pensar dele? Que é um bon vivant, um dom juan, o pegador, no máximo vão falar que não vale nada. Mas ainda assim, ninguém vai desprezar um homem por pegar geral e não valer nada. Vão dar um tapinha nas costas, isso sim, e dizer: esse é meu garoto!

Agora, considere uma mulher que se relaciona com vários homens solteiros ou casados, sendo ela mesma solteira ou casada, o que as pessoas vão pensar dela? Que é uma vadia, que é vagabunda, que não vale nada, que não serve para ser mãe e se for mãe é um mau exemplo para os filhos. E por aí vai, a lista de adjetivos pejorativos é longa. E com certeza vai ser desprezada por pegar geral e não valer nada. Vão dar um tapa na cara, isso sim, e dizer: sua puta!

Esse é só um exemplo de como a moral e bons costumes são relativizados dependendo de quem se trata, e isso tem consequências direta ou indiretamente relacionadas à violência contra a mulher e a figura homossexual feminina.

Entre 1980 e 2013, 106.093 pessoas morreram apenas pela condição de serem mulheres¹. É uma média de quase 1 mulher por dia a cada ano! Sem falar nos casos que não entram nas estatísticas por não serem considerados violência contra a mulher por sua condição. Quanto aos homens? Esses não sofrem violência apenas pela condição de serem homens.

Percebeu agora? É matemático, é estatístico. E ainda tem gente que acha que feminismo é mimimi, que é vitimismo.

As igualdades formal e material existem. A igualdade de fato ainda é utopia.

*Além de feminista com orgulho, Mariana Distéfano Ribeiro é bacharel em Direito, servidora do Ministério Público do Amapá e adora tudo e todos que carreguem consigo o brilho de uma vibe positiva.

Fonte: Agência Brasil

As Estrelas da Tarde (Conto paid’égua de Fernando Canto)

Conto de Fernando Canto

– Quem vê uma estrela de dia será feliz, disse-me o homem de cabelos brancos com quem costumava conversar quando voltava da escola.

Eu havia contado a ele que há dias vira uma delas, grande e brilhosa, dentro de nuvens escuras (cumulus-nimbus, frisei, orgulhoso do meu aprendizado escolar), antes que elas vertessem sobre o mundo suas águas lacerantes.

Seu Unvagnime ficava todo fim de tarde na calçada observando os poucos passantes da rua enladeirada, onde um tempo lento absorvia a realidade e abria seu portal para uma dimensão que nos olhava de soslaio. Junto a sua cadeira de macarrão, afundada de tantos sentares, havia sempre uma garrafa térmica com café que oferecia aos seus conversadores ocasionais. Entre eles eu. Parava ali como se estivesse atendendo a um chamado, mas meus colegas de escola o escarneciam por causa de sua aparência. Cheguei a brigar por causa disso com um deles, que também era meu vizinho.

Tornei-me um conversador contumaz e um apreciador daquele café puro, colhido, torrado e moído no pilão por suas filhas solteironas, umas meninas galegas de cabelos louríssimos e de olhos azuis, azuis. Pareciam mulheres nórdicas que pulavam de dentro de revistas e se escondiam nos meus sonhos. Eram albinas. Quando voltava da missa aos domingos eu as acompanhava. Estavam sempre de óculos escuros e lenços de seda na cabeça. Chamavam-se Anabella e Ana Bolena. Aparentavam tristeza, mas sorriam quando falavam comigo.

Em uma dessas conversas com o ancião perguntei se ele já teria visto uma estrela de dia. Ele percebeu minha curiosidade, ajeitou os óculos espelhados estilo ray-ban que mandou buscar por um catálogo, e disse:

Vi muitas, Josset, vi muitas. E sou feliz, eu juro. Por Deus e pelas sete chagas de Cristo, repetindo o juramento com entusiasmo.

Contou suas aventuras como marítimo e pescador, dos sete naufrágios em que se salvou, sendo que quatro deles aconteceram em pleno dia. Falava como se estivesse revivendo tudo aquilo, olhando a embarcação estraçalhada pelas vagas do oceano, embaixo de procelas inacabáveis. Falou que sua voz e seus ouvidos estouravam na dança arritmada das águas, no vai-e-vem, no vai-vai, no vem-vem das ondas, nos punhais da chuva baguda disparada pelo vento.

E graças às estrelas que corriam entre as nuvens, me disse, soubera que direção tomar. Em um desses desastres ele nadou, nadou, e nadou no rumo das ilhas, ao sabor da corrente, até ser encontrado por um barco de passageiros que ia em direção às ilhas do Bailique. Sempre que se salvava de um naufrágio estava preso a uma boia, a um botijão de gás ou outro objeto que os ajudavam a se salvar. Certa vez, ele e um marinheiro se agarraram a um tronco solto na maré depois que o barco virou surpreendido por uma pororoca entre o continente e a ilha do Brigue. Infelizmente seu parceiro sumiu nas águas barrentas e ele nada pôde fazer.


– Vi muitas vezes, Josset, tantas que nem procurei a felicidade, se é que queres saber. Ela veio a mim e eu sou feliz. Viver foi a minha condição de felicidade, que é tão rude como as ondas do mar na tempestade. Vi muitas, meu amigo. Como são suaves e belas ao cair da tarde. O céu me deu a escolha de tê-las grandes ou pequenas. Eu quis a que veio a mim por quatro vezes para que eu tivesse uma longa vida. Conheci pessoas que tiveram esse condão e foram contempladas com a sorte da riqueza. Elas pouco viveram, mas compensaram suas vidas espalhando sua felicidade no tempo a outros que dela precisaram.

Olha rapaz, disse o velho, a felicidade não é um objeto, um ser, uma alma. Ela apenas é. Ela vive, sim, em um tempo duradouro, às vezes na forma de uma estrela avistada por poucos em tardes de tempestades.

Narrou suas histórias por um bom tempo. Quando terminou de falar encheu o copo de café e o entornou. Eu fiz o mesmo e fui para casa. Quase não dormi naquela noite, imaginando viagens pelos mares, e por causa do café.

No dia seguinte ao voltar da escola deparei com uma multidão na sua casa. Velavam seu corpo na sala. Eu que nunca havia passado pelo portão do quintal me surpreendi com aquele ambiente esquisito, nem alegre nem soturno.

Havia conjuntos de móveis estofados, enormes telas de paisagens amazônicas nas paredes, sempre com barcos navegando; cristaleiras com taças e cálices com bordas de ouro, estantes abarrotadas de livros e de miniaturas de barcos, tapetes coloridos sob mesas de mármore com pés de madeira nobre; uma geladeira vermelha meio arredondada e uma vitrola hi-fi de mogno num canto. Na sala contígua estava o caixão branco com o corpo do velho Unvagnime ornado de flores, anzóis e pedaços de rede de pesca. Em seu peito haviam colocado a bandeira do Brasil e a do Sindicato dos Pescadores.

Cumprimentei suas filhas com o devido respeito, me contendo para não chorar, pois já possuía a experiência de morte na família e a perda de uma pessoa que considerava amiga me doía muito. Aproximei-me do corpo. No rosto pálido haviam deixado os óculos espelhados, a pedido dele, me disseram.

E foram muitas as lágrimas que caíram dos meus olhos naquelas lentes que me refletiam.

Eu os tirei do rosto para enxugá-los com blusa do meu uniforme e olhei seu rosto bem de perto, mas em vez de seus olhos fechados vi duas estrelas faiscando como se estivessem me chamando em código, do alto de uma nuvem escura.

Um cheiro de café explodia em todos os meus sentidos. Saí daquele ambiente plenamente entranhado de sensações estranhas e de uma felicidade extemporânea.

Ela sempre reina em mim quando olho para o céu e procuro estrelas da tarde. Se a sorte chega e vejo uma, pequena e fugaz que seja, ouso transformá-la em nebulosas infinitas.

Cidade Lançante (crônica de Fernando Canto em homenagem à Macapá)

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Por Fernando Canto

Esta baía é uma grande gamela de líquidas contorções, ondas que bailam sob a música do vento.

Esta baía não guarda mais o sangue inglês do comandante Roger Frey que pereceu sob a espada implacável do capitão Ayres Chichorro a 14 de julho de 1632, um dia claro, aliás, de verão amazônico, quando o sol derretia naus e o piche dos tombadilhos. Nem o sol, nem o vento, nem o oceano lá adiante cogitavam que naquela mesma data, dali a 157 anos o povo francês tomaria a Bastilha.

Na margem esquerda deste rio imensurável uma floresta úmida abrigava uns seres esquisitos, cabeludos e cheios de penas coloridas que os portugueses conheciam por Tucuju, Tikuju, Tecoju ou Tecoyen. Segundo ensina a mestra Dominique esse era um povo de origem Aruaque, ocupante da Costa Sul do Amapá que se tornou aliado dos holandeses, dos franceses e dos irlandeses. Por isso foi atacado impiedosamente por uma expedição do desbravador Pedro Teixeira no ano da graça de 1624. Sua história, no contexto da nossa, dá conta que após a façanha do capitão português esse povo procurou abrigo no Cabo do Norte, mas foi reduzido pelos jesuítas a uma missão no baixo Araguari e pelos capuchinhos no baixo Jari. É provável que um pequeno grupo tenha sobrevivido ao sul do município de Mazagão até o início do século XIX. Desse pequenino grupo restaram apenas as cinzas do tempo e um soluço quase imperceptível que morre a cada segundo na agonia de todos os silêncios.

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Esta baía guarda estranhos segredos: uns são contados em língua morta, quando o hálito da madrugada sopra depois que a lua assim determina. Esses são de difícil entendimento. Os outros pairam nos escaninhos dos tabocais ou na boca das pirararas. Dificilmente serão contados.

O estuário deste rio dadivoso acelera a corrente de 2,5 quilômetros por hora para jogar no oceano cerca de 220 mil metros cúbicos de água por segundo. O inacreditável é que apenas o desaguar de 24 horas daria para abastecer de água potável uma cidade superpovoada como São Paulo por quase 30 anos. Números são números, diria o matemático. Nessa foz está a redenção de nossa terra, diz o sonhador sem perder sua utopia. Do barro e dos detritos aluviais se faz a vida. E ela está ali dentro das águas à espera da sustentação das mãos trabalhadoras.

Esta baía não se faz só de águas e barcos deslizando ao sabor das ondas. Ela abriga uma pequena jóia nascida sobre a várzea dos aturiás, velada há dois séculos por uma fortaleza plantada em cima de falésias.

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Foto: Juvenal Canto

Macapá, velho pomar das macabas, carrega dentro de si a similitude de um éden tropical das narrativas dos antigos viajantes, até por ser banhada por tantos líquidos e cheiros advindos diariamente pela chuva refrescante e pela espuma das lançantes marés.

Macaba, Maca-paba:gordura, óleo, seiva do fruto da palmeira, vida e princípio desta terra, posto que a sombra traz a ternura e contrasta com o benefício da luz que se espraia por glebas de esperança.

Antiga terra da maleita e da febre terçã. Terra do “já teve” já não és. Mas alguns homens ainda jogam em teu traçado xadrez e, silenciosos, manipulam segredos e conspiram contra ti, a degradar-te e degredando teus verdadeiros sonhos e tua vocação para o abrigar da vida que se espera. Mesmo assim a felicidade bem insiste em se hospedar em ti.

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Embora batizada com nome de santo – especialíssimo no panteão católico – teus habitantes não ficam isentos dos perigos: pés se torcem ou se fraturam todos os dias nos buracos das ruas outrora bem cuidadas.

Agora eu fico aqui me perguntando: por que quando te fundaram ergueram um pelourinho? – “Símbolo das franquias municipais”, dirão os doutos e sisudos professores. Ora, quantos homens não castigaram seus escravos até à morte após a partida do governador Francisco, porque estes aproveitaram para fugir durante a solenidade.

Um tralhoto viu e contou ao Mucuim que diz-que o Ouvidor-Geral e Corregedor Paschoal de Abranches Madeira Fernando tomou um porre de excelente vinho do Porto ofertado a ele nesse dia pelo plenipotenciário capitão-general Mendonça Furtado, que daqui zarpou para o rio Negro para demarcar as fronteiras do reino, a mando de Pombal. Foi um dia de festa aquele 04 de fevereiro de 1758, porque nasceu naquele instante a vila de São José de Macapá.

E ela cresceu e se fez linda e amada, pois os caruanas das águas vez por outra rondam em espirais por aí, passeando em livros abertos, nos teclados dos computadores, pelas portas e pelos filtros dos aparelhos de ar condicionado, nos protegendo das agruras naturais e das decisões de homens isentos do compromisso de te amar.

Parabéns, Macapá!

* Texto escrito em 2001.

Homenagem à Macapá – Por @BernadethFarias

SãoJosé

Por Benadeth Farias

Índios, brancos, negros, mamelucos, mulatos, cafuzos. Uma rica mistura de origens, um povo que se aperfeiçoa a cada geração. Gente morena que traz na alma fé e graça. Força talhada na miscigenação. Povo hospitaleiro com sangue guerreiro. Terra tucuju, beleza de norte a sul. Macapá das bacabas, do açaí, e até da sucuri. Terra do peixe farto, que traz no prato o gosto do pirarucu saboreado com um suco de cupuaçú. Gastronomia regional que já atravessou outro canal. Do açaí ao peixe e camarão, uma delicia saboreada com um bom pirão.

Na feira do tradicional mercado central, o corre corre em direção ao canal. Na procura por uma refeição, quem não tomou aquela garapa com pastelão? Mas no momento atual, o churrasquinho de gato virou prato principal e custa apenas um real.

10477421_776613925694154_8676649923332490034_oMacapá do majestoso rio amazonas, ora calmo, rasante, lançante, imponente feito gente. Protegido por São José nos quer sempre perto, de braço aberto. Na orla da capital, um cenário tropical, a música regional embala o casal.

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Cidade do Marco Zero, dois hemisférios, um verdadeiro mistério. No Estádio Zerão muita emoção. É a bola no pé de quem tem sempre fé. E na Catedral de São José muita oração. Fiéis em ação para pedir proteção.

No corredor da folia, muita energia, gingado e alegria. Com o samba no pé, e no coração haja emoção. Terra de batuque e marabaixo. Do grupo pilão que canta com empolgação. Do Zé que vai para o mato apanhar açaí, sem esquecer o tucupi.

Macapá do Negro Sacaca, das grandes áreas de ressaca. Das plantas medicinais milagrosas usadas por mulheres fogosas. Do Curiaú de fora e de dentro que se tornou um alento. Macapá da Fazendinha, das brincadeiras de cirandinha. Cidade de encantos e cantos.

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Poesia, simpatia, alegria, não faltam a Macapá. Inspiração tem até para sobrar. Falo da cidade que surgiu a partir de um destacamento militar. Proteger a fronteira do Brasil foi um grande desafio, mas estou aqui para relembrar que o governador do Grão Pará fundou Macapá.

Cidade que oferece amor, trabalho e dedicação aos filhos de nascimento e aqueles de coração. Macapá é um refugio de sonhos e concretização de realidades. Beleza natural, diversidade cultural. Povo caloroso e guerreiro, com o coração cheio de amor para dar, alegria de viver, tristeza nem pensar, assim é Macapá.

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Desenvolvimento, turismo e beleza, combinação perfeita e que com certeza atrai quem procura a natureza. Pontos inexplorados, cenários que mexem com a imaginação e são inspiração

E com ousadia arrisquei fazer essa rima em forma de poesia que me deu muita alegria. Macapá é simplesmente o lugar onde quero sempre morar.

*Bernadeth Farias é jornalista com 29 anos de experiência no Amapá. Há anos atua de forma brilhante na chefia da Comunicação Institucional do Tribunal de Justiça do Amapá (Tjap), além de querida amiga minha.  

SER SOLIDÁRIO – Crônica de Fernando Canto

Por Fernando Canto

Ao sair de casa na manhã de uma quinta-feira, a jornalista Andréia Freitas se viu numa situação inusitada. Na esquina de sua casa um casal de velhos pedia socorro aos passantes porque a senhora passava mal. Ela se prontificou em ajudar, colocou os dois no carro e foi direto para o Hospital de Emergência. No caminho a mulher se debatia e o velho rezava. Desesperada de tentar chegar a tempo e salvar a vida da mulher, Andréia tentou furar sinais, solicitando espaço aos motoristas, mostrando a urgência de ultrapassá-los, tendo os faróis e o pisca – alerta ligados. Contudo, os motoristas não a deixavam passar, o que notadamente contribuía para o atraso de sua missão àquela hora da manhã.

A duras penas chegou ao hospital gritando para que socorressem a senhora, até que alguém veio com uma cadeira de rodas ao invés de uma maca. Como tinha que dar seu expediente no trabalho, voltou mais tarde ao hospital, onde lhe informaram que senhora já havia chegado morta, após fulminante infarto que ela não percebera no trajeto.

Mesmo tentando se controlar do estresse pelo qual passara, a jornalista chegou a passar mal com a notícia, pois esperava ter salvado a mulher. Então um misto de tristeza e impotência lhe abateu.

Esta história verdadeira nos faz pensar na solidariedade de poucos heróis anônimos urbanos, ao mesmo tempo em que olhamos Macapá hoje praticamente assemelhada aos grandes centros, onde a desconfiança e a falta de urbanidade se alastram como produtos do individualismo, da competição e do medo.

Embora pequena, nossa cidade começa a ter características urbanas, não apenas pela violência nas ruas, como gangues, trânsitos e assaltos, mas por essa ausência de olhar o “outro” como olhávamos até há pouco tempo. Éramos talvez uma família pronta para ajudar os mais necessitados e aqueles que vinham de longe em busca de um lugar melhor para viver. Pelo prestígio de cada chefe de família trabalhador se podia conseguir emprego aos que chegavam “com uma mão na frente e outra atrás”. Dávamos esmolas conhecendo a realidade do pedinte e ninguém acreditava em lendas importadas de outros centros urbanos, como as que diziam serem os mendigos pessoas ricas que investiam seu dinheiro – produto da caridade alheia – em compras de casas e carros. Todo mundo conhecia o seu Chico Mocó e a Cega do Morro do Sapo, lá do Laguinho, que nem sempre pediam dinheiro, mas mantimentos para suas famílias, já que eram notórios deficientes físicos e não podiam exercer plenamente atividades rentáveis. Mas isso não era importante. O importante era ficar bem com a sua consciência solidária, certamente avivada pelos preceitos religiosos que faziam as pessoas ficarem mais felizes e cumpridoras de seus deveres espirituais.

Talvez eu esteja sendo um pouco romântico ou mesmo saudosista ao enfocar este tema. Porém, não tenho a menor vergonha de dizer, sim, que fui ajudado por amigos nas horas mais difíceis, que fui solidarizado e defendido em situações de agressões espúrias e infundadas e que sou grato a muitos, anônimos ou não, que me levantaram quando vacilei na caminhada. Embora particularize uma história, vejo que a solidariedade não sumiu totalmente da nossa vida. Observo sucessivas campanhas realizadas por instituições sérias; admiro aquelas que poderão realizar o sonho de muitos (ainda que suscitadas possíveis irregularidades fiscais na Internet), e acompanho atentamente entidades locais que têm satisfação em ajudar aqueles que necessitam.

O medo, a violência e o individualismo geram consequências atrozes, posso reiterar aqui, pois, se de um lado o ser humano torna-se mais egoísta, em função do status quo que alcança na sociedade, de outro se percebe o crescimento da miséria humana, notadamente entre uma juventude que não consegue se desvencilhar das drogas que torna os indivíduos presos a uma anomia irreversível.

O Navio dos Cabeludos e a Educação pelo Medo – Crônica muito paid’égua de Fernando Canto

 

Crônica do sociólogo Fernando Canto

O medo de fazer algo errado e ser punido controlava a ação de qualquer moleque da minha idade.

Os mais velhos comentavam com veemência sobre uma tal Ilha de Cutijuba, no Pará, para onde levavam os jovens transgressores das leis, falando misérias sobre ela. Diziam ser um presídio de onde era impossível fugir por causa dos tubarões e pirararas que viviam ao seu redor, perto do oceano; um lugar quase inacessível, que para viver era preciso lavrar a terra na chuva e no sol para produzir seu próprio alimento; uma prisão ao ar livre na qual poucos sobrevivam cumprindo suas penas. Em suma: um inferno.

O controle social bem articulado, posto nas nossas cabeças pelo medo, povoava nossas vidas desde a infância. Para cada situação sempre existia uma história que evitava o fazer errado. Era a educação pelo medo. Até hoje quando vejo uma sandália virada providencio logo que ela fique na posição de calçar, pois me ensinaram a acreditar na superstição de que minha mãe morreria se a sandália não estivesse de cabeça para cima. Espertos esses adultos! Eles inventaram uma forma de fazer as crianças não bagunçarem os espaços da casa e também de não castigá-las com surras e outra correções violentas. Certa vez um dos meus filhos, ainda criança, viu o irmão chutar uma sandália que ficou de cabeça para baixo num canto da sala. Imediatamente ele disse: – A mamãe vai morrer, eu não tô nem aí, eu não tô nem aí! E saiu se isentando da culpa da (im)provável “morte” de sua mãe, causada pela sandália virada.

Situações como essa aprendemos em todos os lugares, seja em casa, na rua ou na escola, onde nossas relações sociais se ampliam e solidificam. E assim a gente vai se educando, variando os conhecimentos, resistindo ou não às novidades, segundo os contextos históricos, sociais, culturais e políticos que se apresentam. Mas dificilmente essas superstições e abusões sairão de nossas memórias, embora entendê-las, hoje, signifique dar boas risadas, porque todas as representações simbólicas produzidas pela consciência coletiva ou individual expressam visões de mundo e de sociedade. É uma visão política de realidade porque as ideologias estão ligadas à compreensão da cultura, que por sua vez é uma percepção ligada às diferenças entre os homens. O controle implícito no gesto de “ajeitar” a sandália é uma experiência de poder.

Bem próximo, na continuação da educação pelo medo, lembro da expressão “- O Navio dos Cabeludos vem te buscar.”, uma forma de coação social e familiar para os que não gostavam de cortar os cabelos, principalmente no tempo da Jovem Guarda, quando era moda usar os cabelos compridos, mesmo se arriscando a ser chamado de “bicha”. Não sei de onde veio a dita expressão, mas desde a Guerra do Paraguai, passando pela Revolução dos Cabanos e pela Segunda Guerra Mundial, muitos jovens se escondiam no mato com medo dos “Pega-pega”, navios que passavam nos rios da Amazônia para alistá-los compulsoriamente e remetê-los aos campos de batalha.

A invenção dessa “pedagogia” não raro ainda se estabelece em muitos lares urbanos e rurais da Amazônia. E funciona com as crianças, porque todas têm medo. Nenhuma delas quer perder a mãe por causa da sandália virada. Ninguém quer viajar a força num desses Navios dos Cabeludos que sempre aparecem na frente da cidade para uma viagem sem destino e sem volta.

As praças dos velhos tempos – Crônica porreta de Fernando Canto

 

Crônica de Fernando Canto

Creio que todos nós nos lembramos de algum logradouro público da cidade como um espaço que marcou determinado momento de nossas vidas. E, claro, nada como um passeio nas praças de Macapá para fazer vir à tona os clipes nos quais fomos felizes protagonistas ou solitários incompreendidos frente às decepções e vicissitudes que a vida traz, inexoravelmente.

Quando Macapá era menor um passeio à praça significava um caminho para a conquista. Depois da missa ou depois da matinê do cinema, um toque na mão da namoradinha, um ousado “tocha” na despedida era “a glória” dos enamorados, era o sonho realizado sob o embalo da canção romântica interpretada por Ronnie Von que tanto sutumblr_mdlmayxg841re4txro1_500_largecesso fez na década de setenta. Alheios aos acontecimentos políticos, nem dávamos conta das transformações que se operavam no país naqueles tempos. O importante era a afirmação como homem e a curtição daquilo que chegava a nós de forma inócua, como os modismos americanos: a calça Lee, os cabelos longos e o som do Credence Revival de do Jonnhy Rivers, que o Agostinho e o Velton esnobavam em danças supostamente de moda para agitar a juventude nos salões dos clubes da cidade. A versão tupiniquim do calhambeque do Roberto Carlos e das roupas e sapatos da novela “Cavalo de PraçadaBandeira-fotos-antigas-de-macapá-433Aço”, também faziam sucesso, mesmo que a ainda não tivesse televisão funcionando em Macapá.

Nessa época todas as atividades cívicas se concentravam na Praça da Bandeira, bem como a do Barão (área em frente aos Correios) era usada para educação física dos alunos dos colégios próximos e a Veiga Cabral (área onde está hoje o Teatro das Bacabeiras) servia para a instalação de circos e arraiais de festas de santos. A da Bandeira fora a Praça da SPraça-Veiga-Cabral-2audade, onde havia três velas enormes em homenagem ao deputado Coaracy Nunes, ao promotor e suplente de deputado Hildemar Maia, e ao piloto Hamilton Silva, mortos em acidente no Macacoary, no final dos anos cinqüenta. A do Barão era a antiga Praça São José, onde ficava o pelourinho na planta desenhada pelo engenheiro João Gaspar de Gronfelds, em 1761. Depois virou Largo de São João e finalmente Barão do Rio Branco, no início do Território Federal do Amapá. A que hoje chamamos Veiga Cabral já foi a Praça de São Sebastião, onde foi fSem títuloundada a Vila de Macapá pelo governador Mendonça Furtado. Situada em frente à Igreja de São José, entre as ruas Formosa (hoje Cândido Mendes) e São José (a única que não mudou de nome desde a fundação de Macapá), já foi palco do Marabaixo, de comícios e de muitos concertos musicais realizados no coreto pelas bandas dos alunos do Padre Julio Lombaerd e do Mestre Oscar.

Vale ressaltar que nessa planta de Gronfelds, só havia então duas praças, e Macapá começava a ser planejada espacialmente por ele, cujas concepções nós estamos usufruindo até hoje. Segundo o urbanista e professor Alberto TostesOs Mocambos (1972), os grandes quarteirões e as ruas largas foram idealizados por Gronfelds porque o nosso clima quente e úmido é de massa equatorial, então toda a força para suprir essa diversidade vinha exatamente do rio Amazonas, daí a sua preocupação, antes mesmo da construção da fortaleza de São José, em planejar ruas largas e imensos quarteirões, em contraste com as ruas estreitas das cidades européias e coloniais. Ao resto, o engenheiro militar idealizou um grande sombreamento a partir do plantio de árvores para fazer a cobertura climática, o que suscita uma visão sustentável de cidade concebida há quase 250 anos.

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“A Praça é do povo”, recitava impetuosamente Castro Alves, é nela que se cruzam diariamente sonhos e textos, interesses e esperas, risos e lágrimas e tudo o mais que os seres humanos deixam escapar pelas janelas da alma. Suas aparências, sem dúvida, como dizem os pára-choques de caminhão, refletem o estado administrativo da cidade: são os espelhos das intenções e dos gestos políticos. Por isso, então, merecem os mais profundos cuidados no corte da grama, na poda de árvores e no conserto dos passeios e bancos, usados freqüentemente poempinando pipa (25)r quem tem pouca mobilidade. Não podem ficar à míngua, tomadas pelo mato, como a que existe na descida em frente à residência governamental, um velho e rasgado cartão postal, destruída por vândalos e esquecida pelo poder público, sob o testemunho triste dos velhos coqueiros balançantes na contraluz da nascente.

*Fotos encontradas nos blogs da Alcinéa, Alcilene e Porta Retrato.

FLAUTA – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

​De manhãzinha, seu Pedro descia os três degraus de escada, fechava a porta com chave, duas voltas, e seguia caminhando cabisbaixo como perseguido pelos sons da flauta que tocava nas horas de folga.

​Sempre aquele soprar enfadonho, semi-tonado, choroso e cabisbaixo como ele quando caminhava para o centro da cidade, onde funcionava a barbearia em que trabalhava há 40 anos, ali debaixo do antigo Grande Hotel do Pará.



Quando seu Pedro voltava, já começando a noite, alguns gatos atravessavam a rua, vindos do terreno baldio em frente e, miando, subiam pelo telhado de sua casa, entre as ervas ali dependuradas e telhas soltas cheias de limo.

Com a noite alta, os gatos atravessavam a rua e retornavam às suas moradas no terreno baldio do outro lado da rua. Então, terminava a folga dos ratos. A flauta se calava e o pessoal da república, a uma quadra dali, – Joca, Edílson Calouro, João Silva Santos, Veríssimo, Alípio e Edivaldo – acomodavam-se para estudar. Eu podia ver as notas correndo pela vala em meio à água rala que pouco cobria o lodo do fundo. Na rua tinha um cachorro vagabundo que, vez por outra, pulava na vala atrás delas, e as engolia de um só fôlego. Era ele fazer isso que a estudantada saía pela porta da sala e divertia-se ouvindo-o latir. Uns latidos meio miados, meio zunir de ratos, meio barulho de tesoura cega cortando cabelo.

Veríssimo era o mais moleque e o atiçava com uma toalha. Certa vez, foi tanta a algazarra que seu Pedro saiu na porta de sua casa e tocou na flauta um fado tão lamento, que as notas saíram da vala, da boca do cachorro, do barulho de uma rasga mortalha, e coloridas e em fila retornaram para a flauta. Seu Pedro fechou a porta e, mais depois, amanheceu. Tudo foi tão rápido que os degraus não tinham se levantado quando ele abriu a porta e desceu.

Noutro dia, eu soube que ele caíra e fora levado para o hospital. E que mais tarde toda a vizinhança o fora visitar. Uns levaram caqui, outros restos de mar, outros nacos de sol. Eu levei alguns gatos pardos e malhados e um rato, o que costumava cantar mais alto. Não consegui entrar.

À noitinha seu Pedro morreu. A vala foi aterrada pela Prefeitura. Chegou o carnaval e os gatos viraram tamborins. A flauta ficou pendurada na sala, guardando notas enferrujadas. Até que a casa ruiu. Os estudantes concluíram seus cursos e sumiram. Eu fiquei sozinho, escrevendo contos irreais sobre flautas, gatos, ratos, cães e valas. Coisas em que seu Pedro, também sozinho, nunca acreditou.

– Seu Pedro era canhoto?

* Além de contista, Luiz Jorge Ferreira é poeta, escritor e médico amapaense que reside em São Paulo e também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).
**Do livro Antena de Arame, Rumo Editorial- SP – II EDIÇÃO. 2017.

A APROPRIAÇÃO SOCIAL DAS CORES – Por Fernando Canto

Por Fernando Canto – Sociólogo

Não é de agora que as cores determinam gostos, tendências e paixões. Muito menos ideologias políticas. Quando existiam. A simples pigmentação que os nossos olhos vêem na natureza, o que para os físicos designa uma luz ou a radiação de certo comprimento de onda, pode se transformar num insulto ou até mesmo em objeto de cobrança do dia-a-dia.

No contexto social há uma apropriação simbólica veemente das cores. Apropriação essa que ultrapassa a coerência, mormente em períodos de campanhas eleitorais, quando se exacerba o desfraldar das bandeiras e se acirram apaixonadamente os interesses em busca de vitórias políticas. Cores que se identificam com a personalidade de indivíduos nem sempre se adequam à personalidade do grupo, o qual invariavelmente dita as normas para se caracterizar. Apesar de impalpável a cor transfixa-se em objeto, e como tal tem o profundo poder de mexer no psicológico das pessoas e de transformá-las em reprodutoras do seu significado. Torna-se, então, símbolo identitário de uma causa, sinal de algo que se instaura, signo expressivo sob a luz. E por estar em toda parte constitui-se inequivocadamente símbolo, capaz de suscitar movimento expresso em cada alma que busca razões de estar neste universo.

Não é à toa que as cores de uma paisagem falam uma linguagem capaz de ser entendida pelos poetas e artistas, os quais pressentem a presença de entidades e gênios e sabem o significado do mundo visto por eles. As cores representam uma espécie de milagre permanente de energia. E mais além encantam os olhos de cientistas por se apresentarem como enigma a ser decifrado. Desde a criação alegórica do mundo quando Deus disse “faça-se a luz” as cores explodiram no cosmo para dar ao homem que viria razões para pensar no seu processo de criação e fazer nascer a cultura, em oposição à natureza.

As sete cores que enxergamos no espectro solar: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta são apenas produtos de visão arbitrária, considerando que o olho humano é capaz de distinguir cerca de 700 tonalidades de cores diferentes. Todas elas estão carregadas de valores simbólicos que dificilmente alguém pode apartar. O vermelho, por exemplo, cor quente, associada ao planeta marte (deus da guerra), também tem relação mística com metal (ferro), com pedra preciosa (rubi ou sardônica) e com um dia da semana (terça-feira). Também é considerada a cor do fogo e do sangue. É a cor do amor, do orgulho, da violência, da virilidade masculina e da divindade. Por vezes representa o sol, que enquanto fogo celeste, é mais vermelho que amarelo. São aspectos da apropriação que o homem realizou desde os primórdios nas suas lutas para marcar seu território e conquistar outros. Assim cores são bandeiras e estas têm cores representativas de uma ideia ou de uma ação, que no decorrer dos tempos mudam de significado.

Lembro aqui que a cor representativa de um grupo, de um partido ou de uma causa pode incutir medo ou reações mais absurdas de servilismo ou de conduta desvairada em seus seguidores. Quem não se recorda de um período recente da vida local em que o tradicional Colégio Amapaense foi pintado de um amarelo tão feio que causava dor na retina de qualquer cidadão? Ou de quando as escolas públicas, em época não muito distante, eram de um azul escuro tão forte que tinha até nome e provocava raiva? Um certo movimento abarcou logo – democraticamente – o arco-íris todo.

Creio que por um lado essa apropriação demonstra os progressos e as mutações do homem na sociedade. O homem que vence suas paixões e desejos e eleva sua consciência procurando novos rumos em direção à luz. Por outro lado, porém, esse mesmo homem, ao empatar a luz com sua mesquinhez e loucura, ou mesmo ao se impor como dono de certa cor, decerto tornará o mundo mais obscuro e mais triste.

ESTAREMOS SEMPRE JUNTOS ESTA NOITE, AMORE MIO – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto
Ao pintor Olivar Cunha

– Não duvido mais, conclui Pietro di Paolo, triste, sentado no sofá, olhando para a estranha figura da tela abstrata que parece ter ganho nova forma, novo estilo e perdido as cores mais vivas.

– Daqui pra frente vão começar as mudanças. Te prepara, amore mio. Minha intuição é mais forte que as profecias de Nostradamus.

Betsylla acende o incenso enquanto o marido mergulha em si mesmo. Deve ser para meditar e para espantar as emissões malignas que penetram naquele apartamento. O odor se espalha minando cada canto da sala. A ideia é formar uma cortina esfumaçada para conter o que virá.

Pietro di Paolo não sabe mais a forma, dimensão, peso ou qualquer referência sobre o que virá daí para frente. Sabe que dentro da tela há uma moradia, exatamente nos olhos da figura deformada exposta na parede, que se manifesta aos poucos em três dimensões.

O quadro é grande, embora sem moldura, porém tem um chassi perfeito e seguro, o que lhe dá a impressão de indestrutibilidade. Mede 2,00 x 1,50 m e ocupa a parede de forma onipresente. Para onde se anda e se observa a imagem, os olhos dela estão nos olhos do observador. Provoca uma relação de dependência, suscitando um desejo de troca, de transposição. Assemelha-se a uma técnica medieval de pintura religiosa onde os santos parecem estar sempre observando os pecados dos crédulos. Betsylla traz o chá preto que ele pediu. Não dormirá nessa noite. Ela senta junto a ele e o afaga, lhe acariciando as barbas alongadas. Prepara-se para a noite comprida como à espera da revelação de um segredo.

– Vá dormir, amore mio, ele diz.
– Não tenho sono. Quero ficar.
– Você não está preparada pra…
– Estou, sim, diz cortando a frase bruscamente. – E não tenho medo. Eu te amo, amore mio. Estaremos sempre juntos.

Ficam longo tempo sem falar. Escutam Sonata para Violín y Piano, de Mozart, tão suavemente executada por Luiz Felipe e Armando Merino. Os olhos fixados nos olhos da tela sob a luz acesa da sala onde bebem várias xícaras de chá preto e café. A fumaça do incenso se confunde com a dos cigarros que fumam incessantemente. A causa que gera a situação não pode ser uma simples patologia ocular, um escotoma, um ponto negro, uma escuridão, uma ilusão que o cérebro possa achar que é o que quer ver. Nem o efeito um carma. Pietro di Paolo e Betsylla têm lá suas certezas e experiências de vida. Conhecem o mundo todo. E sabem, sabem de muitas coisas misteriosas.

O enfrentamento é inevitável. Será uma guerra de imaterialidade. Por isso os olhos estão acesos. Não cochilam em nenhum momento. A vigília é mútua pelo compromisso assumido entre os dois. Mas em dado momento o alerta vacila.

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Às 08h00 em ponto a diarista abre a porta, sente o cheiro estranho no ambiente. Copos, xícaras e pires, pedaços de torradas caídos na mesa da sala, o som dos instrumentos tocando num CD player e um lençol de casal no sofá, de onde emerge um homem disforme, bocejando e se espreguiçando. Ele é magro e está com o rosto pintado como se vestisse uma máscara. Pede café a mulher, que nem se assusta mais com as esquisitices daquela casa e de seus hóspedes.

Na parede da sala há um quadro novo, de cores vivas, com o retrato dos patrões.

– Eu, hem?! Que gente esquisita, esses estrangeiros, reclama a diarista. – Vivem mudando a decoração da parede e trazendo gente estranha pra cá.

Refeições em Família – Crônica porreta de Fernando Canto

  1. mtmacarrao63

Crônica de Fernando Canto

A gente fica meio besta ao tentar compreender a rapidez das mudanças comportamentais que ocorrem com a família da gente e dos amigos, por conta da forma como cada uma encara os fatos. Mas longe de mim tentar impor costumes não mais existentes ou querer mudar o rumo de coisas que necessariamente acontecem devido ao horário de trabalho, academia, escola e outros afazeres individuais. Comportamento novo, modo de vida, forma ligth de viver, liberdade total, seja o que for são conceitos que abrem caminhos diferentes e esboçam desenhos de um novo quadro de qualidade de vida por conta de valores individuais que prevalecem sobre os valores grupais.

cronica-vsp-0Só um dia destes me dei conta que almoçava só, sem companhia, sem conversa. O horário de trabalho era incompatível com o horário e a fome de todos os outros integrantes da casa. Meio chateado reclamei, mesmo sabendo que o quadro iria se repetir, porque a família nuclear hoje está tendendo mais para uma instituição fissurada, onde fatores espontâneos ou provocados liberam outras energias e a atomizam. A esses fatores dá-se o nome de estabili36946_53034-controlar-o-computador-pelo-celular-150x150dade na modernidade, na qual o dinheiro pode comprar toda uma parafernália eletrônica, quer queira quer não, nas melhores famílias, promovem até certo ponto essa atomização e a individualidade compulsória de seus membros. Apesar de todos os esforços dos pais (Conversei com vários deles.), à medida que a família cresce, dentro de cada casa, cada quarto de filho ou filha, com seus devedês, televisor, computador, games e internet, torna-se “território proibido” para os pais. Vira núcleo de acesso apenas para a empregada fazer limpeza e para os amigos(as) ou namorados(as). É uma suíte de um hotel confortável e reduto do(a) guerreiro(a).

1 a 1 a a a a vo jantarLembro quando almoçar com a família tinha horário marcado. O pai, e/ou a mãe, chegavam do trabalho, obrigavam todos a lavarem as mãos, faziam sua prece de agradecimento e só depois que o chefe se servia é que outros podiam comer. Até hoje as mães dão os melhores pedaços da galinha aos filhos. Só mais tarde é que fui descobrir porque elas “gostam” tanto do pescoço, do sobre e das asas. Depois do almoço a sesta do chefe era sagrada. Havia de descansar para voltar ao trabalho da tarde, em busca do sustento da família.

fam.tv_.50sCom o advento da televisão, as famílias que conseguiam comprar um aparelho se reuniam ao redor daquela luz azulada, na sala cheia de parentes e vizinhos, após o jantar espremido entre e o banho e a hora da novela. Esse encanto só se repetiria com a aquisição de um televisor a cores. Certa vez a luz apagou, foi embora e foi geral. Um silêncio total chegou com a escuridão na sala, até que alguém perguntou onde havia uma caixa de fósforos para acender uma vela. Ninguém mais sabia conversar, a não ser sobre a ansiedade da chegada da energia e com impropérios normais à companhia de eletricidade. Mas lembro que lá fora a lua macapaense, patrimônio dos olhos, brilhava, brilhava, e um satélite cruzava o céu do equador sobre a cidade às escuras.meteorwatch

O mundo gira no espaço, e nós como os satélites ao redor dele, às vezes brilhantes, às vezes precisando de conserto, mas sempre transmitindo mensagens e informações seguras aos filhos, tentando preservar alguns valores familiares. Quando a família está “brocada” e decide que não quer jantar, pede uma pizza gigante para comer diante da telinha do big brother, regada à maionese e ketchup. Depois vem a “facada”: – Empresta a chave e uma grana aí, velho! Mas isso não é nenhuma novidade. Só nova forma de repetir o que a maioria de nós já fez. O tempora! O mores!

O pente niquelado (crônica de Fernando Canto)

Crônica de Fernando Canto

Nos tempos áureos do Morro do Sapo, no bairro do Laguinho, quando a sede do Sete de Setembro Esporte Clube disputava com a do América Futebol Clube para ver qual era a mais social, nem tudo era só tranquilidade. Crimes ocorriam. Eventuais, sem grandes consequências, e outros violentos, envolvendo jovens que se perderam na cachaça. Alguns deles eram jogadores e frequentadores desses clubes, que cumpriram suas penas no chamado “cajual”, do Beirol.

Do pátio de casa acompanhei o movimento dos adultos, principalmente nas festas juninas realizadas no entorno da sede do Sete, com aquele arraial tão característico, onde o pau-de-sebo, o quebra-pote e a pescaria faziam a alegria da molecada. Vi, ali, “moças-donzelas” lindas que desfilavam nos concursos de “miss caipira” e que se tornariam moças casadoiras e objetos de desejo dos rapazes solteiros que já tinham uma “boa colocação” no Governo do Território.

Num desses domingos de festa eu soube da história do Rubens que virara desafeto de um sujeito do Igarapé das Mulheres por causa de uma jovem miss.

Por essa época a Rua São José era empiçarrada e cheio de capim alto nas suas margens, propícia para atos obscuros. Então, certo de que o Rubens viria para a festa, seu desafeto escondeu-se num capinzal da esquina com a Terceira Avenida do Laguinho, hoje General Osório, aonde iria surpreendê-lo. E assim foi: num átimo saltou sobre o Rubens e aplicou-lhe um golpe nas costas com um brilhante pente niquelado que parecia um canivete “Corneta”, muito usado pelos brigões da época. Rubens caiu no chão, levantou-se em seguida, cambaleando e pedindo socorro aos passantes, dizendo que fora esfaqueado pelo fulano, para em seguida desmaiar. Formou-se aquele deus-nos-acuda, pensamentos de vingança, chama-a-polícia-e-o-delegado-Olavo, vai-de-bicicleta-chamar-a-ambulância-que-o-Jagunço-vem-com-beira, etc. E eis que o nosso herói, ainda atordoado pelo golpe covarde acordou sem nenhum sangue esvaindo, um arranhãozinho de nada na costa e um enorme susto, que lhe marcaria a vida como a facada que não houve.

Na central de polícia tiveram que soltar o agressor, que se derretia de rir, no dia seguinte, já que não houve vítima. Mas o pente niquelado ficou retido por muito tempo como uma possível arma branca.

Enquanto o Sete de Setembro disputava o campeonato da segunda divisão no campo do América Futebol Clube (hoje Praça Chico Noé), o presidente Otacílio do Carmo, com suas eternas roupas de linho branco, dançava por horas seguidas sobre o assoalho encerado do clube com as moças de saias plissadas. Era um verdadeiro pé-de-valsa, imbatível na dança de boleros e merengues. Quando todos dançavam a molecada mais taludinha ia para embaixo do assoalho realizar suas primeiras experiências sexuais, olhando a paisagem pelas frestas.

Muitas histórias aconteceram ali naquela sede. Coisas que marcaram as testemunhas ainda crianças de uma cidade em evolução, nos meados da década de 1960. É inesquecível, para mim, o movimento de uma briga que durou mais de uma hora entre dois jovens e fortes atletas. Ela ocorreu após uma partida de futebol entre o Sete de Setembro e o Tijuca Futebol Clube, do Igarapé das Mulheres. Foi a consequência do resultado de uma partida entre os rivais Saci, atacante do Sete, e Macaco, do Tijuca, que explodiu na frente da sede do Sete até os dois cansarem e alguém considerar a briga empate. A história ficou famosa, pois nem a polícia se meteu.

Às vezes fico pensando nessas coisas incríveis do meu tempo de moleque. Incríveis mesmo, como o rosto brilhoso de suor do Otacílio, alcunhado de “Urubu Balado” por causa do seu jeito malandro de andar e de segurar a mulher para dançar; esta história da facada que não houve e da vítima desmaiada; da briga que não acabava e os oponentes já desprovidos de energia, combalidos, mas sorridentes e felizes com o resultado.

Do Sete ficaram, Indelevelmente, as cores das festas dominicais e o murmúrio da chuva deslizando sobre a piçarra da Rua São José.