Por Yurgel Caldas
Talvez seja Dante Alighieri (1265-1321) quem inaugure uma grande tradição na história da literatura ocidental, que tem como foco o Inferno e suas imagens por demais sedutoras. Daí teríamos como derivadas obras como a conhecida trilogia das Barcas, de Gil Vicente, donde se destaca o auto da Barca do Inferno (1517); o poema épico Lost Paradise (1667), de John Milton, e a tragédia Faust, de Goethe (versão completa da primeira parte em 1808; versão completa da segunda parte em 1832). Nesses exemplos, temos a figuração do inferno como elemento que chama atenção do leitor e, mais do que isso, provoca uma leitura atrativa justamente pela descrição que os escritores fazem desse espaço de danação que sempre causou indagações, curiosidades e toda sorte de fantasias no mundo cristão.
Esse é o caso da Divina Commedia, de Dante, longo poema épico escrito em versos decassílabos (a chamada medida nova italiana) durante a primeira vintena do século XIV, que tem como título original apenas a palavra Commedia, mas que, como aponta Anna Maria Chiavacci Leonardi, durante o século XVI, ganha o atributo de “divina” de seus próprios leitores e, a partir de então, as edições subsequentes adotam o atributo como parte do título do poema, tal qual o conhecemos hoje.
A narrativa da Divina Commedia atravessa todo o Universo ptolomaico (em vigor nos tempos de Dante), desde sua fundação arquitetônica (o centro mesmo da Terra), até o limite conhecido àquele momento: o Empíreo. Trata-se, portanto, de um Universo circular perfeita e harmoniosamente desenhado, tal como o concebia o mundo grego (LEONARDI, Anna Maria Chiavacci, “Introduzione” a La Divina Commedia: Inferno, 2005, p. XV).
São nove céus (ou círculos, como aparecem descritos na própria obra) perfeitamente concêntricos onde não há corrupção; mas o problema é que no seu interior existe o homem – mortal, falível e, ao contrário do mundo que o abriga, corruptível. De fato, o homem é um problema exposto na narrativa dantesca, mas também é a solução para que haja a narrativa em si. Sem o homem, a Divina Commedia não teria nenhum sentido. Afinal, o livro narra a viagem de redenção do próprio Dante (personagem falível e mortal), que se encontra no Inferno e busca ascender ao Paraiso tendo como guia o poeta Virgilio (também falível e também mortal), sem o qual seria impossível sequer a esperança de reencontrar a amada Beatrice (metáfora do amor medieval como veículo ao Paraiso – tal como mostraram as tradições trovadorescas provençais e galego-portuguesas, entre os séculos XII e XIII na Europa).
Dante, o personagem do Inferno – espaço por excelência da obscuridade (como se encontra no início do Canto I: “Nel mezzo del cammin di nostra vita/ mi ritrovai per una selva oscura”) – procura sempre a luz, seja a da razão e da poesia (Virgilio), seja a luz da libertação e do amor (Beatrice). E Dante procura a luz porque quer salvar a si próprio em um mundo ainda maniqueísta, tal como o trovador das cantigas de amor na tradição galego-portuguesa. Esse trovador não louva a beleza da mulher amada (a dona, a dama, a mulher cuja beleza é sem par no mundo) pelo mero fato da beleza ímpar em si; mas sim porque o trovador é consciente de sua falibilidade, e encontra no ato de amar uma dama perfeita – não só em termos físicos, mas também morais e espirituais – a forma excelente de acessar a possibilidade de se salvar. O amante excelente e humilde poderia salvar sua alma se amasse fielmente sua dama – único meio estético de não ir para o Inferno.
Dante é assim: busca na visão iluminada e iluminadora de Beatrice (como a Terra Prometida por Deus a Abraão e seus seguidores hebreus) a única possibilidade de sair de um espaço infernal e encontrar a luz. A Commedia dantesca pode ser lida também como a narrativa de uma viagem, um percurso, um destino – tanto de seu personagem Dante, que vaga num espaço sem tempo que é o próprio Inferno, quanto de seu leitor que assume a condição de viajante e peregrina pelo quadro medieval e terrivelmente cristão pintado pelo poeta fiorentino. A viagem, aliás, que é tema central nas narrativas homéricas ena Eneida de Virgilio, o guia de Dante através do Inferno, não deixa de ser uma metáfora da condição de todo leitor de textos literários.
*Contribuição do amigo Yurgel Caldas, que é professor de Literatura da Unifap e do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGLET) da mesma instituição.