A foto do comandante Guerreiro – Crônica de Fernando Canto

Foto: Arquivo pessoal de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Contemplo a foto aérea tirada no ano de 1948 pelo comandante Guerreiro, piloto e instrutor de vôo do Aeroclube de Macapá, e gentilmente cedida pelo também piloto Paulinho Lopes.

Lá embaixo, depois do retilíneo trapiche Eliezer Levy, está a velha fortaleza de São José, encravada sobre a terra bruta, além das falésias de granito que a separam do grandioso rio. Ao lado dela a praia de areia branca, um dos pouquíssimos lugares da cidade privilegiados com a bela paisagem natural do Amazonas, junto ao Araxá, a vacaria e o Aturiá, que também se espraiam no horizonte. Árvores circundam a estrela de cinco pontas concebida por Gallucio e abrigam um lugar ainda sem o círculo militar, construído 20 anos depois.

A cidade parece puxá-la de dentro do rio, procurando trazê-la para mais perto do coração, mas ela resiste: é o próprio coração da cidade a pulsar ofegante em sua pujante trajetória de amor e de proteção a esta terra. A preamar mostra que ela se situa em uma península dividindo a orla em duas pequenas baías e não há dúvida que abarca o sonho territorial de mais de dez mil almas ávidas de progresso e bem estar, contidos nos inflamados discursos janaristas da “Mística do Amapá”. É ela o único vínculo que temos com o passado. É o legado arquitetônico que simboliza o desenvolvimento da cidade, apesar da igreja de São José ser mais antiga. Único elo, enfatizo, posto que gerações anteriores se omitiram da necessidade de preservar nossa memória e nossas referências dentro da cidade. Posto que por muito tempo ela quase era engolida pelo mato e um dia foi até curral de bois num tempo de degredos e segredos revelados pelos entes do rio-mar.

A frente da cidade jaz, ali, gravada na fotografia do comandante Guerreiro e até o rio é uma massa estática sob um trapiche sem embarcações observado pela pedra do Guindaste, antes de ser quebrada e abrigar o santo protetor. O velho Macapá Hotel espera imponente novos rostos que se aproximam à procura de trabalho e exibe orgulhoso o seu recente corpo construído para receber os visitantes. À sua direita o estaleiro emite os barulhos do calafetar os barcos que partirão para suprir novas necessidades. Casas se escondem sob as árvores frutíferas em bairros ainda desabitados e a asa do avião do comandante plana em vôo sobre a cidade que cresceria sob a égide do sol e a energia que brota diariamente entre a água e a luz.

*Crônica escrita em 2009. 

Viver e respirar – Crônica porreta de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Foi o que pensou Neurinha, adentrando os 19 anos e achando que, naquela idade, seria bom começar a pensar nessas coisas. Seria bom pensar em alguma coisa. Qualquer coisa.

Mas o pensamento mais louco mesmo ela teve depois:

– Será que consigo morrer SEM parar de respirar?

Seu cachorro respondeu que não, ao que o ursinho de pelúcia disse que sim:

– Viver e respirar são coisas completamente díspares, conflitantes. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Tenho dito!

O cachorro de Neurinha ponderou que aquela maneira de falar do ursinho de pelúcia deixaria Neurinha ainda mais sem entender nada.

Neurinha, por sua vez, continuou sem nada entender. Paciência. Era sua natureza. Não entender qualquer coisa era a única coisa ao alcance de qualquer coisa que Neurinha pudesse entender. Entendeu? Nem eu!

Neurinha procurou os sábios conselhos de seu antílope de estimação, Clodoaldo, que entendia muito bem dessas questões, quando não estava ocupado em beber, fumar e levar mulheres para o apartamento.

Clodoaldo passou a contar a história de um tatu que fez greve de respiração em protesto contra a proliferação de armas nucleares e morreu em poucos minutos, ainda a tempo de ordenar a seus seguidores que invadissem a Casa Branca e incendiassem a provisão de amendoim.

Claro que Neurinha não entendeu e parou de se questionar. Resolveu passar à ação e cometer o ato de parar de respirar.

Segundo o método dos ninjas, Neurinha girou o nariz como se fosse uma torneira e parou de respirar.

Você, caríssimo leitor, já sacou que Neurinha era bem tontinha. Pois é. Até hoje ela não sabe se morreu.

Relato de um detetive – Crônica de Fernando Canto – @fernando__canto

Crônica de Fernando Canto para Paulo Jânio, boêmio sempre

Dia 1º “– Chegou e se sentou na cadeira do balcão. Ficou olhando em volta. Não bebeu. Fumou duas cigarrilhas.
Dia 2 – Chegou abruptamente e pediu uma cerveja em lata. Olhou para um lado e para o outro e pareceu não ver o que queria. Deixou fiado e partiu.
Dia 3 – O filho da puta não veio.
Dia 4 – Não veio de novo.
Dia 5 – Soube que mandou um recado para o dono do bar. Algo sigiloso que preciso descobrir.


Dia 6 – Abriu a porta do táxi, pôs o chapéu de palha panamá. Entrou de terno preto. Parecia um boto meio vampiro. Voltou para dentro do táxi placa VOW-6161.
Dia 7 – Sequer apareceu, o safado.
Dia 8 – Foi visto na praia com uma mulher.
Dia 9 – Sumiu de novo. Ninguém o viu.


Dia 10 – Apareceu com uma ninfeta. Estava bêbado e armado. Tomou catorze doses de Natu, o mais barato. Fez discurso e declamou poemas até de madrugada. Mostrou a arma, uma pistola. Não disparou nenhum tiro.
Dia 11 – Não fui.
Dia 12 – Chegou cambaleante. Sozinho. Chorou e foi embora para a Beira-Rio. Disseram coisas escabrosas do cara. Falavam muito mal dele.
Dia 13 – Desapareceu mesmo.
Dias 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20 – Sumiu faz uma semana. Não faltei ao serviço.


Dia 21 – Foi solto da cadeia. Chegou e bebeu doze copos de cachaça e tirou gosto com moela guisada.
Dia 22 – Continua bebendo pinga com moela.
Dia 23 – Ganhou todo mundo no jogo de porrinha. Bebeu uma garrafa de vodca e saiu rindo. Entrou num taxi Vow-6262. Quase o mesmo do dia 06.

Dia 24 – Não bebeu neste dia. Parecia ter algum medo. Foi o que me contaram. Mas pediu dinheiro emprestado e jogou cartas com amigos. Fumou quatro cigarrilhas.
Dia 25 – Chegou sorrindo no mesmo táxi do outro dia, com quatro mulheres louras oxigenadas, muito gostosas. Eu saquei que ele me viu de longe e pareceu me cumprimentar. Não dei bola, mas observei suas acompanhantes.
Dia 26 – Parece que ganhou no bicho e voltou. Agora só com duas mulheres morenas e muito sedutoras. Foi embora com elas. Na saída se despediu de mim.


Dia 27 – Lá estava ele de novo com aquelas mulheres lindas. Declamou um poema e se emocionou. Todos aplaudiram. Ele me viu de longe e me cumprimentou.
Dia 28 – Chegou acompanhado de dois policiais fardados. Beberam Campari e cerveja. Ele contou piadas e relatou casos policiais engraçados. Riram e logo depois se despediram.

Ele ficou, me viu e me chamou. Eu fui. Bebemos até às 24h00. As mulheres chegaram e nos saímos juntos. Foi a melhor noite da minha vida.
Dia 29 – Espero por ele e por elas. Ele me garantiu que o programa de hoje seria bem diferente do de ontem. Hoje mesmo rasgo essa porra de relatório”.

Poema de agora: Adverso – Luiz Jorge Ferreira

Adverso

Compro coisas que eu nem sei p’rá que servem
Componho músicas que eu nem sei p’rá quem são
Escrevo textos a torto e a direito.
Parecem psicografias do coração.

Todos na rua conheço, e nem sei quem são…
Todas as padarias que frequento parece que combinaram, e fazem o mesmo pão.
Os filmes que assisto, esse roteiro, me pergunto em silêncio…
…a cena que ela parte imóvel e eu aceno com um lenço azul.
O roteirista a escreveu…
Ou fui eu que vivi quando ela morreu.

Tenho um celular cheio de postagens, já as vi dezenas de vezes, e me emociono como se as visse pela primeira vez.

Um dia há muito eu queria fazer história…
Queria comprar Castelos, hoje os vejo entupidos de poeira, lotados de teias de aranhas, e uns poucos Pirilampos que cercam o … the end…
em um ciclone cada vez mais fechado, onde as cigarras cantarolam
trechos de uma Canção que já imaginei fazer.
Mas não fiz.
Sigo sem rumo…rumo ao adiante, levando o cartão na mão, e uma imensa vontade de se a achar, comprar sua dublê.

Luiz Jorge Ferreira

Lançamento da HQ “Mizuras” com quadrinistas do norte do Brasil tem lançamento nesta sexta-feira (9).

Jhimmy Feiches e Thai Rodrigues na CCXP

Nesta sexta-feira haverá (9) o lançamento da coletânea em quadrinhos “Mizuras” no espaço Baluarte Cultural, a partir das 19h, com sessão de autógrafos da ilustradora digital e uma das quadrinistas da obra, Thai Rodrigues.

O termo ”Mizuras” é muito utilizado no interior dos estados do Norte do Brasil cujo significado é “visagens, fantasmas ou travessuras, que é a essência do quadrinho, cujo diversos artistas nortistas se reuniram para contar e compartilhar sobre suas experiências com o lado sobrenatural das lendas urbanas e interioranas do cotidiano amazônico.

A ideia da coletânea Mizuras surgiu da necessidade de produzir materiais que conversem com a cultura e realidade as quais os artistas envolvidos estão inseridos e crie um vínculo com as outras regiões do Brasil e, para isso nada melhor que uma contação de histórias que mexem com o imaginário popular e regional, afinal todo mundo gosta de se reunir entre amigos para contar histórias de dar medo.

Foto do coletivo Iukytaias na CCXP

Mizuras é um trabalho realizado pelo Coletivo Iukytaias que é formado por ilustradores e quadrinistas da região norte do Brasil. Formado em 2022 com a intenção de promover e alavancar os quadrinistas nortistas ao cenário nacional.

Em 2022 o coletivo participou da Butantã Gibicon e da CCXP, nesse último lançou o primeiro volume da coletânea de contos, o mesmo é finalista na categoria quadrinho independente do Prêmio LeBLANC 2023.

Além do lançamento também haverá a venda do álbum “Dentro D’água a Gente Não Chora” do cantor Jhimmy Feiches, lançado em 2021 com patrocínio da Natura Musical. O álbum conta com um trabalho artístico do quadrinista Igum Djorge com uma revista em quadrinhos como encarte do CD.

Arte: Thai Rodrigues

Serviço:

Lançamento da Coletânea em Quadrinhos “Mizuras”
Local: Baluarte Cultural
Endereço: Avenida Duque de Caxias, 142 – Centro
Data: 09 de junho de 2023
Horário: 19h às 22h
Entrada Gratuita

Mais informações:
Instagram: @baluartecultural / @coletivoiukytaias / @osdesenhosdathai
E-mail: [email protected]

Texto: Aldine Moura
Assessoria de comunicação Baluarte Cultural

Poema de agora: À DERIVA – Ori Fonseca

 


À DERIVA

Margarida deixou-me no rio Tapajós,
Fiquei ali tão desolado a ver navios
Que se iam para longe de mim com meus brios,
Deixando-nos, eu e minha vergonha, a sós.

Como uma anti-sereia, espantou-me co’a voz
A falsetear adeuses em todos os rios
Por onde boiassem os olhos sombrios,
Sempre à deriva, zanzando de foz a foz.

Parti do Juruema atrás de alguma vida,
Gritei no Crepori: “Por que tu me abandonas”?
Passado o Jamanxim, a vida era perdida.

Nessas águas fui devorado feito Jonas.
No breu do Arapiuns, no barro do Amazonas…
Em todos eu vi o fantasma de Margarida.

Ori Fonseca

Academia Amapaense de Letras comemora 70 anos de fundação


A Academia Amapaense de Letras completa 70 anos de fundação no próximo dia 21. Para comemorar a data uma vasta programação, durante três dias, será cumprida no auditório do Senac/AP.

A abertura da programação será no dia 19, às 8h30, com declamação de poesia. Um café da manhã será oferecido aos jornalistas e autoridades.

Na ocasião o presidente Fernando Canto anunciará alguns projetos que a Academia desenvolverá ao longo do ano.

Para tais projetos, a Academia tem buscado apoio de instituições e amantes das letras.

Foto: AAL

Na segunda-feira, 5, por exemplo, o presidente Fernando Canto e o vice Paulo Guerra estiveram no escritório do senador Randolfe Rodrigues apresentando projetos e solicitando apoio. Eles foram recebidos por Charles Chelala.

“O professor Chelala nos recebeu com a gentileza de sempre, ouviu nossas reivindicações e vai levá-las ao senador, que também é simpático a nossa causa”, disse Canto.

Na oportunidade foi entregue o convite para que o senador participe da abertura das comemorações.

A programação segue nos dias 20 e 21 com palestras, lançamento de livros, apresentação de dança, shows musicais, exposição de artes plásticas e homenagens.

Foto: AAL

Mais sobre a Academia Amapaense de Letras

Fundada em 21 de junho de 1953, data escolhida por conta de ser o mesmo dia do aniversário do escritor Machado de Assis, a Academia Amapaense de Letras surgiu como uma entidade civil, sem fins lucrativos e com o objetivo de promover o desenvolvimento literário, cultural, científico e artístico do Amapá. Seu primeiro presidente foi o professor de português e literatura Benedito Alves Cardoso. A AAL possui 40 sócios titulares do colegiado (imortais).

A posse da Diretoria aconteceu no dia 5 de julho de 1953, no Cine Teatro Territorial (anexo ao Grupo Escolar Barão do Rio Branco), ocasião em que o Governador Janary Gentil Nunes fez um belo discurso. Por mais de 30 anos o Silogeu ficou desativado, sendo reinstalado em agosto de 1988. Já faleceram 33 dos seus membros.

Fonte: Blog da Alcinéa.

Universidade Equatorial – Por Romualdo Palhano (professor doutor da Unifap)

Por Romualdo Palhano (professor doutor da Unifap)

Conheci Fernando Canto lá pelos idos anos de 1994, do século XX, quando eu assumi uma cadeira de professor no Núcleo Pedagógico Integrado da UFPA. Nosso primeiro contato foi exatamente a partir da cultura, visto que eu havia dirigido com alunos do NPI/UFPA, o espetáculo de revista, Para Esse Barco não Pará, e fizemos uma temporada na Praça Presidente Vargas, no Núcleo de Cultura da UFPA, instalado naquele famoso jardim. Foi nesse encantador espaço que tive minhas primeiras impressões em relação ao Fernando Canto. Como conhecedor, desbravador e eclético, ele exercia no mínimo duas funções naquela casa de ensino, por um lado, técnico, e por outro, professor da disciplina de sociologia.

Ainda em 1994, resolvi me submeter a concurso para a Universidade Federal do Amapá. Com resultado positivo, e perante a necessidade de finalizar meus diários, tive que solicitar exoneração da UFPA, no finalzinho do ano. Já no dia 2 de janeiro de 1995 tomei posse na UNIFAP, casa à qual, permaneço até os dias atuais. E foi neste mesmo ano que certo dia, encontrei Fernando Canto, já como servidor da UNIFAP. Lhe perguntei: – Ué! Mas…! Você é irmão daquele rapaz que trabalha na UFPA? Ele me respondeu: – Sou eu mesmo, agora estou aqui como funcionário da UNIFAP. Fiquei espantado por tê-lo visto por aqui, e podermos então, compartilhar a partir daquele momento, numa instituição que passaríamos longos anos.

Fernando Canto – Foto: Márcia do Carmo

Com o passar dessas três décadas venho acompanhando toda a dedicação laboriosa de Fernando, para com nossa UNIFAP e para com o estado do Amapá. Estivemos, pari passu, compartilhando os mesmos sentimentos em relação à nossa querida UNIFAP. Naquela época, nossa universidade era embrionária e continha apenas nove cursos de graduação, com espaços físicos que eram mínimos, mas por outro lado, como ressalva muito bem, o Fernando professor com olhar de poeta: – em suas paredes e seus pavilhões outrora cintilantes, decorados pelo material escuro tanto tempo cobiçado… referindo-se às paredes que eram revestidas de pedras de manganês, e que que representavam a grande riqueza econômica do Amapá. Era uma época, na qual, docentes e técnicos se irmanavam com orgulho, fixando um olhar no futuro, com o grande objetivo de um dia entregarmos para as próximas gerações, uma grande universidade, como a conhecemos na atualidade.

E é nessa hora, nesse ano de 2023, quando nosso tão propalado Fernando Canto, doutor, poeta, professor, cronista, músico, escritor, compositor, instrumentista, presidente da Academia Amapaense de Letras e, grande divulgador da cultura amapaense, em função de seu pedido de aposentadoria, despede-se de suas atividades da Universidade Federal do Amapá, com cabeça erguida e plenamente consciente de sua missão cumprida em nossa instituição de ensino superior. Não só isso…!! este ciclo glorioso, ele fecha com chave de ouro, com a publicação de seu livro intitulado: Universidade Equatorial: uma aventura acadêmica, e que acrescenta humildemente no seu subtítulo, como: uma prestação de contas poética do Servidor Público Federal. Aproveito aqui, e tiro o chapéu para o amigo Fernando, e é por isso que eu sempre digo: Fernando está aqui, ali e acolá… FERNANDO está em todo CANTO.

Poema de agora: CARNAL – Ori Fonseca

O lavrador – Candido Portinari. 1935 – Óleo sobre tela (130x195cm) – Localização: Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro

CARNAL

Alguém sangrando da cabeça aos pés
Não pode responder por sua palavra,
Nem pela enxada na terra que lavra,
Nem pela estaca no peito que crava.

Na luta, diante de uma fera brava,
Guerreando contra os monstros mais cruéis,
Alguém já cambaleando de viés
Já não tem leis, nem reis, nem coronéis.

É, o instinto pela vida, animal;
Alguém que sangra não o faz sem luta,
Transforma sua fraqueza em força bruta

E combate por sua vida carnal.
E por saber-se efêmero mortal,
Pra não ser executado, executa.

Ori Fonseca

Escrotos legais, falsos bacanas e a velha conveniência – Crônica de Elton Tavares – (do livro “Papos de Rocha e outras crônicas no meio do mundo”)

Um dia, durante uma conversa com uma amiga, ela disse: “existem pessoas com grandes qualidades, que abafam seus defeitos, mas ninguém está imune de ser escroto”. Concordo plenamente! Não que eu possua conhecimento amplo sobre a natureza humana. É só meu achômetro mesmo.

Não sou santo. Procuro não fazer mal a ninguém. Meu falecido pai sempre dizia: “Não faça mal a ninguém e já estará fazendo o bem”, e tento me nortear por essa filosofia. Mas muitos me acham escroto – ledo engano. Só sou autêntico e sei dizer não. Também não faço média, não me iludo ou me empolgo facilmente.

Sei que é preciso respeitar a liberdade, seja das ideias, artística, comunicação, etc. Até aí, tudo bem. Pois discordar é preciso, afinal, o debate de ideias é que formula teorias e métodos para o desenvolvimento humano. O problema é a minoria impertinente e maldosa. Esses me deixam aporrinhado.

Acredito que existem pessoas más tentando ficar boas e que figuras que foram legais a vida toda se tornam babacas, da noite para o dia, muitas vezes por conta de motivos pífios.

Como eu já citei em outro texto, em um de seus contos, o escritor alemão Franz Kafka disse uma vez: “existem bestas-feras”, que detonam tudo, ferram com a sua vida. Mas mesmo sendo feras, não deixam de ser bestas”. Cirúrgico!

Por exemplo, muitos, que não me conhecem, pensam que sou um boçal. A quantidade de amigos que tenho (e me gabo sempre disso), que são muitos, desmente tal discurso. Tudo bem, às vezes sou insolente, pois nunca fui dado a hipocrisias e acredito que, em dadas ocasiões, uma porrada é mais do que justificável.

É com coração entrecortado de tristeza que vejo pessoas queridas embarcarem na onda desses vermes numa passagem subterrânea escurecida. Um dia esse show de horrores acaba por si só. Pois esse pessoal não consegue fingir pra sempre. Esse texto é um recadinho para os que acham que não sei das coisas. Detesto meias verdades e mentiras sinceras. E isso é coisa séria. Muito séria.

Conheço muitos escrotos legais, que são turrões, geniosos e até mal educados, mas possuem boa índole e falam tudo pela frente. Mas também saco falsos bacanas, que distribuem simpatia, fazem sala, capa e demais artifícios comportamentais para algum tipo de proximidade. Estes são verdadeiros mestres em sua escrotidão.

Enfim, bondade e maldade são trabalhadas de acordo com seus respectivos interesses e conveniências. Mas fica a dica: eu sei!

Quem só tem martelo pensa que tudo é prego.” – MARK TWAIN.

Elton Tavares

*Do livro “Papos de Rocha e outras crônicas no meio do mundo”, de minha autoria, lançado em novembro de 2021.

Poema de agora: ALADA – Ori Fonseca

ALADA

Mamífera alada de olhos de cobre,
Desses olhos de cobra venenosa,
Língua bifurcada a passear sobre
A pele arrepiada do ser que goza,
Sendo a plena riqueza do homem pobre.

Mama do mais puto leite que existe
A saciar todos os males da sede
Que entra no sonho, cai no sangue e insiste
Em maltratar e jogar na parede,
Sendo a única alegria do homem triste.

As tetas a me olhar de lado a lado
Pareciam dizer-me “estás vencido”.
Então, olhei nos olhos do passado
E vi o colo asado, o peito querido
Sendo o terno abrigo do homem cansado.

Mulher da perdição a que me entrego
Por que persegues os que não têm sono,
Aniquiladora do superego?
És berço de acalanto e de abandono,
Sendo a límpida visão do homem cego.

Mamífera dos seios de conforto,
Desses receios de vulcão ativo,
Lava de leite a me servir de porto,
Sendo a morte abençoada do ser vivo,
Sendo o sopro de vida do homem morto.

Ori Fonseca

Poema de agora: Wajãpi – Ricardo Iraguany

O cacique Seremeté, da Terra Indígena Waiãpi (em Pedra Branca do Amapari – AP), trata madeira para fazer fogo em uma margem do Rio Kerekuru. Os peixes são defumados durante horas na fogueira. O preparo é conhecido como peixe moqueado, uma especialidade dos povos ribeirinhos da Amazônia. Foto: Victor Moriyama.

Wajãpi

Todos os dias
Você me surpreende
Prende-me e liberta-me
Crio asas e voo
Com tua chegada
Chego em Vênus
Veneza, Versalhes
Vejo o Louvre
E a lua é Liverpool
Escuto Help
E danço contigo
A valsa vienense
De mãos dadas
Rolamos pela grama
Em gramado
E o fado nos silencia
Ao som de Lisboa
Atravessamos o Tejo, o tédio
Nas páginas de Camões e Pessoa
Nas viagens em volta do meu quarto
As três da madrugada ouvindo Torquato
Ou lendo Ilíada a odisseia
Saio vagando as estrelas
Na rota das constelações
Mergulhado nas profundezas
wajãpi

Ricardo Iraguany

Poema de agora: VIA SACRA – Ori Fonseca

VIA SACRA

Como Aznavour visitando Montmartre,
Já não te conheço mais, Sacramenta.
Teus becos de limo, tua gente atenta
A cada som que pudesse ser arte.

Os meus fantasmas já não fazem parte
De tua terra assombrada e lamacenta.
És todo estranha, triste e modorrenta,
Nada do chão que me serviu de catre.

La Bohème de minha curta infância,
Da juventude apagada dos pés,
Onde choraste teus igarapés?

Já não escuto mais tua dissonância,
Agora, tudo em ti é só distância:
Já não sabes quem sou; não sei quem és.

Ori Fonseca

Sinto falta!! – Crônica de Elton Tavares – “Crônicas De Rocha – Sobre Bênçãos e Canalhices Diárias”

Arte: Hellen Cortezolli (sinto falta dela também)

Quem me lê, sabe: sou um incorrigível nostálgico.

Pior (ou melhor, depende do ponto de vista), quando começo a devanear sobre as coisas que me fazem falta, saudades de pessoas, situações e épocas, aí a “emoção se conecta ao pensamento e ao sentimento” (como diria Vinicius de Moraes). É quando discorro sobre grandes e pequenas carências do cotidiano.

Sinto falta do meu pai, a maior falta da minha vida. Do meu irmão que mora em Belém (PA), que me brinda de tempos em tempos com sua presença. Sinto falta de conviver com minha sobrinha linda, de apenas sete anos de vida.

Sinto falta dos velhos amigos, os que me distanciei por conta de pedras em minhas mãos e dos que não tenho contato hoje em dia por conta dos afazeres da vida.

Sinto falta do cotidiano frenético de redações. Sinto falta de poder comer porcaria sem receio de ficar maior do que estou ou de afetar minha saúde. Sinto falta dos tempos que bebia muito e não tinha ressaca e de quando eu podia beber. Sinto falta dos meus velhos vinis, fitas cassetes e CD’s de Rock, pois agora só tenho arquivos em MP3.

Sinto falta de tremer ao entregar um boletim de notas escolares. Sinto falta de promover festas de rock e de viajar com frequência.

Sinto falta do tempo que era mais bonito (ou menos feio), mais ingênuo, mais empolgado, menos duro, desconfiado e cético em relação ao mundo (e quase todos que nele vivem).

Sinto falta de passar horas jogando videogame e falando merda. Também sinto falta de uma boa briga. Sim, sinto saudade da infância, da adolescência e dos 20 e poucos anos.

Sinto falta da velha rapaziada, do mau comportamento e das más companhias (risos). Sinto falta de escrever algo realmente bom, pois a correria tira totalmente a minha inspiração. Sinto falta do passado, não todo, somente da parte feliz e de tudo que ficou lá.

Sinto falta uma falta absurda da minha avó, assim como todos os outros meus que viraram saudades. Essas ausências me fazem muita falta. E como fazem!

Disse uma vez o sábio Drummond: “Sentimos saudade de certos momentos da nossa vida e de certos momentos de pessoas que passaram por ela”. É isso!

Elton Tavares

*Texto do livro “Crônicas De Rocha – Sobre Bênçãos e Canalhices Diárias”, de minha autoria, lançado 2020.