Os Amigos – Crônica de Evandro Luiz

Crônica de Evandro Luiz

A cada ano que passa, o verão fica mais quente. Pelo menos é o que sempre diz seu Everaldo Ramos da Silva, 67 anos de idade, também conhecido como Acapu. Vive da agricultura e assim mantém a tradição da família. Mas a decisão de não casar, e não ter filhos traz a ameaça de colocar um fim em um ramo da árvore genealógica da família Silva.

Homem de poucas palavras, difícil de ver um sorriso em seu rosto. Não que ele seja um cara rabugento, mal educado, longe disso. Na comunidade onde vive é dado como um homem culto. Na televisão, só os telejornais, nas emissoras de rádio gosta de ouvir os programas que começavam bem cedo e que davam orientação para os agricultores. Já os jornais impressos lê sempre mais de um. O objetivo é ver a linha editorial de cada um deles.

Uma vez perguntaram ao seu Acapu por que ele participava tão pouco dos eventos da cidade. Para despistar, disse que não era muito chegado a aglomerações. Mas na realidade, ele não gostava mesmo era da futilidade de algumas pessoas. Aqueles que se achavam cultos e se diziam prontos para entrar na política, das conversas que não acrescentavam nada. E Acapu não via dentro da comunidade um movimento que despertasse a chama de mudança. Os jovens sendo manipulados por aqueles que estavam no poder.

No planalto central, os generais – sem dar um tiro – tomaram as rédeas do país. As porteiras foram abertas e o que vê são milhares de hectares de florestas sendo dizimados. Um problema que mexe o fundo do coração de seu Felipe Ramos. Se raras vezes ele foi visto sorrindo, muito mais difícil é vê-lo chorar, mas essa situação, do descaso com o meio ambiente, quase o levou a uma depressão. Mas soube reagir. Conhecia bastante gente, mas tinha poucos amigos, dava pra contar nos dedos. Entre eles estavam o Joca, o Cabeludo, o seu Chicola, o Tomate, e o Moreno. Vez ou outra se encontravam. Um dos poucos momentos que se via Acapú rindo, dando gargalhadas, totalmente à vontade. Uma amizade desde a infância. Jogaram bola juntos, mas o que eles gostavam mesmo era de empinar pipa.

O tempo os fez, cada um seguir o seu destino. Joca, o Tomate e o Cabeludo, foram estudar em Belém. Seu Chicola foi para Brasília e Moreno foi morar em João Pessoa. Acapu foi o único que ficou na terra. E, como consequência da distância, as notícias entre eles começaram a diminuir.

Dizem que foi a partir daí que Acapu traz no rosto uma tristeza indecifrável. Já se passavam 35 anos sem a presença dos amigos. Não havia um dia que não pensasse neles.

O velho agricultor, depois do trabalho, gostava de sentar-se à sombra de uma frondosa mangueira. Um certo dia, ouviu do seu mestre de obras, que havia um homem que queria vê-lo. Acapu, meio aborrecido, chegou a dizer para o capataz: “isso é hora de visita”. Foi se aproximando, com a vista já comprometida pela catarata. Ainda longe, via apenas a silhueta de um homem, e decidiu ir ao encontro dele. Aos poucos o visitante foi abrindo um sorriso que o agricultor conhecia bem. Acapu conhecia muito bem também aquele jeito de andar. Um aperto no peito e as raríssimas lagrimas do agricultor revelavam o quanto ele esperava por esse momento. Joca estava ali. Os dois se abraçaram. E o que parecia um longo período sem notícias foi logo dizimado pela presença do amigo.

Joca olhou ao redor e viu que pouca coisa tinha mudado. O casarão, os currais para os cavalos de raça, e a grande plantação de milho continuavam no mesmo local, só que agora bem maiores. Joca então disse: “acho que tem mais gente querendo falar com você. Eles estão lá dentro do carro, uma Kombi”. O primeiro a sair foi o Chicola, depois o Tomate, veio o Cabeludo e por último o Moreno. Foi um momento que Acapú pensou que nunca mais iria acontecer.

A noite chegava bem devagar, talvez querendo compensar o tempo que eles passaram separados. Em um certo momento, Acapu, chamou atenção de todos e disse que tinha um presente para cada um deles. Cinco minutos depois estava de volta com cinco pipas. Ele tinha guardado como lembrança de um tempo que não volta mais.

Dizem os vizinhos que no sitio a festa varou a madrugada e que eles soltaram pipa a noite toda. Três dias depois muita festa, o capataz da fazenda, chegou no casarão e anunciou que pelo menos cinco mulheres vieram buscar os maridos.

Everaldo Silva sentiu que mais uma vez ficaria só. A separação não se daria por intrigas, fofoca, inveja… não. Agora o coração dos amigos estava titulado pela chancela do amor. Um latifúndio que nunca quis explorar – muito menos plantar – e por isso nunca vai colher fruto desse pomar. O silêncio voltou a imperar no sítio de Acapu. Ele voltou ao seu cotidiano; tinha a certeza de que aquele foi o último encontro com os amigo de infância.

Certidão de nascimento – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Perdi minha certidão de nascimento. Muito confuso. Tentei retira-la em Osasco onde eu moro. Procurei os cartórios, mas em vão. Única saída é ir até Belém do Para e localiza-la no cartório em que fui registrado ainda recém nascido.

Conseguido o telefone liguei e para minha surpresa, negaram-me o documento. A única maneira para consegui-lo informaram é que eu vá até lá.

Que eu vá até lá para ter uma conversa com o Cartorista que lavrou meu documento e converse com ele e leve a esperança que ele me reconheça.

Daquele dia para hoje, passaram-se, mais de cinquenta anos. Bela memória. Deve ter a alma deste homem.

Sem dinheiro procurei o Braz para solicitar algum emprestado.

Haja visto que a vizinhança cochicha que ele foi premiado com uma grande quantia num sorteio da Mega Sena. Encontro com ele no Jardim dos Anjos em uma manhã fria de julho. Mas em vão, estava calado não me reconheceu e um pouco depois foi sepultado em uma gaveta extremamente decorada com azulejos portugueses. Ficou o dito por não dito!

Mesmo assim vou a Belém. Vou caminhando pela margem da rodovia Belém Brasília. Espero chegar ainda a tempo, se não corro o risco de ser detido no meio da rua por uma ronda policial.

– Documento Cidadão! E mesmo que eu entregue CPF, IPVA, IPTU, RG, FGTS, Carteira Profissional, Números de Telefones, Impressões Digitais, E-mail, Senha da Uol, Signo, Sinais, Cacoetes, Vício, Hábitos, Roncos? E a Certidão de Nascimento? Pergunta a autoridade.

E eu ali revistado por e sem a Certidão de Nascimento e balbuciando com voz tremula o lugar aonde nasci. Estou frito penso comigo mesmo. – Que ano nasceu Cidadão. Parto Normal? Induzido? Fórceps? Cesariana? – Comeu Mecônio?

Sem Certidão de Nascimento. – Hein?

Prende ele. Diz um Cabo. – Solte-o! Ordena um Capitão. Se nem nasceu não existe. E se existe pode ser “de menor” se é “de menor” não pode ser preso.

Mas não deve estar na rua há esta hora, sozinho. Procurem a sua mãe.

Enquanto discutem a legalidade da ordem. Saio de fininho com minha bengala na mão, procurando não fazer muito ruído.

Sem certidão de nascimento não sou nada, e sem ela na mão, não me deixam entrar mais de volta no asilo.

Este pensamento é que aumenta o frio.

*Do Livro “Defronte da Boca da Noite ficam os dias de Ontem”. Rumo Editorial São Paulo Brasil – 2020.

Eu de uber, quem diria? – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Quem acompanha minhas crônicas sabe que sou um ser analógico tentando sobreviver nesta floresta tecnológica. Há uns cinco meses, arrisquei esquentar um rango no micro-ondas e – pasmem! – não é que consegui? E sozinho! Postei até um vídeo na internet relatando o fato.

Pois é, eu sou assim: minha atuação mais elementar nesta selva de aparelhos, aplicativos e programas é um avanço enorme no meu currículo de pessoa conectada com este presente já com cara de futuro. Ou que tenta se conectar, já que não há outro jeito. Aí eu alardeio aos quatro ventos dos quatro cantos do meu mundinho real e virtual qualquer coisa que uma criança teria feito sem dificuldade alguma. Já recebi comentários tipo este: – Tá vendo? Todo mundo consegue. Até tu! kkkkkkkkk

A minha última façanha (não a última, a mais recente) nesse campo foi baixar o aplicativo de uber. Tive que comprar um celular decente, já que o anterior não comportava quase nada, um aparelho que nunca tinha ouvido falar em download. Outra coisa que me diziam sempre: – Quando é que vais tomar vergonha nessa cara e comprar um celular de verdade?

Pronto! Comprei o tal celular de verdade! Aí baixei o aplicativo, com o auxílio luxuoso de esposa e filho, e venci mais uma batalha. A próxima prova foi chamar um uber. Também com o auxílio da família, fiz a primeira viagem e tudo saiu do jeitinho que deve ser. Hoje, já me desenrolo fácil e os amigos, curiosos e incrédulos, me enchem de perguntas: – E aí? Qual a sensação de pertencer ao mundo? – Achavas que ias ficar imune aos encantos da tecnologia? – Não te falei que era fácil? – Já aprendeste a avaliar o motorista?

Pra mim, avaliar o motorista é facílimo. Faço a seguinte ponderação: como os tempos estão meio violentos e alguém pode muito bem se passar por motorista de uber pra roubar as pessoas, se não sou assaltado, o cara já ganha cinco estrelas. Só vou avaliar o motorista com menos que isso se ele me assaltar, me bater, me expulsar do carro ou me deixar num lugar bem distante de onde eu queria ficar. Neste último caso, a culpa é mais do GPS, que insiste em mudar minha rota e eu tenho que ficar orientando o motora.

Um outro quesito é a trilha sonora, a seleção musical. Geralmente é música que eu não aprecio, mas como o volume é baixo e ninguém pediu minha opinião, não tem problema e nem por isso o cara deixa de ganhar as cinco estrelinhas. Outro dia até quis que a avaliação passasse de cinco estrelas, tal foi o grau de contentamento que tive. Pois do som do carro não vinha nenhum cantor chorando, falando vulgaridades, gritando ou esmurrando a língua portuguesa. Vinha, sim, um inglês britânico acompanhado de alguns instrumentos que uns garotos de Liverpool tocavam com toda a vontade. Isso mesmo! Também custei a acreditar que os Beatles estavam ali, executando suas primeiras músicas, acompanhando eu e minha esposa na volta pra casa. Quando o carro parou diante de uma faixa de segurança, vi os quatro atravessando, como naquela famosa foto na Abbey Road, em Londres. Mas aí era sonho.

Na descida, agradeci e elogiei o gosto musical do motorista. Ele ganhou as cinco estrelas e entramos em casa pra ouvir mais umas sessões de Beatles: I wanna hold your hand / I wanna hold your hand…

Porque escrevo (Fernando Canto) – Por Fernando Canto

O grande Fernando Canto – Foto: João Canto

Escrevo porque o ato de escrever é aprendizado “imparável”, constante, é forma de enclausuramento voluntário, evocação de mistérios que instigam a (re)criação da (i)realidade. É como navegar, no dizer de Pessoa. Mas necessariamente, contatar o estranho, rir do absurdo e ultrapassar barreiras que o real não permite. O escritor tem passaporte para qualquer lugar porque escrever é processo conduzido pelo voo imaginativo. É flecha, é corredeira, é bólido que tem destinação. É paradoxo porque cada frase sua pode ser recriada ou refeita pelo leitor.

Escrevo porque posso fotografar na minha mente formas, ambientes e personagens; diluir e transformar sonhos e expressar várias visões de mundo através deles.

Escrever é ato libertário. Deve-se escrever para ser lido, óbvio, mas, sobretudo para ser debatido, criticado, odiado, amado; para provocar reações e sentimentos diversificados. Escrever é como produzir fluidos no corpo e fazê-los sair pelos poros da alma.

Fernando Canto – Escritor (o maior escritor vivo do Amapá), jornalista, compositor, sociólogo, meu amigo e um cara paid’égua. Republicado por hoje ser o Dia Nacional do Escritor. 

Temporada de caça – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Assim que Hamingway partiu com seus cães farejadores para a temporada de caça, os gatos invadiram a casa, rasgaram as cortinas, urinaram nos tapetes, abriram fendas nos sofás, de onde brotaram esponjas encardidas, derrubaram do aparador o cristal, rasgaram livros raros, espojaram-se nas camas por dias inteiros, e por noites inteiras lançaram do telhado as telhas, de modo que choveu muito dentro da casa.

Deixaram as janelas abertas para que entrassem os ventos da estação, e num rompante de inspiração, atearam fogo aos colchões, no quintal. Foi a sua homenagem aos felinos que chegariam caçados.

*Do livro Gatos Pingados.

Assim seria – Crônica de @marcelobiz

 

Crônica de Marcelo Biz

Hoje seria teu aniversário. Eu te ligaria para dar felicitações e dizer o que está óbvio no meu olhar: que te amo.

No final do dia, como em todas as tardes, eu correria para abrir a porta para atender ao teu chamado tão peculiar. E você daria aquele sorriso que te deixava com os olhos quase fechados; aquele sorriso que me desmoronava – e me desmoronaria hoje definitivamente. Tomaríamos cerveja e faríamos o que mais me extasiava: Conversar por horas e horas até o momento da cama.

Com tristeza parei gradualmente de ler teu horóscopo a fim de saber como seria teu dia; o meu, nunca li. Teus cantores favoritos, não os ouço mais, e a camisa da qual arrancaste os botões no momento de volúpia deixou de existir. Há alguns anos eu jamais imaginaria que, em relação a nós dois, tudo seria futuro do pretérito.

Discos que formaram meu caráter (Parte 19) – Closer – Joy Division (1980)

 

 
Muito bem, estamos aqui de novo, com aquela conversa deveras agradável, com um papo empolgante sobre som, disco e afins. Muitos podem achar estranho, mas acredito fielmente que a música sempre esta relacionada com algo importante em sua vida.
 
Hoje eu tenho a honra de apresentar a vocês, um dos maiores discos de todos os tempos, algo realmente marcante para muitos, o começo do que ficou conhecido como “pós Punk”, o inicio que acabou sendo o final de uma das maiores bandas de todos os tempos, senhoras e senhores sem mais delongas eu lhes apresento: “Closer”.
 
Gravado em 1979, mas por problemas de tiragem, foi lançado apenas em 1980. O vinil mostra uma singularidade marcante da banda, que já tinha sido apresenta com louvores em seu “debú” com o excelente “Unknown Pleasures” de 1979 (Falaremos em breve deste). A diferença é que agora os caras de Manchester (NG) estavam a fim de conquistar o mundo e “Closer” foi preparado para isso. A melancolia chuvosa da terra da rainha estava preste ser colocada a prova no mercado internacional. Sim eles estavam indo para a América.
 
Falando de uma maneira compreensiva sobre temas que vão do dia marcante, cotidiano inflexível, depressão e tristeza, aliados a forma magistral que seu vocalista, Ian Curtis, conseguia transmitir toda sua melancolia em versos para os ouvintes, sem contar a competência da trupe que o acompanhava Bernard Summer, Peter Hook, Stephen Morris (se você, caro leitor, não souber quem são essas pessoas pegue sua patente de “FODA” e jogue no lixo), sem contar em um certo “pioneirismo” nas batidas eletrônicas, coisa que poucos estavam se aventurando em fazer na época.
 
O disco foi gravado sob uma abóboda de estuque, que foi especialmente construída para a captação da ressonância de uma capela. Que deixa o disco ainda mais sombrio, e sério.Com todo respeito vamos às faixas:
 
O disco começa com a sombria “Atrocity Exhibition”, com guitarras estranhas, cheias de efeitos nos levam uma atmosfera inquietante, versos como “o silencio com as portas escancaradas, onde as pessoas podem pagar para ver por dentro…” é um convite. Vamos para “Isolation” (uma de minhas preferidas), um retrato conturbador da personalidade de Ian. Chegamos em “Passover” uma bela canção, que fala de crises, equilíbrio pessoal, sobre o quanto somos seguros na infância. Vai para “A Means To An End”, fala de uma amizade. 
 
Chega em “Heart And Soul” coragem para superar os desafios que estão por vir, sua coragem nunca deve acabar “…Coração e alma um irá queimar”. Agora “Twenty Four Hours” magnificamente agitada, mas que não perde a influencia “dark” das outras canções. Indo para “The Eternal”, posso classifica-la como “perigosamente depressiva”. Encerando tudo com a belíssima “Decades” a perfeição maior com teclados, contrastando  com o voz de Ian. 
 
É realmente um disco pesadíssimo, que transpira emoções fortes, mas que com certeza afligem muitos ou já afligiram. A edição nacional desde álbum, o qual me orgulho de ter em Lp (presente de meu velho pai) trás ainda “Love Will Tear Us Apart”, uma das mais belas canções de todos os tempos.
 
Podemos prestar atenção, que não existia mais diferença entre a personalidade conturbada de Ian Curti e sua poesia, não tinha mais como separar seus problemas do que ele escrevia. 
 
Sem duvidas, a semente foi jogada. Batidas eletrônicas e guitarras dissonantes, que influenciaram varias bandas depois como The Cure, Bauhaus, Sister of Mercy, New Order para ficar só no algumas. Não tem como não merecer a patente maior de clássico.
 
Como disse no começo do texto, poderia ser o começo da “Maior banda do mundo”, mas foi fim precoce. O disco foi lançado logo após o suicido de Ian. Que nos privou de seu talento agonizante em 19 de maio de 1980.
 
Perfeito para se ouvir em uma tarde chuvosa, com vinho barato (ixi, muitas vezes), melancólico sem dúvidas, mas com extrema beleza que só as mais sinceras cartas de adeus possuem. Por hoje é só.
 
Marcelo Guido é Punk, pai da Lanna e Banto, marido da Bia, jornalista,  professor e servidor público “…o amor pode sim, nos separar rasgando” .
*Republicado por este disco completar 40 anos hoje. 

Use com moderação – Crônica de Luli Rojanski

Crônica de Luli Rojanski

Abra a porta da minha vida com firmeza, mas não abra mão de entrar de vez em quando pela janela. A primeira coisa que vai me encantar é sua atitude. A segunda, suas garras de tigre. Eu gosto do olhar distraído, mas cuide de onde e quando vai acionar o off, pois embora eu adore seu braço tatuado e o desenho pós-moderno de sua boca, meu tesão maior é por seu cérebro. Nunca pense que sei menos porque falo pouco ou que sei muito porque mostro profunda concentração. Costumo olhar mais para os barcos que passam do que para a teoria do caos. Em compensação, sei dizer duas palavras em polonês: Mój Kochany – Meu amor.

Lembre-se sempre da data do meu aniversário, mas jamais mencione quantos anos eu tinha quando você nasceu. Acredite na minha infância, você vai notar que ela ainda existe! Não ria quando eu falar da encarnação em que fui rainha porque, se você prestar bem atenção, vai ver que trago resquícios de uma altivez real. Portanto, me reverencie, às vezes, porém sem se curvar diante dos meus caprichos, porque eu costumo enjoar da submissão. Mais do que flores, me dê garantia de duradoura libertinagem, de doses diárias de afagos na nuca. Em minha presença, você só deve olhar para mim, ainda que estejamos na presença de uma superstar. Quer olhar para outra mulher? Olhe para Martha Medeiros, pois com ela eu não exitaria em dividi-lo. Mas se ainda assim quiser olhar para outra, que seja só para constatar que eu sou muito melhor!

Não precisa gostar de futebol apenas porque eu gosto, mas jamais torça contra meu time. Tenha noção de tempo, e nunca pergunte as horas quando estiver na cama comigo. Tenho muitas manias, mas não a do amor apressado nem a do sono antes da meia-noite. Depois, o que pode haver além de nosso mundo quando estivermos sobre um lençol com a estampa de uma partitura em allegro*?

Não me deixe brigando sozinha. Eu posso pensar que você não é de nada. Discuta à altura, mas não esqueça de que no final das contas eu tenho razão. É o único modo de eu reconhecer que a razão é sua. Goste de carne vermelha malpassada, de lasanha de espinafre e de pudim de maracujá, ou nunca poderemos jantar juntos. De minha parte, prometo gostar imensamente de rúcula, de tomate seco e de pão integral. Perceba e elogie a mudança de cor dos meus olhos, conforme a luz do dia ou de acordo com meu humor, mas jamais diga que estou com olheiras. Desnecessário. Tenho em casa vários espelhos.

Seja sempre terno, doce e inusitadamente louco. Adoro quebrar a mansidão com uma pegada bem firme, sair da rotina com um convite à pirataria, a um bar imaginário, ao heavy-punk-trash-rock. Cante pra mim ao telefone, me conte de quantas seitas foi adepto, confesse que tomou Daime, que fez picolé de cogumelo e que adorou cannabis no narguilé. Mate-me de rir de sua cueca nova, me sirva pão com ovo e café com leite pela manhã, pois eu sou de carne e osso, embora adore fazer você pensar que nasci no Olimpo. E nunca se canse de repetir que me ama “bem muito”. Acredite: vai sempre funcionar!

*Andamento musical leve e ligeiro.

**Crônica do livro Pérolas ao Sol – 2017.

Os sonhos podem esperar – Crônica de Evandro Luiz

Crônica de Evandro Luiz

Havia 20 anos que os irmãos, Saul Weiner, de 39 anos de idade, Saulo, com 34, e Josué, com 30, não visitavam o pai na fazenda de búfalo na ilha do Marajó. Salomão, patriarca da família Weiner, era português. Mandou os filhos para estudarem na terra natal. Depois de formados, eles preferiram ficar na grande metrópole.

Foto: Revista Portuária – Economia e negócios

Os três engenheiros trabalhavam no porto de Lisboa, o mais movimentado do país. Salomão construiu no meio da selva uma pousada de luxo. Tinha piscina com água morna, pesca esportiva e caça ao porco do mato. Era tão caro que a maioria dos hóspedes era de estrangeiros, e como dizia Francisco, capataz da fazenda, só quem tinha lastro financeiro para permanecer naquele local eram os gringos.

Foto: Mayk Alves

Para os serviços domésticos, Salomão Weiner aproveitou e contratou a mão-de-obra local. A região era rica em buriti, uma árvore que dava um fruto do qual se aproveitava tudo. Um empresário de Teresina, Piauí, era quem monopolizava o comércio desse produto. A saca da fruta de 60 quilos, por exemplo, era trocada por seis latas de leite. E tinha ainda agricultor que não conseguia pagar a dívida. Foi aí então que Josué Weiner percebeu o potencial da fruta, e o serviço análogo à escravidão a que os catadores de buriti eram submetidos. Ele não só incentivou, mas também ajudou a comunidade a criar uma cooperativa.

Foi construída uma fábrica para extrair todo o potencial da fruta. Com o buriti se podia fazer doces, extrair o óleo de cozinha, cosméticos, ração para animais, servia também como pasta medicinal. Em uma manhã do dia 29 de fevereiro, a fábrica foi entregue à população daquela comunidade. É comum os povos da floresta serem supersticiosos. Muitos não gostaram do dia da inauguração por se tratar de uma data que só aparecia no calendário a cada quatro anos. Para eles, o ano bissexto não traz muita sorte.

Durante dois anos a fábrica explorou tudo o que o buriti poderia oferecer. Mas em uma noite silenciosa dentro da floresta, uma sequência de explosões despertou sentimentos não muito bons. Os moradores da ilha acordaram e correram em direção à fábrica. Incrédulos viam seus sonhos virarem cinzas. Chamas de mais de três metros impediam – tamanho o calor – a aproximação dos moradores que tentavam de qualquer maneira apagar o fogo. As investigações nunca chegaram a uma conclusão: se foi um acidente ou um ato criminoso. Durante muito tempo, os moradores se reuniam em volta do que sobrou da fábrica como um ato ritualístico.

Lá foi tomada a decisão de que os homens viriam para uma vila onde estava sendo construída às margens do grande rio uma obra muito grande. Apenas uma mulher, Madalena, faria parte da expedição. Os moradores diziam que ela sabia tudo. Tinha visões e conseguia prever o futuro. Na realidade tudo o que achava relevante ela anotava. A escriba já sabia que existia uma lenda do romance proibido entre uma índia e um filho de capitão do mato.

De repente, do meio de uma névoa, aparece um grande barco azul que deslizava sobre as águas do rio com uma insustentável leveza de quem transporta o amor e a esperança. Quando os barcos se cruzaram, Madalena fechou os olhos, sentiu um frio correr todo o corpo e caiu. Acordou chorando dizendo que a esperança estava indo pra bem longe da vila e que durante um longo período, onde é cultivado o ódio, ranço e vingança, a vila ia caminhar a passos lentos. Atracaram o barco em um igarapé, e viram que o serviço na grande obra era carregar pedras e aí, eles desistiram. Criaram uma pequena vila de pescadores que abastecia o povoado.

Depois de quase um ano na ilha, Saul Weiner e os irmãos Saulo e Josué retornaram à Portugal e deixaram a certeza de que nunca mais voltariam à vila. Dois anos depois que os filhos partiram, Salomão Weiner morreu de pneumonia sentado em uma cadeira de balanço de frente para o grande rio. Ele acreditava que o misterioso Barco Azul a qualquer hora ia aparecer de dentro de uma névoa.

Melhor idade é a minha! – Crônica de Lulih Rojanski

 

Crônica de Lulih Rojanski

Sonhei que encomendavam uma missa católica para os meus 50 anos, no intuito de me fazer esquecer a ideia de realizar no quintal de minha casa a maior cachaçada de que já se teve notícia. E o padre iniciava a missa assim: “Caríssimos irmãos, estamos aqui reunidos para celebrar a ressurreição de Jesus Cristo e os 50 anos de Lulih Rojanski.” Faço aniversário perto da Páscoa, mas confesso que, no sonho, por esta eu não esperava. Muito menos acordada. E havia um momento em que eu me pronunciava para os fiéis, dizendo a seguinte pérola: “Ter 50 anos é o equivalente a ter 15 anos… 15 anos é a melhor idade da juventude, o princípio de tudo. 50 é a melhor idade da maturidade, outro princípio…” Depois disso, eu tinha uma crise de soluços e a missa terminava, do nada. Coisa de sonho.

Quando acordei, a primeira coisa que fiz foi agradecer a Jesus Cristo por já ter 54. Missa dos 50, só em pesadelo! Mas fiquei pensando no que disse no púlpito, e em dado momento comecei a encontrar certa lógica na filosofia da melhor idade. Minha amiga Elaine vive dizendo: “Melhor idade é o cacete!” Concordo com ela, em parte. Nem 50 nem depois deles é a melhor idade. Nem os 20 ou 30. Nem idade alguma! Acredito que a maturidade tem realmente algo de muito especial, mas a melhor idade é qualquer uma. Aquela em que você se sente realizado e bem-sucedido, seja lá o que bem-sucedido lhe signifique.

Para mim, por exemplo, que sou bastante dada a buscas de harmonia e paz interior, que enfeito a casa com mandalas e mensageiros do vento, que uso japamala e entoo mantras, ser bem-sucedido é passar o fim de semana deitada no gramado, olhando a luz entrar pelas copas das árvores, subitamente esquecida da existência dos calendários. É ter um sono feliz depois de 15 minutos de meditação. É não sofrer por não ter, compreendendo que ter não passa de ilusão. E por aí vai.

Elaine não quer saber de minha opinião sobre o “bem-sucedido”. Já a ouviu uma vez e me mandou me lascar várias vezes. Para ela, Ganesh é só um elefantinho afeminado, meditação é para quem não pode comprar aparelhos eletrônicos, e cantar mantras é coisa de maluco beleza que viaja de Kombi. Ignoro Elaine. Quando quero espantá-la de minha casa, acendo um incenso de pau santo.

A melhor idade chega a qualquer momento para quem ousa transformar a vida para se sentir feliz. Tem gente, por exemplo, que morre aos 100 anos sem nunca alcançá-la. Coincidência ou não, a minha é agora. Mas pretendo esticá-la até os 117.

ADORADORES DO LIVRO IMPRESSO (*) – Crônica de Fernando Canto

 

Crônica de Fernando Canto

Desde o surgimento dos computadores pessoais que ouço falar no fim do livro impresso. E já se vão anos.

Cientistas falam de um mundo novo, de substituição de tecnologias, e apontam como exemplo a revolução sem igual na história que foi a invenção do livro impresso, por Gutenberg, pois antes disso só havia livros copiados, manuscritos que valiam fortunas. A revista Superinteressante do mês passado traz um artigo muito atual sobre o assunto, enfatizando esses aspectos inclusive com a informação de que a revolução citada acima já acabou há dez anos, “quando a internet começou a crescer para valer”, e que ela passaria uma borracha na história do papel impresso e começaria outra. Cita que “os 7 milhões de volumes que a Universidade de Cambridge mantém hoje nos 150 quilômetros de prateleiras de suas várias bibliotecas caberiam em quatro discos rígidos de 500 gigabytes. Só quatro. Sem falar que ninguém precisaria ir até Cambridge para ler os livros”.

Mas apesar disso tudo a internet não mudou muito a história dos livros. Permanece um mistério inexplicável. O livro não foi morto nem enterrado. A Super diz que o segundo negócio online que mais deu certo (depois do Google) é uma livraria, a Amazon. E informa também que o mercado de livros eletrônicos deslanchou nos E.U.A com vendas em torno de 350 milhões de dólares em 2009, sendo que em 2008 elas atingiram um patamar inferior a 150 milhões.

Concordo que ler um livro no computador é um negócio ruim, até mesmo insuportável, porque ler por horas numa tela é o mesmo que ficar olhando uma lâmpada acesa. Não há quem aguente. Porém já apareceu (há três anos) o primeiro livro realmente viável: o Kindle, da Amazon, que cabe 1.500 obras e só pesa 400 gramas. Tem tela monocromática e pequena. Ele não emite luz e a tela é feita de tinta, preta para as letras e branca para o fundo. No início deste ano apareceu o iPad, da Apple, que segundo a revista citada, “tudo o que o Kindle tem de péssimo este tem de ótimo: tela enorme, colorida, páginas que você vira com os dedos, sem botão como se estivesse com um livro normal, mas a tela é de LCD. Não dá para ler um romance inteiro nele”.

Agora dezenas de empresas estão trabalhando para unir o que os dois têm de melhor, até chegarem ao livro eletrônico perfeito. A Phillips, por exemplo desenvolve o protótipo Liquavista, com tela de tinta colorida e a Pixel Qi um com LCD sensível ao toque, mas que não emite luz, de acordo com a informação da Super.

Mas enquanto o “livro perfeito” não vem vou fazendo como os adoradores de livros impressos o fazem sem pestanejar: curtir meu afeto por eles. Quantas pessoas, apaixonadas ou não, já não guardaram dentro deles flores, folhas, cartas, bilhetes, e até mechas de cabelos que lhes trazem boas lembranças, de amores e de desilusões? Folheá-los pode significar o encontro com algumas cédulas de real guardadas por acaso para uma ocasião e esquecida sem querer. Arrumá-los na estante é um trabalho que nunca dá preguiça. Lê-los, sobretudo, é apreender e conhecer o legado da Humanidade. No livro eletrônico essas historinhas bobas de quem ama os livros não seriam possíveis.

Recentemente, ao receber meu livro “Adoradores do Sol” da editora que o confeccionou, confesso do prazer de senti-lo ao tocar sua capa e abrir suas páginas, de ver impresso um trabalho de anos, da satisfação de tê-lo nas mãos e de saber que iria compartilhar com meus queridos leitores as informações e opiniões que deixei escritas em um objeto vivo, que todos podem, como eu, acariciar e carregar nas mãos. Que venha o livro eletrônico. Tudo muda, mas o livro impresso ainda é o bicho.

(*) Texto escrito em abril de 2010 (portanto, desatualizado tecnicamente) e publicado no jornal A Gazeta. Mas, vale ressaltar que os shoppings estão, ainda, cheios de livrarias.

PERTO DA COBAL, O ABREU – Crônica de Fernando Canto

Pensei que seria o antigo Bar do Abreu, na esquina da extinta Cobal (parece muito), mas o jornalista João Lázaro elucidou que na verdade essa foto é do Bar Caboclo. Deixei aqui somente para ilustrar. Foto: SelesNafes.Com

Crônica de Fernando Canto

– “Perto da Cobal”. Era a indicação, código, informação, referência. Assim a gente se comunicava naquela época, no início dos anos 80, para se encontrar e bater um bom papo nos finais de tarde do gostoso bairro do Laguinho, atrás da sede dos escoteiros. O bar do Abreu ficava na esquina da Odilardo Silva com a Ernestino Borges.

Zé Ronaldo Abreu e Liete Silva

Creio que o Zé Ronaldo nem imaginava a importância que tinha o bar, naquele momento gerenciado só por ele, terminada a sociedade Rodrigo & Ronaldo na antiga lanchonete e açougue RR. Rodrigo foi para o Pacoval e Ronaldo ficou no Laguinho ajudado pelo seu dentuço irmão, um adolescente muito legal chamado Marquinhos.

Foto: Blog Direto da Redação

Pode-se dizer que o bar tinha um “chama”, que atraía boêmios, artistas e intelectuais, políticos e malandros, como qualquer bom bar. Era uma espécie de casa da mãe, útero, boate, palco e tribuna. Algo meio surrealista: enquanto o Hélio lançava o seu livro os fregueses das redondezas compravam cupim ou alcatra entre um pronunciamento emocionado do Pedro Silveira e um riso tímido do Alcy. E assim escutavam o Grupo Pilão e os toques mágicos das violas do Nonato e do Sebastião.

Bêbados contumazes, como dizem os jornalistas, costumavam encher o saco dos fregueses contumazes e comportados, acostumados a beberem após as 11 horas de sábado. Vinham do Jussarão, dum tal bar de chorinho do Noé (quando ele ainda era boêmio), duma tal Dama de Macapá e de outros bares com nome de Quebra-Mar ou coisa que valesse. E falavam, e exigiam bebidas, e vomitavam e dormiam. Só a paciência do Ronaldo era a mesma de Jó. Um guardanapo de pano atravessado no ombro, um sorriso e o gesto de limpar a mesa amainavam as tentativas de exasperação de fregueses chatos, e principalmente daqueles que adoravam se exibir falando inglês mas espalhavam perdigoto.

O bar era sério como qualquer bar sério. Porém só veio a ter o nome atual quando um velhinho simpático e meio atrapalhado, pai do Ronaldo e do Marquinhos ficou por trás do balcão, dando descanso aos dois. Era o seu Abreu, que logo se tornou amigo de todos. Dos homens e das mulheres, dos bêbados e dos inconformados, dos santos e dos capetas. Um homem que muitas vezes era importunado às quatro horas da manhã por alcoólatras para a primeira dose do dia, mas que fazia da sua profissão de dono de bar um sacerdócio, como dizem os assistentes sociais e os políticos agnósticos.

Caricatura do artista plástico Wagner Ribeiro

E como todos sabem o bar do Abreu era um bar itinerante, como diziam os advogados e os vagabundos líricos. Já rodou meio mundo macapaense, fazendo histórias e presenciando casos de amor e de morte, juntando paixões e separando olhares, refazendo vidas e acompanhando vitórias e derrotas de times e de jogadores. Viu amores entre militares e garçonetes, entre pintores e enfermeiras, observou transeuntes eventualmente entrando no bar para matar sua sede ou engolir uma moela guisada, antiga especialidade da casa.

Foto: Renato Ribeiro

Depois de mudar de lugar o bar tinha nas paredes televisores enormes; quadros impressionantemente horríveis, como diria o esteta, e uns fregueses que achavam bonito tudo o que o Bolachinha imitava nas madrugadas em que se refugiava para não imitar a si próprio.

Antigo Bar do Abreu, na Avenida Fab – Foto: blog O Canto da Amazônia

Este era o bar do Abreu que conheci desde sua inauguração em 1981. Um bar feito com categoria e estilo que proporcionava união, contradição e o ato de beliscar a lua, montado no sonho dos fregueses, ouvindo “a música das moedas deslizando nas máquinas caça-níqueis do Eduardo”, como poderia dizer o Max Darlindo cantando um samba bem alegre. Um local onde o freguês tinha o rei na barriga e o imperador na boca, onde quem bebia sem brindar ficava três anos sem transar, onde quem brindava sem beber ficava três anos também sem. Onde um “murmúrio ofegante” do celular do Bira Burro era escutado a 100 metros de distância. “Ali há uma ilusão para continuar jogando”, dizia o Tavares ao observar o prefeito atravessando a rua para “tomar uma” no bar.

Bar do Abreu em festa, de volta a Avenida FAB – 2015

O rodízio citadino do bar do Abreu infelizmente cansou, ficou sem fôlego na pandemia e fechou suas portas. Mas bar é um fênix. Certamente um dia volta com outro estilo. E o velho balcão de inúmeras conversas e grandes alegrias estará lá como imã atraindo os velhos fregueses.

Foto: Tica Lemos

– “Égua”! Eu exclamo agora ao lembrar que o “perto da Cobal” confunde e troca o espaço pelo tempo em quase 40 anos que o mundo rodou dentro e fora de mim, para que pusesse referência nos passos que dei pela vida e nas construções que a lida diária, as reflexões e os bons amigos me proporcionaram realizar.

A fé das crianças – Por Daíse Lima – @DaseLima2

Por Daíse Lima

A menininha de grandes olhos verdes, sentada no colo da mãe, ao meu lado no ônibus sorriu para mim e disse:

– Oi. Qual é o seu nome?
– Meu nome é Daíse.
– Nossa! Eu nunca ouvi esse nome.
– Nem eu. – respondi e ela sorriu. – E o seu nome qual é?
– É Maria.
– Nossa! Eu nunca ouvi esse nome. – brinquei.
– Mas tem um monte de Maria. Minha professora chama Maria, minha tia chama Maria, a tia da cantina também chama Maria. Tem um monte.
– É verdade. Tem mesmo. Eu tinha esquecido. Eu sou muito esquecida!
– A minha mãe também é. – e a mãe dela sorriu para nós. – Qual é o seu nome mesmo? – a menininha perguntou.
– Já esqueceu? Acho que você também é esquecida.
– É que seu nome é difícil. – e ela deu dois tapinhas de leve na testa, como se dessa forma a ajudasse a se lembrar.
– Meu nome é Daíse.
– É mesmo. Você tem vô, Daíse?
– Não tenho. – respondi torcendo para que ela não perguntasse porquê eu não os tinha. Eu não queria falar da morte. Essa é conversa para a mãe. E ela não perguntou.


– Eu tenho um vô.
– Que legal! E qual é o nome dele? Ou você já esqueceu o nome dele?
– Não! – ela sorriu. – O nome dele é Raimundo.
– Que nome bonito que ele tem.
– É
– Ele mora aonde?
– É um pouquinho longe. Tem que ir de ônibus. Eu tô indo lá na casa dele. A gente vai todos os dias, né, mãe? – a mãe concordou com a cabeça. – A minha mãe vai fazer comida para ele e dar banho nele.
– Entendi. Ele já está bem velhinho.
– Mas ele é adulto. Só que ele é criança. Ele não fala e não anda. Ele fica o dia todo deitado assistindo televisão, mas quando eu chego lá a gente assiste desenho. Ele dá risada com os desenhos. Quando ele aprender a falar e a andar eu vou passear com ele lá na praça. Você sabia que eu ensinei ele a falar o meu nome?
– É mesmo?
– É. Quando eu chego ele fala Má, não é, mãe? Logo ele vai aprender a falar.

A mãe sorriu triste para mim. E eu pensei: a fé das crianças.

*Daíse Lima é uma escritora baiana que vive em Sampa desde pequena apresentada a mim pela cantora, compositora, poeta e atriz (amiga minha), Sabrina Zahara.

Poesia que não se esgota (Fernando Canto)

A poesia não se esgota no pensamento porque ela é o esforço da linguagem para fazer um mundo mais doce, mais puro em sua essência;

A poesia procura tocar o inacessível e conhecer o incognoscível na medida em que articula e conecta palavras e significados;

Cada imagem representada, projetada pelo sonho, pela imaginação ou pela realidade, é um símbolo que marca o que sabemos da vida e seus desdobramentos, às vezes fugidios.

Mas nem sempre é o poeta o autor dessa representação, pois tudo o que surge tem base social e comunitária, depende da vivência de realidade de quem propõe a linguagem e a criação poética.

Quando isso ocorre estamos diante da autenticidade do texto poético. E todos somos poetas, embora nem sempre saibamos disso. E ainda que nem tentemos sê-lo.

Fernando Canto