Atravessar o Rio de Cada Dia – Crônica paid’égua de Fernando Canto

Fernando Canto – Anos 70, em Belém (PA).

Crônica de Fernando Canto

Recebi do amigo Gama um poema onde o autor lembra os inúmeros episódios que vivemos na época de estudantes em Belém. Estávamos nos meados da década de 70. O governo militar havia fechado o Congresso no famoso “pacote de abril” e instaurara a figura do senador biônico, entre tantas outras anomalias criadas contra a democracia. Tudo em nome da ordem e da manutenção do status quo, que perduraria por mais 10 anos.

O poeta me contou da largura do rio que conheceu como uma ponte bailante ao som do vento, nas longas travessias que percorreu em busca de algo bom. No seu camarim de madeira flutuante disse dos dias e noites que passou ouvindo o barulho dos motores e cheirando o óleo queimado no vai-e-vem da rede em que sonhava.

Nas margens opulentas dos furos entre as ilhas pôde sentir o preparativo da longa ópera que se descortinava em nosso futuro. E viu policiais armados com porretes batendo os estudantes que debatiam o regime político. E viu todos nós correndo como loucos “sobre os paralelepípedos desnivelados para se esconder”. E respirou, aliviado, “sentindo ainda o bafo quente daqueles cavalos ofegantes/ ouvindo o estalido agudo da ferradura/ na distante noite escura”, em que tantos foram tantas vezes presos que viram fenecer seus sonhos, que roeram seus próprios quebrantos na ausência da luz.

O poeta me fala da sua necessidade de voltar a terra, do inevitável compromisso familiar assumido e do rio que parecia ter se alargado mais na hora da volta. Era um abismo, mais que um pélago oceânico, era um abismo de imensurável fundura. Mesmo assim recolheu a âncora no cais do porto e singrou, quase exaurido, em sua epopéia estudantil vencida e terminada.

No curso das nossas vidas, pela dor, redescobre os nós bem antes apertados, porém que se tornaram frouxos, distantes e reticentes. Informa que não somos mais os mesmos, posto que o mundo e seus problemas são maiores. Nós nos descrevemos em palimpsestos, e escrevemos novas histórias em nossas lembranças, “agora a nossa menor distância”, ele me diz.

Verdade, não há mais cantorias na casa do Isnard, lá em Belém, e o violão acompanhando “Devaneio” entre doses de caipirinha e um Minister colocado na ponta da corda de aço. Nem nas férias em um domingo de sol na Fazendinha se ouvirá mais o canto revolucionário de Vandré cantando aos berros “Pra não dizer que não falei das flores” para um público ignorante dos problemas brasileiros. O som da viola em sol maior não permanecerá vívido na lembrança de que “O terreiro lá de casa/ não se varre com vassoura/ varre com ponta de sabre/ e bala de metralhadora”. Ah, e depois, será que nos lembraremos de Glauber com o seu premiado “Deus e o Diabo na Terra do Sol”?

Mudamos sim, velho camarada, sem perceber que sabemos do “equilíbrio de uma cor”, que sabemos que “o mundo é outro e outros somos nós”, como me dizes. Ser outro é o retrato da mudança, pois mudar significa se deslocar de um lugar ou de um tempo para outro, transformar a sua própria realidade com todos os senões que vida traz, com todo o rufar dos tambores que nos despertam para que não fiquemos sem memória.

E viver, tens razão, é lembrar, é não deixar morrer a chama de Mnémone, mas também atravessar com coragem o rio de cada dia, às vezes mais largo, abissal em suas entranhas, mas às vezes estreito como um córrego em minha realidade.

**Fotos encontradas no Google, blogs da Alcinéa Cavalcante e Fernando Canto.

Os sete pecados capitais- Parte II – Ira – Crônica de Rebecca Braga (@rebeccabraga)

Crônica de Rebecca Braga 

Mahatma Gandhi disse: “Nossa ira controlada pode ser convertida numa força capaz de mover o mundo.”

Concordo com ele. Acho que muita coisa aconteceu no mundo porque as pessoas transformaram toda a sua raiva e revolta em ações.

Recentemente a lista de coisas que desperta minha ira vem das ações de um certo presidente aí, de um governo aí, de um país aí chamado Brazil. Patriotismo, né, minha gente?

Mas, além disso, tem uma coisinha besta que desperta minha ira, além de gente que joga papel na rua, trata mal garçom e bate portas. Buzina!

Buzina, meu povo.

Aquele negocinho que tem pra usar no trânsito sabe-se lá o motivo.

Explico:

Moro numa avenida movimentada. Dezenas de linhas de ônibus passam por aqui e o trânsito pode ser por vezes infernal. Mas não bastasse isso, moro quase na esquina, onde tem o semáforo. Aquela coisa com umas luzes coloridas pra avisar quando você deve seguir, ter atenção ou parar. Tipo, pra evitar acidentes. Nada importante, afinal.

Acontece que o sinal nem completou um segundo de aberto e os Lewis Hamiltons da vida já estão com a mão enfiada na porra da buzina. E buzina de ônibus? Sai da frente senão o busão vai passar por cima de ti, meu irmão.

Lá pelas 9 da noite o negócio começa a melhorar. Hora de dormir o sono dos justos. Mas como boa pecadora que sou, além da ira, também sou afeita da inveja. – Tá na parte I desta coletânea de textos pecaminosos. – Sofro de insônia, tenho sono leve e perturbado.

Daí me vem o demônio, que lá da outra esquina vem buzinando até a esquina da minha casa pra avisar que vai passar. 3 horas da manhã. 3 horas da fuckin’ manhã.

Nessa hora eu invoco o Azazel. Sim, ele mesmo. Aquele que já foi o próprio encarregado da tarefa de levantar as faltas humanas e as enumerar perante o Tribunal Divino, que já foi arcanjo e que depois virou BFF, parça do Lúcifer. O Lu, para os mais íntimos.

Na minha cabeça ele sobe dos infernos, atravessa com uma das mãos o metal do carro e pergunta:

-Tá buzinando uma hora dessas porque, filho de puta?

 

Sem esperar resposta, arranca os olhos da criatura, come e cospe. (Olho deve ser amargo, sei lá.) Às vezes ele também explode a cabeça de quem passa com o som do carro nas alturas. Depende do meu estado de espírito.

Eu, filha de ex-padre, pecadora assumida… Contabilizo mais um pecado. Sem culpa.

Hoje é dia de Elton – Parabéns da @telmamiranda (com felicitações da @LorenaadvLorena )

Eu com Lorena Queiroz (esquerda) e Telma Miranda (colada no eu ainda não tão gordo) – Carnaval de 1999.

Elton é o amigo de todas as tribos e de todos os tipos. Boas conversas, sejam rasas ou profundas, de acordo com o círculo, amante de fotos, textos, pessoas, cerveja e da vida.

Quem olha de longe enxerga um cara brabo (e é, se provocado) com ar blasè, mas quem tem a oportunidade de conhecer de perto sabe que por debaixo dessa “brabeza” e pseuda indiferença, ele é só coração.

Digo pseuda indiferença porque o cara é safo! Por mais que não seja “atingido” ou que não se importe com determinado fato, feito ou agente, ele não deixa passar em branco. Ele observa, conjectura e forma sua opinião como todo bom homem das letras que tem senso crítico (e de crítica) afiado.

Filho, irmão, tio, neto, primo e sobrinho amoroso e presente, parceiro e companheiro, daqueles que se declara e não deixa dúvidas de seu afeto. Apaixonado até hoje pelo pai que tenho certeza que o assiste do plano espiritual e se diverte muito, além de sentir orgulho, com certeza. Não tenho dúvidas da paixão pela mãe Lúcia (e seus pratos maravilhosos que apaixonam qualquer pessoa), pelo irmão Emerson, sobrinha Maitê, tia Maria, Vó Peró (essas duas são jóias pra ele) e todos os seus.

Perfeito? Nem de longe. E nem pretende, mas é um cara que todos deveriam ter na vida. Seja pra aprender, seja pra ensinar.

Eu tive e ainda tenho de longe, pois os caminhos de nossas escolhas de vida são assim mesmo, acabam nos fazendo afastar naturalmente pela rotina, trabalho, filhos, vida, mas ele sempre se mostra, sempre está lá e sei que posso contar com ele quando e se precisar.

Gratidão e desejo tudo de melhor pra você em seu novo ciclo.

Parabéns por hoje.

Feliz aniversário.

Telma Miranda

Obs: A Lorena, comigo e Telminha na foto, escreveu o texto abaixo: 

Mais um ano, né!. As vezes eu fico pensando em como é difícil cumprir este protocolo anual de parabenizar pessoas por sobreviverem mais um ano à este mundo. Eu tenho certa dificuldade de fazer isto q fazes com tanta destreza (Já comentei que tu faz as pessoas parecerem muito melhores do que realmente são). Minha dificuldade, de certo, ocorre porque as distâncias aumentam e as histórias minguam, tudo passa a ser apenas ” protocolo”.

É engraçado quando vamos escrever parabenizando alguém q realmente amamos. Eu lembro de ti diariamente, quando leio um livro ou tomo um trago, ou as duas coisas. Tem uma música do Gonzaguinha que estes dias escutei, na hora eu lembrei de ti por um trecho q descreve em ti uma das características mais nobres que tens “Mas se me der a mão, claro, aperto. Se for franco, direto e aberto. Tô contigo amigo e não abro. Vamos ver o Diabo de perto“.

Tu tens uma capacidade infinita de simplesmente ser amigo, e com uma incansável dignidade de realmente honrar o significado da palavra. Como já tinha dito, as histórias minguam e ficam só os protocolos. Com a gente nunca é assim. Todos os anos eu volto aqui e tenho algo a dizer porque sempre tenho muito à lembrar. Eu te amo imensa e eternamente. Toda a felicidade do mundo é pouco e me remete ao mecânico de se desejar à alguém, por isso eu desejo é que continues vivendo do jeito que queres viver.

Desejo à ti a liberdade de viver sempre entre pessoas boas. Desejo muitas noites de conversas fodas. Muitos pratos de mãe pra curar ressaca. Desejo sempre bons amigos e momentos pra lembrar. Felicidade em pequenas doses é o que eu desejo à ti.

Parabéns.

Te amo!

Lorena Queiroz

*Telma Miranda é advogada, ex-namorada e minha amiga há tempos.

**Lorena é advogada e minha prima/irmã a vida toda. 

 

O DUPLO-ESTRANHO SOU EU? – Conto de Isabela Lima

Conto de Isabela Lima

É que ninguém ouve o que diz uma garganta entupida na multidão. Os olhos queimando, ardendo, falando uns sinais. Ninguém. A gente meio que se volta para projeções espalhadas nas vitrines das lojas nas ruas. Não é vazio um corpo sem rosto, sem tom, sem voz? Os teus gritos ultrapassam os vidros à sua frente?

Aos oito anos de idade, passeando pela feira, toquei no seio de uma manequim. Eu não acreditava que aquela mulher estava ali por vontade própria na mesma posição há horas. Queria saber sua história: de onde viera, quem a produziu e o porquê estava lá. Queria? Não mais, pois um olhar masculino reprovou o meu jeito de transver o mundo.

Mas oh, o ser humano é todo capaz de abrir novamente as suas frestas e compreender o que se passa lá fora. E há momentos em que ninguém nos olha. Então você sai de você e vai ser estrangeiro no mundo. Ele é seu palco. Mas eu fui sendo atriz pra dentro. Bem lá no fundo. Ouvi dizer que se quisermos algum dia mudar o exterior precisamos despertar e recriar primeiro o que temos por dentro. Descer até os porões? Arrancar os segredos da própria pele? Nossos muros ameaçando romper a céu aberto. Seus pensamentos ficam a ponto de estilhaçar quando alguém vem olhar mais de perto?

Raimundo perguntou, certa vez, como era viver fora da própria pele. Se eu gostava do que via lá fora, quando ia lá fora. Assim, pergunta à queima-roupa. Calei como quem espera uma sinfonia passar pela rua. – A gente sente o peito rasgando, meu bem. E se você força um pouco mais o cordão rebenta e o mundo te engole. Mas assim, eu não saberia explicar se ele primeiro te seduz antes de mastigar, ou se espera as tuas cores explodirem sozinhas.

E o que entendo de olhos, de jeito, de timbre, de mundo… De sinfonia? É que tudo isso, despretensiosamente, transpassa as janelas e rebenta no peito. Há um silêncio entre a travessia e o estouro: volto na feira, aos oito anos, tocando no seio daquela mulher.

Sobre Palafitas e a Maré de ser gente – Conto de Jaci Rocha

Foto: Manoel Raimundo Fonseca.

Conto de Jaci Rocha

Era um dia ensolarado, daqueles de doer nos olhos, quando o sol está no ‘cio’, aqui pelo Equador. A beira do rio, à foz da fortaleza, o Amazonas ardia e brilhava, a ponto de encandear o olhar.

Meu pai pescava com meus irmãos, em uma canoa embaixo de uma ponte, que unia as estradas entre Macapá e Santana.

Foto: Floriano Lima

Eu – a pequena que não conseguia parar quieta e em silêncio – fiquei ‘na terra’, brincando com a filha do vizinho, sob o olhar de meu pai. Brincávamos sobre as palafitas que encobriam a superfície, pois em tempo de maré baixa, abaixo das palafitas, o mundo era feito de argila, barro que adquiria um brilho dourado e espelhado. Gostava de contemplar aquele chão.

Foto: Floriano Lima

E nesse contemplar, tudo era belo e descoberta. Um peixinho em uma poça de água que a maré havia ‘deixado’, uma plantinha desconhecida…e foi assim que, por sobre as frestas da palafita, entre bonecas e panelinhas, meu olhar enxergou uma nota de um ‘alto’ valor – ao menos, para minha tenra infância, – repousada sobre o barro.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca.

Eram tempos da moeda ‘cruzado’. Empolgada, iniciei uma grande expedição de resgate do ‘pequeno tesouro’. Planejei milimetricamente, fui até o início da palafita e, esgueirando o corpo – absolutamente longe dos olhos de meu pai – mergulhei naquele mar de lama. Peguei a tão sonhada nota e voltei, triunfante e suja até os cabelos.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca.

Tomei banho e aguardei o pescador voltar com os frutos dos trabalhos do dia. Ele veio sorridente. Eu estava banhada e de cabelos trançados, balançando a nota, sorridente. A maré do Amazonas começava a subir e um vento brincava com o vestido rosa claro que usava. Eu estava feliz e orgulhosa da ‘conquista’.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca.

Aqueles olhos que chegaram brilhando fecharam o tempo. Perguntaram onde encontrei a nota. Respondi que foi embaixo das palafitas. Ele disse: ” E por que você pegou? não é seu. Devolva”. Com a inocência de uma criança de sete anos, corri na direção da palafita e, entre as frestas, ensaiei jogar a nota de volta à lama.

Meu pai, interrompeu o ato e perguntou “Filha, mas foi assim que você pegou?”. Inocentemente (e até bastante empolgada e orgulhosa), contei-lhe os detalhes da grande aventura. Meu pai, na sua sabedoria filosófica, falou: “Agora, tenha o mesmo trabalho para devolver, meu bem”.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca.

Entendi o que ele esperava, meio perplexa. Sob um sol que caía aterrorizante, vestida naquele vestido rosa clarinho, vergonhosamente em silêncio, mergulhei novamente por debaixo das palafitas, e vi a maré de perto, chegar e misturar à lama, à beleza do vestido, recém-perdida, ao estranho sentimento de que devia mesmo fazer aquilo. Assim, devolvi a nota, no mesmo exato lugar em que a peguei.

Ao voltar para casa, meu pai explicou o que eu precisava aprender, ao fazer aquilo: Que tudo que você subtrai de alguém, ainda que esta pessoa não saiba ou veja, faz com que você mergulhe na sujeira. E devolver é mergulhar nesta mesma lama, pedir desculpas e retornar, inteira. Tenho certeza que esta foi a minha primeira lição sobre integridade.

Foto: Floriano Lima

Ah! Antes de retornar, tomamos um banho gostoso naquele rio lindo. E lá, fui ensinada a lavar o dia e aperfeiçoar o aprendizado, em um rio limpo e abençoado, com as dádivas de Deus e as coisas todas minhas, que nada poderia comprar: como o riso de meu pai, que algum tempo depois, naquela mesma paisagem, me ensinou a nadar e a andar pelas palafitas da vida com meu próprio tamanho. A descobrir os espaços, com meu coração e sob os próprios pés.

Das maiores árvores aos recifes de corais: as características únicas da Amazônia no Amapá (hoje é o Dia da Amazônia)

Angelim Vermelho: maior árvore da Amazônia localizada na fronteira do Amapá e do Pará — Foto: Rafael Aleixo/Setec

Carregando há vários anos o título simbólico de “estado mais preservado do país”, o Amapá, mesmo ocupando apenas 3% do território da Amazônia, carrega elementos únicos, sejam influenciados pela foz do Rio Amazonas, a Linha do Equador ou pela proximidade com o Platô das Guianas.

A quantidade de espécies e elementos da natureza ainda são catalogados pela ciência, mas algumas chamaram a atenção do mundo inteiro, como o fenômeno da pororoca, com o encontro entre o Rio Araguari e oceano atlântico, causando uma onda que dura horas.

Pororoca na costa do Amapá — Foto: Adson Lins/Arquivo Pessoal

Ameaçado em 2015 pelo assoreamento na foz o rio, o fenômeno deixou de existir, mas foi mapeado em outras regiões do estado, reacendendo a esperança do potencial turístico.

Além da maior onda, o Amapá também é acesso para as maiores árvores da região, com mais de 90 metros e que ficam localizadas no sul do estado, na divisa com o Pará.

Em 2019, uma expedição começou a mapear um exemplar de Diniza excelsa, mais conhecida como Angelim Vermelho. A imponente tem 88 metros e está dentro uma reserva de conservação de uso sustentável.

A árvore mais alta da Amazônia brasileira é da espécie Angelim Vermelho e está localizada na Floresta Estadual do Parú, no Pará — Foto: Tobias Jackson/Divulgação

A importância de preservar esta e outras espécies de plantas faz o Amapá abrigar o maior parque nacional do país: o Montanhas do Tumucumaque. Com mais de 4 milhões de hectares, a área equivale a 25% do território do estado.

Mais recentemente, recifes de corais foram descobertos na costa do Amapá em meio ao anúncio de exploração de petróleo na região. Os “corais da Amazônia”, de acordo com a ONG internacional, são formações únicas e diretamente ameaçadas com a atividade.

Corais da Amazônia descobertos em expedição na costa do estado — Foto: Greenpeace/Divulgação

O principal inimigo da preservação da Amazônia é o próprio homem em diversas ações. Seja com as queimadas para produção agrícola, desmatamento, biopirataria, invasão de terras públicas e poluição dos rios e do solo.

Além dos agentes públicos, diversas organizações atuam na preservação e na manutenção dos recursos da região, tornando-se verdadeiros “Guardiões da Amazônia”.

“Acreditamos que o grande problema é a permanência de um plano colonialista para o desenvolvimento da Amazônia, sempre vindo de fora para dentro e valorizando apenas a geração de commodities. Ao invés disso, deve haver a valorização da floresta em pé! Para que o real valor seja valorizado, porque dessa forma é possível proteger as pessoas e a natureza. O desenvolvimento sustentável não é uma utopia, é uma alternativa possível e urgente”, comentou Adriane Formigosa, diretora-presidente do Instituto Mapinguari.

Ação de limpeza do Instituto Mapinguari em reserva às margens do Rio Amazonas — Foto: Instituto Mapinguari/Divulgação

Fundado em 2005 por um grupo de acadêmicos voluntários, o Mapinguari trabalha principalmente com apoio a gestão das Unidades de Conservação (UCs) do estado.

Além dos recursos, entidades estão ligadas diretamente com lidar do povo amazônico, em especial os indígenas, povos tradicionais e ribeirinhos, entre eles, Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), fundado há 18 anos e que tem quase 40 membros.

Cachoeira de Santo Antônio, em Laranjal do Jari — Foto: Reprodução/Rede Amazônica

“Desde a criação, o Iepé tem procurado elaborar projetos que permitam uma ampliação dos trabalhos junto às comunidades indígenas da região, consolidando ações em andamento e estabelecendo novas modalidades de atuação”, destacou Renata Ferreira, assessora do Programa de Articulação Regional do Iepé.

Fonte: G1 Amapá

A Liberdade de Imprensa ameaçada – Por Renivaldo Costa – @renivaldo_costa

Renivaldo Costa

Por Renivaldo Costa*

Nas eleições de 2006, a jornalista Alcinéa Cavalcante lançou uma enquete em seu blog de notícias (alcinea.com) e sugeriu aos internautas que apontassem quais dos políticos amapaenses poderiam ostentar a frase: “O carro que mais parece comigo é o camburão da polícia”.

Reiteradamente citado na enquete, o ex-senador José Sarney não gostou das menções e processou a jornalista. Fazia um ano que ele havia deixado a presidência do Senado e eleito seu sucessor, Renan Calheiros. Além disso, era candidato à reeleição e uma jovem negra chamada Cristina Almeida crescia nas pesquisas e ameaçava seus planos. Resultado: usou de seu prestígio e conseguiu condenar a jornalista a pagar R$ 2 milhões de indenização.

No mesmo período, além de Alcinéa, também foram condenados o jornal Folha do Amapá (fundado por Elson Martins) e os jornalistas Humberto Moreira, Domiciano Gomes e a irmã Alcilene Cavalcante. No caso de Alcilene, a punição absurda ocorreu porque, ao publicar uma imagem do fotógrafo Chico Terra com uma charge com a mensagem “Xô, Sarney”, um leitor resolveu – no comentário – sugerir que ele voltasse ao Maranhão, de onde veio. Pasmem: Alcilene teve de pagar mais de R$ 30 mil de indenização ao ex-senador por uma mensagem de terceiros.

O poder de Sarney era tamanho que, mesmo considerando uma grande injustiça, muitos jornalistas se eximiram de fazer comentários ou prestar solidariedade aos colegas injustiçados, com medo de represálias.

Lembrei desse episódio pois, atuando como jornalista há 26 anos, nunca vi a liberdade de imprensa tão ameaçada como agora. Isso é perfeitamente compreensível pois 56 anos após o Golpe de 1964, cresce o coro daqueles que desejam fechar o Congresso e o Supremo e clamam por Ditadura. Afinal, como afirmou Jorge Pedro Sousa: “nenhuma ditadura sobrevive com uma imprensa livre”. Assim, como nenhuma democracia sobrevive sem uma imprensa livre.

Curiosamente, como estudante de Direito que agora também sou, foi que ouvi de um professor de Sociologia Jurídica, que cabe à imprensa, livre, ser a voz dos “sem voz”, de denunciar irregularidades e injustiças. De buscar aquilo que nem sempre está às claras e, para isso, precisará investigar. Sem liberdade em contrariar interesses, seja de pessoas importantes, de empresas poderosas ou de governantes, o jornalista não conseguirá exercer essa parte da sua função profissional.

Outro dia, numa palestra que fiz a estudantes de jornalismo, ouvi uma analogia que cai como uma luva a essa questão. “A liberdade de imprensa é para veículos de comunicação o equivalente ao que a liberdade de expressão significa a uma artista”. Não há como exercer os fundamentos do jornalismo e da comunicação em geral sem ampla e irrestrita liberdade em fazê-lo. O jornalismo deve atender à sociedade civil ao noticiar, informar, denunciar, escrever, detalhar tudo aquilo que é ou pode vir a ser de interesse público.

Eu quero acreditar que ainda possamos lutar por uma democracia onde ideias como amordaçar a imprensa e fechar as instituições democráticas, sejam até ouvidas (pois cada um tem o direito de expressar suas convicções), mas sejam de pronto rechaçadas, especialmente por aqueles que tem o dever de defender a liberdade e guardar a Constituição.

Nosso papel como jornalistas é fornecer as informações, os fatos e as verdades necessárias para que o público tire suas próprias conclusões e se “autogoverne” – expressão dos jornalistas e teóricos Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Se ao cumprir esse mister, expomos mazelas, o ideal é que as corporações ou classes onde elas são expostas, façam “mea culpa” ao invés de simplesmente negar sumariamente, processar veículos e exigir indenizações vultosas, como ocorreu recentemente no episódio envolvendo a TV Equinócio e a Seccional da OAB/AP.

Ademais, eu prefiro viver numa democracia onde se valorize a liberdade de expressão e os excessos sejam punidos exemplarmente do que numa sociedade de mordaça, onde se imponha censura e intervenção contra tudo aquilo que ameace a manutenção de feudos e grupos políticos retrógrados.

* Jornalista (Reg. Prof. 018/04) e sociólogo (Reg. Prof. 048/10).

Macapá em mim – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Era 1997, o século XX se aproximando do fim e eu chegando ao meu recomeço.

Foi a primeira vez que andei de avião, cantarolando internamente a música de Beto Guedes e Ronaldo (meu xará) Bastos: “Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos…”.

O Sol de Primavera brilhou para mim, ainda que eu tenha chegado na madrugada, e o primeiro de setembro ficou sendo um marco, o Marco Zero do Equador da minha nova vida, que começava naquele momento, nesta cidade que alargou meu coração para caber nele, juntamente a Curuçá e Belém, formando as três cidades que trago no peito.

Logo novas palavras foram chegando e se materializando em minha nova vida. Marabaixo, Curiaú e o rio Amazonas, já conhecido dos livros escolares e agigantado mais ainda quando o vi e fui abraçado pelo volume das suas águas. São elementos que foram se associando, se misturando, me arrebatando e hoje fazem parte do que sou.

As pessoas da cidade foram surgindo, interagindo e integrando meus círculos de amizade. E é tanta gente que podemos imaginar um Banco da Amizade em toda a extensão da Fortaleza de São José para caber meus amigos.

Hoje, faço 23 anos como amaparaense (não está escrito errado. Sou um paraense que vive no Amapá, logo um amaparense) e celebro tantos momentos de alegria, confraternizações e realizações artísticas.

De Macapá, tenho saudade dos domingos em que não fui (porque o tempo e o espaço eram outros) assistir a um filme no Cine João XXIII, depois tomar um sorvete e paquerar as meninas no trapiche. Tenho saudade de não ter ido à praia da Fazendinha com uma turma de amigos e só voltar quando a madrugada já anunciava um novo dia. Saudade do Bar Caboclo que não frequentei e da gonorreia que não peguei. Gostaria de ter me curado da tosse braba ou erisipela pelas ervas do Mestre Sacaca. Tenho saudade de figuras como Alcy Araújo, Isnard Lima, Estêvão Silva. Saudade do Gino Flex, que conheci e brindei à vida com ele, e agora saudade que me assalta no meio desta escrita comemorativa e tira um pouco do ânimo, pois Lula Jerônimo acabou de partir.

São vinte e três anos de Macapá em mim neste primeiro de setembro. Várias voltas do sol em torno de mim e por dentro da vida. E por falar em vida, termino com um trecho de Carlos Drummond de Andrade, poeta da minha vida: “a vida é bastante / que o tempo é boa medida, / irmãos, vivamos o tempo”.

Obrigado, Macapá!

Belchior e nós, sujeitos de sorte – Por Marco Antônio Costa

Por Marco Antônio Costa

Sim, presentemente podemos nos considerar sujeitos de sorte. Por óbvio, não pelos atropelos e enormes questões que 2020 trouxe, mas somos de gerações que podem contemplar a obra do grande artista brasileiro Antônio Carlos Belchior, o nosso Belchior, que nos últimos anos ganhou novo impulso e está fazendo a cabeça de muitos jovens brasileiros, e essa é, sem dúvidas, uma boa notícia: Belchior está fazendo um sucesso danado!

Em um momento como esse, me parece que nos cabe deixar de lado qualquer pedância ou ciumeira e comemorar que um poeta tão querido por alguns, seja agora reencontrado por milhares e milhares – quiçá milhões -, que estão conhecendo ou reconhecendo o Bardo do Nordeste.

Do nosso ponto de vista, há diversas razões para essa descoberta e vamos conversar sobre elas, mas adianto a que considero ser a principal: a poesia, a música, a interpretação e a mensagem visceral de Belchior, dialogam com nossos tempos.

Senão, me digam o que pode ser mais a cara de 2020 do que “Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte / Porque apesar de muito novo, me sinto são e salvo e forte / Tenho comigo pensado Deus é brasileiro e anda do meu lado / E assim já não posso sofrer no ano passado / Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”?

É claro que “sujeito de sorte” ganhou o excelente impulso de ter sido sample da música “Amarelo”, do rapper Emicida com participação de Majur e Pablo Vittar. Talvez menos popular, mas não menos forte, também há uma versão da música assinada por Chico Chico, filho de Cássia Eller, que junto com um parceiro soltam a voz à plenos pulmões – como se não houvesse amanhã -, rompendo com o minimalismo dominante na MPB atual.

A morte de Belchior, em abril de 2017, os anos de refúgio e silêncio antes de falecer, a imagem de cabelão e grandes bigodes, lhe dão uma aura misteriosa, peculiar, e certamente isso ajuda para que chame atenção.

Também Belchior consegue popularizar poesia, misturar referências, referindo-se ao que já conhecemos ou já ouvimos, de forma discreta, respeitosa e bem encaixada. Quantas vezes eu não fiquei com a sensação de já conhecer algo ouvindo a música e depois redescobrir na literatura?

Por exemplo, em “Divina comédia humana” ele cita Bilac e seu lindo poema “Ora direis, ouvir estrelas” (Meu poema favorito), sem perder o senso e nos dando uma mensagem, no entanto, de que “enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não”, ele canta.

Ele percorre os clássicos e debate com gente grande. Em uma única canção, “Velha Roupa Colorida”, Belchior consegue fazer referência aos Beatles, Bob Dylan e Edgar Alan Poe. Quando fala no pássaro preto, refere-se ao “O Corvo”, e dá ele mesmo, uma pequena versão do poema, tão forte que mereceu a tradução para o francês por Baudelaire e para o português de Machado de Assis.

João Cabral de Melo Neto visita sua obra com frequência, desde referências mais diretas e “a palo seco”, até “Galos, noites e quintais”, que parece mesmo ter a sombra do poeta pernambucano. Mas seria difícil ficar aqui reparando de citação em citação, ou supondo o que cada verso quereria nos dizer. Fato é que suas letras nos remetem a um universo rico, de quem está envolto em ideias e referências múltiplas.

A juventude, o coração estudantil, o nordeste, as dificuldades da cidade grande, o protesto político e os amores são a pauta do nosso Bob Dylan nordestino. Belchior é fantástico e que bom, repito, que está sendo tão revisitado. Se estava mesmo, e acredito que sim, traduzindo para o popular a comédia de Dante, gostaria muito de lê-la. Mas gostaria mais ainda, acredite, de bater um papo com Belchior, de conversar sobre poesia, literatura e futebol. Nos dias de hoje, certamente, ambos evitaríamos a política. Mas isso, na verdade, acho que já faço toda vez que coloco “Alucinação” pra tocar. Cada música é uma conversa com ele, e com todos os nossos.

Com coração selvagem, meu bem, mil vivas à Belchior!

Breve história do gato que falava esperanto – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Do nada, o gato começou a falar esperanto. Desde suas primeiras palavras, ainda no berço, se recusava à língua natural dos gatos, falada pelo resto da ninhada de maneira espontânea. Para mamar, gritava em esperanto. Fazia cocô e chamava a mãe para limpar, em esperanto. Como ela entendia, não se sabe. Talvez apenas porque fosse mãe. De modo que o gato que falava esperanto passou uma infância solitária. Era um esquisito na sociedade. Sua vida social tornou-se menos difícil quando aprendeu a usar a esquisitice em seu próprio favor. Intermediava conflitos entre cães e gatos, além de dar aconselhamento amoroso para casais de siamês com egípcio, siberiano com birmanês, persa com azul russo…

Os gatos uniam-se em matrimônio ignorando absolutamente o que um dizia ao outro. Com o tempo, passada a semana da paixão tresloucada no telhado, percebia-se a barreira da língua. Era então que o gato que falava esperanto entrava. E tudo resolvia. Pelo simples fato de compreender a raiz de cada língua.

Fez-se respeitado. De cima do muro fazia discursos paroxítonos e nos modos indicativo, imperativo e subjuntivo. Katoj! Gritava, levantando a pata dianteira em clamor, e a gataria se empinava de orgulho diante daquela referência em substantivo plural. Quando se tratava de julgamentos peremptórios, aproveitava-se da ignorância da plateia para usar a morfologia, e abusava do acusativo e do nominativo, incutindo soluções ilusórias. A arquitetura sintética de sua morfossintaxe também era utilizada para receber comida de graça, lugares quentes para dormir e conquistar as mais belas namoradas. Ensinava esperanto às novas ninhadas e proclamava o sonho de que todos os bichos falassem uma segunda língua universal. No fundo, era um bom gato, apesar da malandragem que trazia na espécie. Andava com o Koncisa Etimologia Vortaro, um dicionário etimológico de esperanto debaixo do braço, e de lá, tirava palavras que satisfaziam à curiosidade de gatos que queriam saber como se diziam certos palavrões em esperanto, fingia arrancar poemas que na verdade improvisava – em esperanto, claro – deixando felinas lânguidas e boquiabertas. Quando se candidatou a presidente nacional dos gatos, foi apoiado pelos anarquistas, pelo Centro de Mídia Independente e pela escola Bona Espero*, mas não esperava encontrar um opositor no gato poliglota que falava inglês, chinês, espanhol e hindu, que era compreendido por milhões de pessoas e que recebia apoio em dólares. Foi sua derrota. E ele, que podia ter estudado medicina, foi engolido pelo imperialismo cultural que privilegia gatos que falam inglês. Implacavelmente perseguido, teve sua família dizimada por um gato german longhair, da Alemanha, e passou a viver nas sombras, onde podia ensinar esperanto a gatos marginalizados, engajados e revolucionários.

De certo modo, nunca fora tão feliz quanto agora. E nunca compreendeu porque nascera falando esperanto. Só o que sabia de si era o próprio nome: Zamenhof. O gato que falava esperanto ainda fala esperanto.

*A Escola Bona Espero, em Goiânia, abriga crianças carentes e lhes ensina esperanto. Conto publicado no livro Gatos Pingados – Escrituras Editora – 2018.

 

O Último Dia da Tua Vida – Conto de Mauro Guilherme

Conto de Mauro Guilherme

Ouvi passos na escada. A porta rangeu. Escutei um lobo a uivar. Meu quarto só era iluminado pela luz de um abajur. Um vento frio entrou pela janela aberta, balançando a cortina. E alguém continuava subindo as escadas, mas nunca chegava ao meu quarto.

E o lobo uivava, e o vento frio, de tempos em tempos, entrava pela janela. A porta rangeu novamente. Parecia um filme de terror. Eu iria ser morto, talvez. Mas não por um ladrão ou um assassino qualquer. Eu iria ser morto pelo Chuck, o Freddy Krueger, Jason, Drácula, ou uma outra assombração maligna.

Eu estava com medo, estava paralisado. Meus olhos arregalados fitaram o ambiente soturno. Eu esperava apenas. Olhava para a porta e para a janela, esperando o que ia entrar. De repente, ouvi uma voz apavorante: “Carlos!”…”Carlos!”…Meu nome não era Carlos. Foi o que gritei: “Meu nome não é Carlos!”

Imediatamente o vento da janela cessou, os passos na escada pararam, a porta deixou de ranger, o lobo não mais uivou. Tudo o que era fantasmagórico se foi. Eu respirei aliviado…Meia hora depois ouvi um grito assustador vindo da casa ao lado…

27 de agosto: Dia do Psicólogo – Por Janisse Carvalho (psicóloga)

Desde 1879 quando Wundt criou o 1o laboratório para analisar o comportamento humano, a psicologia tem firmado seu importante papel de revelar ao ser humano a sua dimensão humana. Parece um trocadilho barato mas nem todos nós seres humanos somos capazes de olhar pra nós mesmos com honestidade e compaixão. Então, o que acontece? Não conseguimos olhar o outro da mesma forma. É daí que começam os grandes problemas da humanidade: falta de empatia, intolerância às diferenças, incompreensão das limitações humanas. Por isso saímos julgando e condenando os outros… enfim, entendimento e convivência ficam difíceis!

O principal objetivo de um trabalho psicológico, terapêutico, é o autoconhecimento. Pessoas que se conhecem tendem a ser mais conscientes de si, reconhecer seus limites e potenciais! Mas autoconhecimento não implica em ficar fechado em si. Autoconhecimento é dialético, transcende o sujeito! Quem fica no discurso dizendo que autoconhecimento é balela, alienação; ou, quem fica só no discurso exaltando esse processo como único capaz de melhorar o mundo e ignora o contexto ao redor sem leitura crítica sobre a necessidade das lutas coletivas, se perdem na vida. Os primeiros ficam focados nas explicações de que é preciso mudar as estruturas inscritas numa dimensão coletiva e ignoram as vontades pessoais que muitas vezes é a que prevalece quando ganham alguma luta. Os segundos ficam restritos aos discursos no campo pessoal e vão continuar sofrendo pois o sofrimento é individual e coletivo. Essa dicotomia não ajuda em nada, pelo contrário, só atrapalha. É preciso superar essa dicotomia como dizia Silvia Lane!

Eu costumo dizer que antes de mergulhar para dentro de mim eu queria fazer a revolução no mundo, acabar com as injustiças sociais, lutar contra a opressão e trazer dignidade para humanidade. Hoje se faço isso comigo já me dou por satisfeita. Dizia que tínhamos que melhorar o mundo depois as pessoas. Mas aprendi que não. Conheci a dialética: Mudar a mim mesma, melhorar a mim mesma, também deve implicar em melhora o mundo, num movimento dialético, de vai e vem, ao mesmo tempo agora. Continuo empenhada na luta coletiva, mas olhando pra mim e a partir de mim!

Hoje aprendi que mergulhar em mim mesma, ter respeito pela minha história, ser auto compassiva comigo, ter consciência das diferenças dentro de mim, das minhas idiossincrasias, me fez olhar pros outros e ser mais sensível e tolerante. Nem sempre consigo, pois não sou perfeita, mas acredito que a consciência desse limite já é um avanço! Ainda falta muito, mas já percebi que esse mergulho é infinito, como o Criador que existe em mim!

Janisse Carvalho e este editor. Saudades sempre!

Hoje ainda quero mudar o mundo, mas nunca sem antes passar por mim!

*Janisse Carvalho, psicóloga paraense/amapaense e professora universitária e secretária de Assistência Social do município Alexania (GO).

Preâmbulo da Horas – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Havia um moço triste que passeava todas as noites na sala de um apartamento do edifício em frente ao meu. Era angustiante a sua solidão no oitavo andar. Eu havia me habituado a trazer para casa o trabalho do escritório e ficava até altas horas ruminando documentos, trocando ideias com xícaras de café e um maço de cigarros, na companhia das badaladas do velho relógio de parede. Pensava que minha solidão era a maior de todas, até a noite em que o vi pela primeira vez, a passear incansável pela sala à meia luz. Observei que também fumava um cigarro atrás do outro.

Todas as noites ele chegava às 23 horas, tirava, ainda na porta, a camiseta, e a jogava num canto qualquer, depois apagava as lâmpadas no interruptor próximo à porta de entrada, deixando acesa apenas uma luminária de luz opaca, que lhe permitia mover-se sem tropeços. Então começava a andar de um lado para o outro, sem descanso. Às vezes debruçava-se à janela. Outras, desaparecia por outros cômodos. Depois voltava a fumar pela sala, impaciente. À uma hora da madrugada, indefectivelmente, atendia ao telefone, e só então tinha descanso.

De meu apartamento, eu não podia ouvir o toque de seu telefone, mas todas as madrugadas, quando meu relógio de parede soava uma nostálgica badalada, o moço atendia ao telefone. Falava por alguns instantes e tornava a sair, vestindo a mesma camiseta que deixara abandonada num canto qualquer. Algumas vezes deixava o aposento às escuras e só era possível localizá-lo pela brasa pequenina do cigarro, que se acendia como um vagalume na janela.

Nunca o vi durante o dia e creio que ele nunca chegou a me ver, nem de dia nem à noite. À tarde havia um velho cachorro sonolento, um dálmata, que dormia na sacada do quarto de um apartamento ao lado do seu. Por diversas vezes, tive a absurda impressão de que o cachorro morava sozinho, pois jamais presenciei ali qualquer outro sinal de vida. Algum tempo depois, percebi que durante a noite também o dálmata dormia na sacada.

Durante meses nossas noites foram iguais: eu trabalhava até a madrugada, observando o rapaz solitário, suas lâmpadas obsoletas e sua triste pontualidade, o cachorro dormia um sonho de sonhos cansados, e o rapaz andava sem medidas na penumbra da sala, na expectativa inquietante de sua hora marcada. Por muitas vezes, no transcurso dos meses em que o observei, tive o impulso de lhe telefonar. Não sei o que lhe diria. Talvez uma frase piegas sobre o amor e o desamor, ou talvez lhe contasse uma história engraçada, e ele, por um instante, abandonaria o cigarro para gargalhar, para olhar pela janela e ver quanta noite havia no céu cravejado de estrelas. Depois desisti do incômodo desejo de salvar alguém que talvez nem precisasse ser salvo. Continuei a assisti-lo, em sua cronologia obsessiva.

Nas raras vezes em que me deitei mais cedo, continuei a vê-lo, pois quando dormia, ele, iluminado pela brasinha do cigarro, passeava pra lá e pra cá na penumbra dos meus sonhos. Acabei por me irritar com aquela criatura que passara a se intrometer em minha solidão, e por algum tempo deixei de observá-la.

Uma noite, entretanto, vencida pela culpa por ter abandonado o moço à sua própria sorte – como se em algum momento eu tivesse participado dela – tornei à janela. Ele esperava pela ligação. O dálmata dormia. Caía uma chuva de pingos enviesados na noite em que seu telefone não chamou. Ele acendeu todas as lâmpadas da sala, tornou a andar de um lado para o outro, pegou o telefone, conferindo se havia algum defeito, e colocou-o de volta à mesa, devagar, como se não soubesse o que fazer depois disso. Ficou parado diante da mesa, olhando para o telefone. Sob a luz intensa, ele era belo. Tristemente belo.

Acho que odiei a criatura que deixou de lhe telefonar naquela noite chuvosa. Mergulhei em meu trabalho, com a promessa de não me ocupar mais de vidas que não eram minhas, mas quando tornei a olhar para fora, ele estava sentado no parapeito, com as pernas dependuradas no vazio. Nem ao menos fumava. A súbita certeza de que ele ia pular me estremeceu o corpo num calafrio. Ainda hoje, quando recordo, tenho a sensação de vê-lo mergulhando num voo sem volta, libertando-se de sua infinita espera. Acenei-lhe com uma insistência patética, e ele não me viu. Gritei, atribuindo-lhe nomes diversos, talvez nenhum fosse o seu, e ele não ouviu porque havia entre nós o ruído da chuva. Senti um amargo arrependimento por nunca ter procurado o número de seu telefone. Eu beirava o pânico, estava com o telefone na mão para chamar a Defesa Civil e impedir que ele pulasse, quando ele desceu da janela e fechou-a.

Respirei, profundamente aliviada, e fui dormir com a decisão irrevogável de nunca mais me preocupar com o desconhecido. Mas ele estava em meus sonhos, flutuando no ar sob um chuvisco renitente. Quando saí para o trabalho, pela manhã, havia na calçada de seu edifício um ajuntamento de pessoas, homens, mulheres, até crianças, unidos por uma curiosidade mórbida, falando alto, apontando apartamentos. Naquele instante, porém, o mundo para mim ficou mudo. Eu só ouvia meu coração saltando no peito, e talvez ele até me dissesse da culpa que eu teria que carregar por toda a vida por ter dormido indiferente à dor alheia. Abri caminho aos empurrões para ver o que os curiosos viam. No centro do círculo humano, estendido sobre o próprio sangue, e morto, estava o velho dálmata solitário.

*Conto premiado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo – SP. Publicado na IX Antologia de Contos Alberto Renart – 1996.

Catita, mamãe! – Conto de Heluana Quintas

Conto de Heluana Quintas

Minha mãe sempre foi implacável com as catitas. Todas as madrugadas em que uma catita se apresentou num intervalo de sono da minha mãe, a agilidade miúda da bichinha perdeu para a perseverança robusta do matriarcado Quintas. Sem negociação, a gente de toda a casa levantava, empunhava rodo e vassoura num limbo de sonolência e gritaria.

Apresentavam-se, a contragosto, os deselegantes cavaleiros da remela por volta das duas da manhã, madrugando por tempo indeterminado à espreita da espreita do minúsculo ratinho. Alvo eliminado, às vezes a batalha se prolongava no sonho do sono curto, por que a noite mal dormida é o afago da angústia, a gêmea siamesa do pesadelo. Nessas ocasiões, a praga reaparecia ainda que a matasse mil vezes. E assim, o rato roía as horas do rádio-relógio.

Em mais uma noite, lá estávamos eu de um lado do fogão e mamãe do outro. Eu de rodo, ela de vassoura, ele franzino e de pelo cinza claro, escondido silenciosamente debaixo do Electrolux branco de seis bocas. Minha perna já formigava quando o animal fez uma breve e destemida corrida na minha direção, parou e me fitou profundamente. Me vi gigante nos olhos do ratinho. Paralisada com terror de mim mesma, o ratinho de repente crescia na minha frente.

O rodo já não servia para acuá-lo senão para me proteger. Esqueci o formigamento e permanecemos sustentados pela mira um do outro. O rato e eu moramos na iminência do ataque e da clemência, dois pontos pulsantes de luz vermelha no rádio-relógio da cozinha. Naquela madrugada nada avançava. Até que eu desisti. Abandonei a insistência em compreender se o rato pretendia ou não me atacar e aceitei que ele me vencesse pelo blefe. Soltei o rodo no chão e a trava do relógio. O rato correu pelo canto da parede e alcançou a porta rumo a liberdade. A derrota fez um sono tranquilo.