Sobre Fernando Canto – Por Renivaldo Costa – @renivaldo_costa

Nosso querido amigo Fernando Canto.

Por Renivaldo Costa

O Fernando Canto é um dos seres humanos mais extraordinários que conheci até hoje. Me permito chamar de “irmão” a poucos amigos. Fernando é um deles. Nos conhecemos há 25 anos, quando ele ainda morava em Belém e desde então estabelecemos uma relação de amizade e apreço. Muito daquilo que escrevo tem forte influência de Fernando. Afinal, cresci lendo seus livros.

Em maio Fernando Canto completou 66 anos, data que nem pudemos comemorar como de praxe em razão da pandemia. Ele nasceu em 29 de maio de 1954 em Óbidos, mesma terra que gerou outros ícones da cultura brasileira como Inglês de Sousa. Suas incursões pela música e literatura são conhecidas pelo Brasil afora, mas creio que o Amapá precisa redescobrir ainda Fernando Canto.

Outro dia, numa conversa com o ex-deputado Antônio Feijão, ouvi o seguinte comentário: “Se tivesse nascido em qualquer outro lugar do mundo, o Fernando Canto seria considerado um legado cultural pelo seu povo. O Amapá precisa olhar mais pelos seus heróis”. De fato. A contribuição dado por Canto ao longo de sua trajetória no Amapá é um legado do qual temos que nos orgulhar. Obras como “O Bálsamo” e “Eqüino Cio” são dignas de premiações internacionais.

Este editor com o Canto. Meu amigo e herói literário.

Ademais, foi somente na gestão de Fernando Canto que a Confraria Tucuju ganhou notoriedade.

Provavelmente uma das maiores contribuições de Fernando Canto à cultura amapaense tenha sido a “marabaixeta”, um marabaixo fora de época que ele idealizou num momento em que esta manifestação passava por momento agônico e corria o sério risco de desaparecer. À época, Fernando sofreu críticas mas hoje – quase 23 anos depois – sua iniciativa pode ser melhor entendida. Hoje proliferam grupos de marabaixo e até já se promoveu um festival dessa manifestação, ideia aliás que nosso sociólogo defendia há mais de 20 anos.

Renivaldo, com Fernando e outros ilustres cidadãos do Laguinho, na “marabaixeta”.

Por fim, encerro esta homenagem relembrando uma história ocorrida com o Fernando Canto e contada pelo saudoso amigo Hélio Pennafort. “Levado por amigos, o Fernando Canto participou de uma animada festança lá para as “blelbas” do furo do Assacu. Conhecendo a rígida disciplina que nesses lugares impera no salão, Fernando, depois de muita excitação, conseguiu aproximar-se de uma brejeira cabocla, triste e solitariamente encostada na desnivelada parede de paxiúba:

A senhorita me permite esta contradança?
– O que ?
– Vamos dançar?
– Num dá. Eu só danço abenetando.

Fernando encabulou. Desencabulou. Novamente convidou. Mas qual… a dama encasquetou: – Já disse, só danço abenetando.

Sociólogo de vastos recursos, imaginou tratar-se de algum passo novo e, quem sabe, poderia adaptar-se a ele no decorrer da contradança. Insistiu: – Mas sim, vamos dançar?

– De novo? Puxa, só danço abenetando.
– Pois eu sei dançar abenetando.
Mas quando?… A Bené num tá.”

“A Literatura no Amapá e a Lei Aldir Blanc”: em live, Conselho de Cultura e Associação Literária do Estado do Amapá, promovem escuta para debate e esclarecimentos neste sábado (12)

O Conselho Estadual de Política Cultural do Amapá (Cepc-AP) e Associação Literária do Estado do Amapá (Alieap), realizarão, a partir das 18h, neste sábado (12), o encontro virtual “A Literatura no Amapá e a Lei Aldir Blanc”. A live, que será transmitida pela plataforma Meet (https://meet.google.com/ayk-zkbr-uvg), tem o objetivo repassar as últimas atualizações sobre a lei, tirar dúvidas de como o escritor, editor ou profissional da área literária poderá fazer o seu cadastro para receber o auxílio e pontuar contribuições/sugestões  que possam somar com os gestores públicos, com foco nas especificidades e necessidades do segmento.

O evento virtual contatá com as participações do presidente e vice-presidente do Cepc-AP, Cléverson Baía e Cleide Façanha, receptivamente; do presidente da  Alieap, Ricardo Pontes; do diretor da Biblioteca Pública Estadual Elcir Lacerda, José Pastana e da conselheira de Estado da Cultura no segmento Literatura, Jô Araújo.

Conforme Jô Araújo, o encontro será democrático e propositivo. A conselheira reforça que o convite a participar é aberto, além de escritores, poetas e amantes da Literatura, à sociedade civil.

Escutas públicas, como a que faremos hoje, com a participações de escritores, poetas e demais trabalhadores do segmento da Literatura, fazem parte de um planejamento do Cepc-AP. Após escutarmos os segmentos de Cultura, produziremos um relatório que servirá de subsídio para as políticas públicas do Estado. Por meio desses encontros, pretendemos receber as sugestões, tomar ciência sobre as dificuldades e especificidades de cada segmento artístico/cultural e como melhor podemos atendê-los”, pontuou o presidente do Cepc-AP, Cléverson Baía.

Sobre a Lei Aldir Blanc

A Lei Aldir Blanc, criada para atender o setor cultural durante a pandemia de Covid-19.As inscrições iniciaram no último dia 17 de agosto e seguem até o dia 17 de setembro e não devem ser prorrogadas. O benefício é de três parcelas de R$ 600, mas deverão ser pagas em uma única vez totalizando R$ 1.800.

Os fazedores de cultura que ainda não fizeram suas inscrições devem acessar o formulário eletrônico no site cadastrocultural.ap.gov.br, criado especificamente para a inscrição. O cadastro é coordenado pela Secretaria de Cultura do Estado do Amapá (Secult), mas com seleção definitiva realizada pela Dataprev, sistema do Governo Federal.

Sobre o Cepc

O Conselho Estadual de Política Cultural é um órgão vinculado à Secretaria de Estado da Cultura (Secult), que integra o Sistema Estadual de Cultura, com a função de elaborar, acompanhar, executar, fiscalizar e avaliar as políticas públicas de cultura estabelecidas no Plano Estadual de Cultura (PEC).  A entidade é formada por 20 conselheiros, dos quais 16 são titulares e quatro suplentes, que representam os agentes da cultura amapaense.

Elton Tavares – Escritor, jornalista e editor do site Blog De Rocha.

Biblioteca pública do Amapá reabre para leituras e consultas por agendamento

Biblioteca Pública Estadual Elcy Lacerda – Foto: Maksuel Martins

Por Fabiana Figueiredo

A Biblioteca Pública Elcy Lacerda, localizada no Centro de Macapá, reabriu na última terça-feira (8) para receber o público externo. Os visitantes precisam agendar o dia que irão usufruir do espaço. Inicialmente, os empréstimos de livros não são permitidos.

O prédio estava fechado desde março, quando a pandemia de Covid-19 chegou no Amapá, com restrições para serviços não essenciais.

De acordo com o diretor José Pastana, regras foram definidas para que o usuário possa visitar o espaço com segurança.

“Nós elaboramos o nosso protocolo de atendimento público levando em consideração as orientações dos protocolos sanitários e decretos do Poder Executivo. Vamos retornar nossas atividades de forma gradual, atendendo o usuário das 8h às 12h, por agendamento”, informou.

O agendamento deve ser feito através do e-mail [email protected] ou na recepção da biblioteca. Só podem entrar pessoas com idades entre 12 e 60 anos.

Podem ser realizadas pesquisas nas salas “fundamental, médio e superior”, “amapaense”, “circulante”, “afro-indígena”, “infanto-juvenil”, e “obras raras e periódicos”.

Biblioteca Elcy Lacerda possui um acervo com mais de 60 mil livros — Foto: Rita Torrinha/G1

É obrigatório:

uso de máscaras;
limpeza das mãos com álcool em gel e aferimento de temperatura corporal;
levar garrafa de água de uso individual;
manter o distanciamento social de 2 metros;
uso de luvas e viseira facial (a critério do usuário);
álcool em gel de uso individual (a critério do usuário).
Será permitido o acesso de cerca de 100 pessoas no prédio, que significa 50% da capacidade. O empréstimo de livros deve retornar 60 dias após a reabertura, assim como a possibilidade de doações de livros usados. As outras atividades ainda não têm data para retornar. Tudo dependerá da situação epidemiológica e decisões do governo do Estado.

Fonte: G1 Amapá

O Pedido – Conto de Mauro Guilherme

Conto de Mauro Guilherme

Antes de nascer fiz um pedido a Deus: queria ser feliz no amor. Nasci, cresci, casei e era feliz. Mas a minha esposa não era. Andava sempre triste pela casa. Ela lhe perguntava por que ela estava assim, mas ela não sabia me dizer. Então, eu rezei a Deus para que ele desse uma luz sobre o problema. Aí tive um sonho com ele: vinha de barba branca, cabelos grisalhos, com um cetro na mão. Eu perguntei-lhe sobre o que me inquietava. Pedi que me dissesse por que eu era feliz no casamento, mas a minha esposa não.

Ele me respondeu com voz de trovão: “Quando antes de nascer pediste para ser feliz no amor, esqueceste que isso poderia influenciar a felicidade alheia. Para que fosses feliz no amor, tive que fazê-lo casar com a mulher que amavas. Mas a mulher que amavas, não te amava. Ela casou contigo e não pode se separar de ti, por força do teu pedido. Tu vais ser feliz para sempre, mas ela não”.

Acordei daquele sonho sem alegria. Eu amava uma mulher que não me amava. Por isso ela era infeliz. Eu também não poderia ser feliz assim. De noite, antes de dormir, pedi a Deus que anulasse o meu pedido. Quando amanheceu, ela havia partido. Eu envelheci e morri infeliz no amor. Mas ela casou-se de novo, e seu casamento durou a vida inteira. Agora vou nascer novamente. Deus veio até mim e perguntou-me se eu tinha algum novo pedido. Eu disse que tinha: queria ser feliz no amor, mas só se quem eu amasse, me amasse também. Deus sorriu, abençoou-me e partiu feliz para o céu.

*Do livro “Histórias de Desamor” (2012).

CONSTELAÇÃO BORDADA NO PEITO – Conto de Isabela Lima

Conto de Isabela Lima

Mamãe prepara mingau de macaxeira com leite. Sorri enquanto me conta do arroz queimado no almoço. A panela ficou com o fundo da cor-da-noite-na-amazônia. Mamãe não está com raiva. Ela ri. Faz tanto tempo que a vejo raivosa pela casa. Mas hoje, por algum evento cósmico, ela ri. Meus olhos marejam enquanto rio também. Marejam, marejam me levando pra um tempo onde a única coisa que corria era o rio lá pelas bandas do Guajará, no Pará.

Eu não fazia ideia do tempo do relógio, mas sei que quando o sol estivesse quase baixando já era aproximadamente cinco da tarde, a mãe dizia. Íamos de galera, os primos todos, pra pular no rio e brincar de “pira-mãe” ou fazer acrobacias na água. Certa vez, um vento medonho preencheu a paisagem e o céu mudou de azul pra cinza num segundo. Uns trovões se aproximavam e eu olhava do meio da ponte o horizonte. Um primo mais velho se aproximou contando que se eu batesse repetidas vezes, bem forte, os braços, era capaz de voar. Disse ainda: “mas tu tens que acreditar com força pra poder acontecer”. E saiu. Prontamente fechei os olhos e bati forte os braços em movimento de passarinho. O vento chacoalhava os cabelos e o corpo envergava feito o ingazeiro. Fiquei ali por um bom tempo, num devir-pássaro, até que uma voz familiar gritou: “— sai dessa chuva, menina! Daqui a pouco tu apanha uma doença e eu quero ver”.

O vento soprava a noite mais pra perto. No interior da casa o meu peito, agora, ardia junto ao fogão à lenha. A mãe com a tia assavam enormes tucunarés e amassavam a bacaba, enquanto as filhas mais crescidas arrumavam a mesa com a toalha de flor, farinha torrada, pratos e talheres. A pequena lamparina evitava que engolíssemos espinhas. Pronto! O pequeno milagre da vida acontecia.

Insurge os dezembros entre as memórias. As mesmas lamparinas com seus foguinhos-bailarinos iluminando as trilhas no mato e de repente estávamos na capela celebrando o nascimento do menino Jesus. Aos poucos, barcos e canoas atracavam no porto. Pelo barulho do motor já se sabia quem vinha adiante: é o compadre Dico com a Maria. Chegavam sempre anunciando aquilo que mais me fascina na vida: o renascimento e a partilha. É natal. Sim! Natal no meio do nada. E eu queria dizer que o nada muito me interessa já que as estrelas e vaga-lumes ainda piscam bonito pra caramba dentro do meu peito.

Distraidamente as lembranças chegam rompendo muros, embalando a enorme fotografia pendurada do lado de dentro. Consigo ouvir de relance ainda, lá fora, os rituais de pesca dos botos sob a luz da lua. Na cabeceira da ponte as histórias de visagens arregalavam olhos, enquanto um medinho vinha vindo até se agasalhar no colo de alguém. Ninho. Tela a céu aberto. Cheiro de tempo entranhado. Ou qualquer outra palavra-ponte que permita o fluxo dos instantes.

Arte e Literatura do Amapá em evento virtual mundial: a atriz, professora e escritora amapaense, Lucia Morais, participa do Focus Brasil New York

A atriz, professora, arte-educadora, contadora de histórias e escritora amapaense, Lucia Morais, participará, a partir das 15h desta sexta-feira (11), do Focus Brasil New York. O evento, iniciado na última quarta-feira (9), com abertura feita por nada menos que a cantora paraense Fafá de Belém, objetiva a divulgação e fortalecimento da cultura brasileira no exterior, principalmente nos Estados Unidos. O encontro mundial é realizado de forma on-line, nos canais do Youtube e Facebook do evento.

O evento é também um reconhecimento aos autores, editores e iniciativas que se destacam no panorama literário brasileiro. Ou seja, aos que contribuem para a expansão da presença literária brasileira, dentro e fora do Brasil.

A programação inclui painéis, palestras, presença de personalidades da literatura brasileira, editores, formadores de opinião e homenagem aos destaques literários. Lucia Morais fará sua participação no painel Arte Visual e Literatura. A escritora será a literatura amapaense representada no exterior.

O Focus Brasil New York conta com a participação de autores brasileiros de vários gêneros ou estilos literários e escritores de outras partes do mundo. O evento encerra nesta sexta-feira com show da dupla gaúcha Kleiton & Kledir.

Lucia Morais – Foto: arquivo da artista

Sobre Lucia Morais

A atriz Lucia Morais tem origem indígena e nasceu em Macapá. Além de atuar no teatro, é especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Cândido Mendes. Ela escreve e conta histórias sobre sua naturalidade, sobre lendas e histórias do Norte do Brasil, em especial do Amapá. A artista, que possui uma carreira sólida há 18 anos no Rio de Janeiro (RJ), onde reside, também é incentivadora da leitura e é engajada em projetos de luta em prol da arte e cultura. Inclusive já montou três bibliotecas comunitárias na capital carioca.

Lucia Morais faz apresentações de mediação de leitura e contação de histórias em escolas, creches, bibliotecas, eventos literários / Culturais pelo Brasil. Também ministra oficinas de Mediação de Leitura e Contação de Histórias para Professores e público interessado em diversos lugares do Rio de Janeiro: Faculdades, Bibliotecas, Escolas, Creches, ONGs e outros.

Ela coordenou e realizou ações de Enraizamento e Fortalecimento Comunitário em diversas comunidades cariocas.

Lucia Morais fez muito sucesso e rodou o Brasil com a peça “Arandu Lendas Amazônicas”, um passeio poético entre as lendas amazônicas, a um Brasil ancestral, com direção de Adilson Dias. “Arandu”, do dialeto tupi-guarani, significa um misto de sabedoria e conhecimento. No espetáculo, a atriz conta histórias da grande floresta de nossa ancestralidade indígena, inspirada nas histórias contadas por sua avó. Ela é uma trabalhadora na perpetuação da cultura amapaense.

Conto com a audiência dos amigos, adeptos da literatura a prestigiarem o Focus Brasil New York. Estarei no painel “Arte Visual e Literatura, um encontro fundamental”. Honro minha ancestralidade! Sou Tucuju. Sou do Amapá“, comentou Lucia Morais ao convidar os amapaenses para assistir sua apresentação.

Elton Tavares, com informações de Lucia Morais

DESTEMPO – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Era a primeira vez em muitos anos que eu não via Florentino Ariza* sentado sob a acácia da praça, que eu não pensava em Florentino Ariza. A manhã havia parado de correr às oito horas, cristalizada em um tempo imóvel, no ar inerte, no súbito silêncio do trânsito e dos cachorros que suspenderam a travessia da faixa de pedestres para olhar em direção às nuvens, pressentindo a imobilidade do tempo. O mendigo errante, que naquele dia morava no canteiro, ouviu a tristeza das raízes das papoulas sob a terra há dois meses sem chuva. Uma menina que viera de longe para assistir ao sol dos trópicos, com sua pele morim e sua sombrinha floral, paralisou-se atenta ao céu, espremendo entre as pálpebras o azul juvenil das íris.

Pelo tempo que durou o destempo. Passaram-se minutos que podem ter sido horas, que podem ter sido dias, meses, qualquer medida oficial de tempo, quando a manhã voltou a correr. Mas os relógios nos pulsos, nos bolsos, nos painéis ofuscados pela claridade das oito horas marcavam ainda oito horas. Foi quando os cachorros prosseguiram a travessia, o mendigo moveu o silêncio em direção à menina de sombrinha floral, que por sua vez apressou o passo atrás das borboletas que sobrevoavam as papoulas. Somente Florentino Ariza não voltou a aparecer sob a acácia. Foi necessário o destempo para apagar minha lembrança de Florentino Ariza.

*Personagem de Gabriel García Márquez em “O amor nos tempos do cólera”
**Conto publicado no livro Gatos Pingados

O DUPLO-ESTRANHO SOU EU? – Conto de Isabela Lima

Conto de Isabela Lima

É que ninguém ouve o que diz uma garganta entupida na multidão. Os olhos queimando, ardendo, falando uns sinais. Ninguém. A gente meio que se volta para projeções espalhadas nas vitrines das lojas nas ruas. Não é vazio um corpo sem rosto, sem tom, sem voz? Os teus gritos ultrapassam os vidros à sua frente?

Aos oito anos de idade, passeando pela feira, toquei no seio de uma manequim. Eu não acreditava que aquela mulher estava ali por vontade própria na mesma posição há horas. Queria saber sua história: de onde viera, quem a produziu e o porquê estava lá. Queria? Não mais, pois um olhar masculino reprovou o meu jeito de transver o mundo.

Mas oh, o ser humano é todo capaz de abrir novamente as suas frestas e compreender o que se passa lá fora. E há momentos em que ninguém nos olha. Então você sai de você e vai ser estrangeiro no mundo. Ele é seu palco. Mas eu fui sendo atriz pra dentro. Bem lá no fundo. Ouvi dizer que se quisermos algum dia mudar o exterior precisamos despertar e recriar primeiro o que temos por dentro. Descer até os porões? Arrancar os segredos da própria pele? Nossos muros ameaçando romper a céu aberto. Seus pensamentos ficam a ponto de estilhaçar quando alguém vem olhar mais de perto?

Raimundo perguntou, certa vez, como era viver fora da própria pele. Se eu gostava do que via lá fora, quando ia lá fora. Assim, pergunta à queima-roupa. Calei como quem espera uma sinfonia passar pela rua. – A gente sente o peito rasgando, meu bem. E se você força um pouco mais o cordão rebenta e o mundo te engole. Mas assim, eu não saberia explicar se ele primeiro te seduz antes de mastigar, ou se espera as tuas cores explodirem sozinhas.

E o que entendo de olhos, de jeito, de timbre, de mundo… De sinfonia? É que tudo isso, despretensiosamente, transpassa as janelas e rebenta no peito. Há um silêncio entre a travessia e o estouro: volto na feira, aos oito anos, tocando no seio daquela mulher.

Autorretrato – Crônica de Lulih Rojanski

Crônica de Lulih Rojanski

Nasci no ano de 1415 do calendário armênio. O que me consola é que no calendário rúnico já era 2216, e só agora compreendo que o gregoriano é o pacificador dos calendários. Era uma quarta-feira, destinada à proteção do Deus Odin, e no ano do cavalo no horóscopo chinês. Mas isso não influenciou em nada minha vida, que poderia ter sido menos pálida se eu tivesse me deixado governar pela água, pelo saxofone e pelo número oito. Talvez o fervor da Guerra do Vietnã naquele ano tenha suscitado em meu espírito um profundo desejo de paz, e a fundação da Igreja de Satã originado a impressão de um risco vertical em meu olho esquerdo… Não sei.

A astrologia reversa diz que nasci touro com a personalidade de peixes. Paciência. O mundo andava muito louco por aquela época. Manuel Bandeira fazia oitenta anos, e nos ensinava o Itinerário de Pasárgada, para onde finalmente aprendi a ir, mais de trinta anos depois. Nada mais. Apenas nascemos: eu, Zeca Baleiro e o terrorista iraquiano Abu Musab al-Zarqawi, enquanto a boca ávida de Bob Dylan procurava a gaita, em algum lugar.

Quando Pelé voltou do México abraçado à taça Jules Rimet, eu ainda não tinha televisão em casa. Ainda não havia percebido minha própria existência. Mas se tivesse televisão, certamente colocaria no canal do Capitão Aza. Um pouco depois, o Etna entrou em erupção, a juventude entrou em erupção porque Jim Morrison se foi, as crianças entraram em erupção pelo Walt Disney World. Mas na época não fiquei sabendo de nada. Talvez estivesse pensando no Nobel de Literatura de Pablo Neruda.

Passei anos me guardando dos invernos implacáveis dos confins do Paraná. Nos dias hibernais, meu companheiro fiel era o Gato Félix dos quadrinhos, que me ensinou a compreender as primeiras frases escritas. Depois, a televisão chegou à sala da minha infância, e Vila Sésamo me despertava da letargia. Mas chegou o ano em que tudo o que me rodeava foi salvo dos insípidos tempos de geada: descobri os livros, e foi o princípio de um amor eterno, embora naquele tempo eu ainda saltasse do muro com uma fronha amarrada nas costas, gritando o nome de Flash Gordon.

1980 foi o primeiro ano do resto de minha vida, porque topei de frente com o amor, em uma tarde em que o sol de outono estendia caminhos amarelos sob as paineiras. Os amores que nasceram naquele ano foram embalados pela Imagine do beatle assassinado, pelos sonetos do Vinícius morto. O meu não foi diferente.

De lá para cá, dei mais dezenas de voltas ao redor do sol, plantando muito pé de flor que deu capim, capim que deu flor, e nada me desviou do caminho da circunspecção… Nem a passagem do Halley, a queda do Muro de Berlim, a carona que pegaram Drummond, Chico Mendes e Rubem Braga no relâmpago do adeus. Mas estive atenta ao mundo, vendo muita coisa que não queria ver e outras que não pretendo morrer sem rever, como a chuva nas ruas esmigalhadas de solidão da cidade distante onde nasci.

Como agora ando confusa com os calendários, espio o horóscopo, que continua me prometendo um pouco de ternura depois das luas minguantes. Mas tudo está bem, enquanto vou acreditando que sou zen. Amanheço abraçada ao tempo, construindo as manhãs com tantas esperanças quanto raios de sol. Entardeço enumerando sonhos na margem do rio, derramando uma a uma as páginas do Livro de Areia, de Borges. Anoiteço dançando entre os cristais dos sentimentos e adormeço no cheiro das margaridas capturadas nos quintais da infância, que continua a arder no sonho. No peito trago a vontade insondável de voltar a ter dois anos e não saber de nada. No espelho vejo o olhar sereno de alguém que gosto. O fantasma de meu velho gato Stephen Fry anda por perto, a despeito dos anos e dos temporais.

O retrato – Conto de Manoel do Vale

Homem triste de terno [retrato de John Lakeman pronto e pronto]
Conto de Manoel do Vale

Rita riu, quando viu. No quadro só havia a moldura. O retrato do marido sumiu. Melhor assim, ele estava triste naquele retrato. Terno preto, olhar distante, gomalina no cabelo, nem um sorriso.

Que bom que ele se foi. Poderia agora por uma foto sua, sorridente, com um vestido florido azul para combinar com o rosa suave da sala.

Rita foi à feira. Sacola de pano de companhia. Feijão vermelho seu predileto. Poderia agora levar uns cogumelos, marido se foi até do retrato.

Alface, rúcula, queijo da região, alho. Finalmente iria fazer sua salada preferida. A boca do marido não estava mais para reclamar do ardume da rúcula,da força do alho, da intolerância à lactose.

Sem o marido, Rita ficou muito bem na foto.

Macapá Verão Online: ocorre nesta quinta a última edição do Estação Lunar

Nesta quinta-feira, 3, a Prefeitura de Macapá apresentará a última edição da Estação Lunar deste ano. Nove artistas amapaenses abrilhantarão o evento que marca a grade de programação do Macapá Verão 2020. Será uma noite de muita música, poesia e exposição de artes visuais. Todos irão poder acompanhar de casa, por meio da página oficial do Facebook da Prefeitura de Macapá e YouTube.

O evento será transmitido a partir das 19h e as atrações contam com grandes nomes da música regional, como Nonato Leal, Finéias Nelluty, Mayara Braga, Ariel Moura, Alan Yared, Grupo Guá e Suíte Popular. O público ainda poderá prestigiar um momento literário com o grupo Poetas Azuis.

Confira a programação completa:

– Exposição de artes Gibran Santana (artes visuais)

– Alan Yared (música)

– Hayan Chandra (literatura)

– Suíte Popular (música)

– Ariel Moura (música)

– Poetas Azuis (música)

– Nonato Leal (música)

– Mayara Braga (música)

– Grupo Guá (música)

– Finéias Nelluty (música)

Secretaria de Comunicação de Macapá
Kelly Pantoja
Assessora de comunicação

Os aviões – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Amanhecia quando começaram a passar os aviões. E o primeiro a passar foi o primeiro avião da vida do lugar. Nunca antes houve outro que tivesse sobrevoado tão remoto povoado ao sopé de tão remota montanha, onde tudo o que se via no céu eram as neves do inverno e as nuvens baixas que escondiam os sóis e as luas.

Naquele dia, as nuvens abriram espaço aos aviões e todos correram para os campos com o olhar perplexo para ver passarem os grandes pássaros de aço com seus roncos de monstro desperto. Os rostos queimavam de felicidade ao insólito desfile de meia dúzia de aeroplanos que faziam cinematográficas acrobacias, inusitados desenhos no céu.

As crianças eram as mais encantadas, e se habituaram logo à névoa mágica despejada sobre o povoado, pois as cerrações dos seus invernos na montanha eram infinitamente mais densas. Os velhos deitavam-se de costas, uns ao lado dos outros, para ver o espetáculo, e nem eles nem as crianças sentiam passar o tempo, hipnotizados pelo milagre da descoberta de sua existência pelos homens que possuíam aviões.

Quando não havia mais ninguém dentro das casas, quando todos se encontravam deitados ou sentados na relva, os aviões despejaram a linda névoa vermelha que magicamente levou os velhos, os jovens e as crianças para o sono sem volta.

Poema de agora: Painho – Pat Andrade

Pat Andrade, Lula e Bruno.

Painho

ele não era meu pai
mas bem que poderia
eu o chamava de Painho
e era tratada como filha

meu amor por ele
se confunde com noites
e madrugadas perdidas
se mistura com cerveja
e cigarros esquecidos
se expressa em poemas
e canções nunca ouvidas

meu amor por ele
se renova em manhãs
e tardes de domingo
se alimenta nos almoços
e sobremesas servidas
e não morre em mim
mesmo com sua partida

Pat Andrade

Macapá em mim – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Era 1997, o século XX se aproximando do fim e eu chegando ao meu recomeço.

Foi a primeira vez que andei de avião, cantarolando internamente a música de Beto Guedes e Ronaldo (meu xará) Bastos: “Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos…”.

O Sol de Primavera brilhou para mim, ainda que eu tenha chegado na madrugada, e o primeiro de setembro ficou sendo um marco, o Marco Zero do Equador da minha nova vida, que começava naquele momento, nesta cidade que alargou meu coração para caber nele, juntamente a Curuçá e Belém, formando as três cidades que trago no peito.

Logo novas palavras foram chegando e se materializando em minha nova vida. Marabaixo, Curiaú e o rio Amazonas, já conhecido dos livros escolares e agigantado mais ainda quando o vi e fui abraçado pelo volume das suas águas. São elementos que foram se associando, se misturando, me arrebatando e hoje fazem parte do que sou.

As pessoas da cidade foram surgindo, interagindo e integrando meus círculos de amizade. E é tanta gente que podemos imaginar um Banco da Amizade em toda a extensão da Fortaleza de São José para caber meus amigos.

Hoje, faço 23 anos como amaparaense (não está escrito errado. Sou um paraense que vive no Amapá, logo um amaparense) e celebro tantos momentos de alegria, confraternizações e realizações artísticas.

De Macapá, tenho saudade dos domingos em que não fui (porque o tempo e o espaço eram outros) assistir a um filme no Cine João XXIII, depois tomar um sorvete e paquerar as meninas no trapiche. Tenho saudade de não ter ido à praia da Fazendinha com uma turma de amigos e só voltar quando a madrugada já anunciava um novo dia. Saudade do Bar Caboclo que não frequentei e da gonorreia que não peguei. Gostaria de ter me curado da tosse braba ou erisipela pelas ervas do Mestre Sacaca. Tenho saudade de figuras como Alcy Araújo, Isnard Lima, Estêvão Silva. Saudade do Gino Flex, que conheci e brindei à vida com ele, e agora saudade que me assalta no meio desta escrita comemorativa e tira um pouco do ânimo, pois Lula Jerônimo acabou de partir.

São vinte e três anos de Macapá em mim neste primeiro de setembro. Várias voltas do sol em torno de mim e por dentro da vida. E por falar em vida, termino com um trecho de Carlos Drummond de Andrade, poeta da minha vida: “a vida é bastante / que o tempo é boa medida, / irmãos, vivamos o tempo”.

Obrigado, Macapá!