O Tratado Noturno em uma mesa de bar – Crônica de Lorena Queiroz – @LorenaadvLorena

Crônica de Lorena Queiroz

Como todo ser noturno que ama habitar à meia luz da boêmia, andando pelos caminhos incertos das garrafas verdes e marrons, já me deparei analisando várias vezes este mundo que, a princípio, parece a alguns, fútil e vazio de perspectivas. Ora, se você pensa assim deve ser um daqueles sujeitos estranhamente sóbrios que nunca contou um segredo a um garçom considerado, aquele que te apresenta a conta quando o dia nasce e que sabe mais da tua vida que a tua própria mãe. Agora vou mentir um pouco dizendo que não te julgo, pois todos sempre o fazem, dizer que cada ser sabe da própria felicidade e que os caminhos são próprios de cada um, mas na verdade, que vida incompleta penso eu ser a sua. Concordo com o pensamento Bukowski quando diz que ser são é fácil, mas pra ser bêbado tem que ter talento.

O fato é que a mesa de bar é um divã, um confessionário onde embalado pelo álcool e os petiscos que entupirão nossas artérias e nos trarão um péssimo dia seguinte, despejamos uma parte significativa de nós. Uma porção que nunca daríamos em outro lugar. Talvez a boemia tenha que ser promovida a religião, pois eu nunca contei para um padre o que já disse desavergonhadamente em uma mesa de bar. E se Jesus multiplicou o vinho, eis aí o aval de que eu precisava.

Não, caro leitor, não quero que você se torne um alcoólatra que acabará em alguma sarjeta com a cara lambida por algum vira-lata marrom e amistoso. Mas é como nosso velho safado disse, você precisa ter talento para se meter com os seres noturnos e se você não possui tal traquejo, beba sua água com gás e faça caminhadas quando o sol te agredir menos a pele. Eu gosto da filosofia da mesa de bar, esse tratado em que todos se entendem mesmo quando o peso do álcool torna as coisas desconexas, onde um sujeito só julgará o outro se este tiver bebido menos, assim, certamente estará ele no lugar errado. São momentos de liberdade e de amores que duram a eternidade que os minutos te proporcionam, e isso é bom, pois também é bom esquecer ou simplesmente não lembrar de tudo.

Portanto, seja paciente com os bêbados, seja gentil com a noite, mesmo se você for um ser diurno. Somos feitos de filosofia, histórias e saudade. Nossos devaneios nunca incomodarão ninguém, pois eles se esvaem quando fechamos a conta e o dia. Por fim, siga o conselho do poeta francês Charles Baudelaire: “Para não ser escravos martirizados pelo tempo, embriagai-vos, embriagai-vos, sem cessar! Com vinho, poesia ou virtude, a vossa escolha.”

*Lorena Queiroz é advogada, amante de literatura, devoradora compulsiva de livros e crítica literária oficial deste site, além de prima/irmã amada deste editor.

Visitando Freud – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Caminhei quase por toda a cidade, recém chegado de São Paulo. Agora eu conclui que Dr. Freud não é de muitos amigos.

Afora nós…refiro-me a meia dúzia de psiquiatras …Euler… Juraci Cruz…Max…Alcides Neves, e alguns outros …os de sua própria turma na Faculdade e os de conclusão do Curso de Especialização…poucos se lembram dele.

Engraçado…É na velhice que precisamos mais dos amigos que fizemos pela vida. Por carta, entre as tantas que trocamos…ele rebateu.

Precisamos dos amigos durante a vida toda. A velhice não muda isso…e complementou…sei que você não gosta dessa ideia…mas no fim estamos fadados ao esquecimento…

Engoli em seco.

Um Psiquiatra do Grupo existencialista de Viena, dissera…que permaneceríamos para sempre no Inconsciente Coletivo.

Animei e abasteci a caixinha de Rapé.

…certa vez me escreverá que minha obsessão pelo nome Luiz para todos os meus filhos, vinha calcado na tentativa de me sentir perpetuado para sempre, começando a dinastia dos Luiz’s.

Essas cartas estão lá em casa , em um baú.

Eu estou em Bruxelas na esperança de encontrá-lo…Enquanto atravesso uma rua sonolenta com um dos envelopes na mão onde carrego um mal traçado mapa que ele me enviou …

Recordo que por muitas vezes lhe confessei achar ter exagerado um pouco, em fincar os alicerces de sua teoria…na unidade das queixas de uma viúva, que só imaginava…digo sonhava, ser vitima de perseguições com fins sexuais…e a mim…contado pelo próprio Dr.Freud…havia sessões que ele deixava a viúva deitada no divã contando suas aventuras, e ia ao Saloon dali a poucas quadras onde era habitué cliente…

Fumar um Charuto Havana…e tomar um Absinto…confidenciara em certo trecho que a viúva era descendente Judia…e muito bem de vida, pois se tornará herdeira de uma fábrica de Maquinas de Costura…estas recém criadas, que revolucionaram a indústria de fabricação de roupas.

Ela sonhava…

Dr…recolhia dados para desenvolver sua teoria revolucionaria também…

Sorvia Absinto e mantinha o proprietário do Saloon e seus empregados sobrevivendo e progredindo…todos estavam bem.

Nesse ínterim…um pouco antes que eu chegasse a rua Fauno.

A Senhora Daguirre…pontual como em todas as vezes anteriores, entrou com chave que possuía na Casa Consultório do Dr.Freud…porque o chamará varias vezes, e não obtera resposta.

Provavelmente havia saído, quem sabe devesse ter ido a Charutaria renovar seu estoque…o Dr apreciava demais aqueles charutos fedorentos cujo o cheiro ela detestava.

Ele dizia terem sido fabricados um a um… manualmente…com o mais puro tabaco que pudesse existir, muito longe dali, em uma ilha afrodisíaca…repetia com ênfase…e trazidos via marítima…cuidadosamente…

A Senhora Daguirre fez um gesto quase teatral sinalizando repugnância…aff!

Ela gastava muitas garrafas de um desinfetante Polonês…de nome Flores do Campo para tentar disfarçar o cheiro forte que os charutos fumados deixavam pela casa…uma simpática casa de meia água, onde o Dr. instalará seu Consultório há quase oito anos.

Ela saiu de seus pensamentos…olhou entre as duas folhas da porta, entreabertas…que davam passagem para a sala onde ele atendia.

De lá vinham conversas, risos e exclamações em Francês.

Foi em silêncio…pé ante pé, e olhou.

Era a cliente rica…Sarah.

Estava deitada de olhos fechados no divã…o único da sal, afora a estante repleta de livros e a cadeira de palinha traçada, de duplo apoio para os braços, cadeira na qual o Dr….ficava escutando horas a fio aos seus pacientes, o cinzeiro, a caixa de charutos, e ao lado um acendedor de cigarros de pedra e rebite.

Duas quadras além, eu entrei no Saloon, nome dado ao misto de bar e Charutaria, guiado pelo mapinha…havia acertado o caminho.

Bem na hora que o Dr. Freud meteu a mão no bolso esquerdo do Paletó com a sua mão direita e retirou um reluzente relógio de Algibeira…imaginando que aquela mesma hora a sua cliente que ele deixará narrando sua epopeia de perseguições, empurrões, bulinamentos, barulhentos beijos roubados de si por um desconhecido fedendo a whisky na escuridão do vagão dormitório do trem Budapest-paris…havia chegado.

Acenei levemente…assim que ele me reconheceu…se aproximou para os cumprimentos de praxe.

Pensei comigo…então ele calcula no relógio o fim das sessões…a hora que ela chega a viajando na fantasia a Paris.

Fomos para seu Consultório.

A Senhora Daguirre que por muito tempo cuida da arrumação da casa e limpeza, disse-me algum tempo depois que assim foi que conseguiu identificar que ela desceu na Estação em Paris…

Então deposita, visível a quem de longe olhar…seu grande Chapéu enfeitado com pena azulada…sobre um extendedor de tapetes.

Para sinalizar que vá.

Tomamos vários Conhaques conversamos sobre Dante Alighieri e mais a noite eu deitei no Divã para passar a noite e cheguei antes do fim da semana a Portugal…

Freud me levou em uma pequena Carruagem muito em moda entre os ilustres até o Porto.

Prometi a mim mesmo escrever um texto sobre a minha visita a Bruxelas.

Mas o tempo foi passando…

Vez por outro encontro o recibo de uma passagem de trem Bruxelas-Paris …e me questiono…como isso veio parar aqui?

*19.08.2021 – Osasco (SP) – Brasil.

Atenção, passageiro desta segunda-feira! – Por Ronaldo Rodrigues

Por Ronaldo Rodrigues

Atenção, passageiro desta segunda-feira!

Estamos voando em velocidade de cruzeiro.

O tempo é bom, se consideras, como eu, que chuva é tempo bom.

A visibilidade é boa. Acabei de pingar um colírio de novo horizonte.

Estamos sobrevoando Macapá, que promete se comportar bem este dia.

Estamos sujeitos a turbulências, mas, caso haja alguma emergência, daquelas bem foda mesmo, serás inundado por sentimentos de amizade e esperança.

Este avião – a segunda-feira – promete – e cumpre! – que atravessará o tempo e o espaço e pousará no aeroporto do paraíso. Mas aí tu terás que embarcar no próximo avião – a terça-feira – , onde a viagem já será outra.

Bom voo para nós.

CABA NO BICO (Crônica de Fernando Canto)

Crônica de Fernando Canto

Certa vez, no sítio de um amigo nas terras quilombolas do Curralinho, acompanhei a professora Raquel fazendo um dos mais difíceis pratos da gastronomia nordestina: a buchada de bode. Foram aproximadamente quatro horas de trabalho até a refeição deliciosa esperada por todos os que ali se encontravam, num sábado ensolarado.

Nessa feitura entre o tempo e o desejo angustiado da água na boca a professora assobiava uma antiga modinha do cancioneiro popular. Então veio o comentário infeliz: “ah uma caba nesse bico”. Ela redarguiu com toda a calma: “por que quando a gente assobia sempre dizem isso”? E completou: “eu assobio porque estou feliz”. E continuou seu trabalho, deixando o interlocutor perplexo com a resposta.

Assobiar porque se está num estado de felicidade… Que frase mais bonita, solta em uma época em que é cada vez mais raro encontrar alguém assobiando na rua ou silvando por aí sem incomodar as pessoas. Assobiar não é tão somente soltar um som agudo, exprimir irritação vaiando algo ou alguém, mas a expressão pura da alma ao manifestar a alegria. A mata assobia, o rio assobia, a natureza lança com o vento sibilante sua forma manifesta de nos avisar sobre alguma coisa que vem.

A cultura amazônica deixa na figura fantástica da Matintaperera a inesquecível marca de um assobio que incutia o medo às criancinhas, através de uma melodia simples plenamente associada a essa lenda. Até hoje lembro a melodia que minha mãe assobiava para chamar a Matinta, que era uma velha fumante de cachimbo e que exigia tabaco dos que se arriscavam na floresta densa.

Lendas à parte, o desejo do outro de transformar a alegria do assobio em dor labial, posto que a caba (do Tupi kawa) é um vespídeo temível (um marimbondo de peçonha forte, que tem uma ferroada de fazer inchar a pele de qualquer cristão), é uma reprimida vontade que vem à tona quando a alegria do assobiador se manifesta. É impressionante como as pessoas dificilmente evitam dizer ou pensar a frase infeliz. Não é que eu pense que isso seja apenas uma ação ou um pensamento sádico, mas parece que o propósito – inconsciente ou não – é atrapalhar a felicidade do outro ao desejar uma grande dor causada pela ferroada do inseto. É uma coisa que já está calcificada em nossa memória coletiva, como se quiséssemos também ser felizes e não pudéssemos por pura incompetência ou inveja; como se quiséssemos também a própria dor transferida num processo amargo e masoquista, um castigo desejado pelos nossos mais recônditos pecados cometidos e acumulados pela vida. “Ah uma caba nesse bico” também exprime a uma espécie de rancor contra o inseto que apenas se defende naturalmente se provocado. Já vi casos de moleques que esperavam pessoas passarem perto do ninho de caba para atirarem pedras com baladeiras; li relatos de igrejas e casas que se incendiaram durante a queima de ninhos e conheci vítimas da peçonha da caba tatu. Disseram-me que a dor é terrível. Imaginemos então o ferrão de uma caba de igreja na boca de alguém. E o inchaço seguido. Possivelmente uma pessoa alérgica morreria em algum lugar sem assistência médica como a maioria dos lugares dessa Amazônia imensa.

A simples resposta da professora Raquel ensina a lição do calar-se diante de uma poética expressão de felicidade. Remete, sobretudo, para a necessidade de penetrar a fundo nesse arcabouço de preconceitos que herdamos coletivamente em nosso inconsciente. E nos faz refletir que o assobio é um estado de espírito que poucos alcançam quando seus bicos soltam melodias para encantar o mundo. Experimente assobiar uma música e seja feliz.

O Mistério do Sanduíche do Abreu – Crônica de Fernando Canto

Por Fernando Canto

Certa quarta-feira, depois de uma bela taca do Flamengo no Vasco, o Ronaldo Abreu pediu a sua mulher, Liete, que lhe preparasse um sanduíche, afinal trabalhara o dia inteiro e parte da noite servindo fregueses enjoados e assobiando para as garçonetes no código de mando que ele tem com elas. Passava um pouquinho da meia-noite, e no rescaldo do jogo da TV uns clientes ainda circulavam em direção ao banheiro, próximo ao balcão.

Meia-noite é uma hora tenebrosa para os supersticiosos. Dizem eles que a partir do quarto de hora anterior até o seguinte a ela abre-se um portal no qual se realizam quebrantos e mistérios. Coisas inexplicáveis ocorrem e até a figura do Malévolo pode se fazer presente sem que ninguém veja. Dá até arrepios quando nesse período de tempo um vento bate cortando o ambiente como uma navalha. – É o rabo do Demo, acreditam os mais crédulos. É justo nessa hora que o Satanás circula deixando o sopro frio da noite se misturar ao vento artificial dos ventiladores do bar.

Nesse ambiente imperceptível restavam por dentro do espaço do balcão alguns fregueses contumazes que como sempre tomavam sua “loura” sentados em altos bancos de madeira. E enquanto o proprietário esperava o sanduíche as garçonetes vinham varrendo o salão fazendo aquele barulho peculiar de centenas de fichas de cerveja se arrastando pelo piso cerâmico. Foi então que um freguês também pediu um sanduíche.

Dona Liete trouxe os dois. Quentinhos, quentinhos. O freguês pagou o dele e saiu contente, pois era flamenguista. Ronaldo Abreu deixou o refrigerante e o sanduíche de filé cheiroso feito com carinho só para ele num pires em cima do freezer que separa a área de circulação da área restrita. Mas ocorreu que na hora de comer foi chamado para atender outro cliente que queria pagar sua conta. Demorou apenas uns vinte segundos e voltou.

Enquanto suas pupilas gustativas produziam saliva em excesso, tanta era a vontade de dar uma mordida no dito cujo, ele olhou na direção do freezer e viu que o sanduíche “no capricho” havia desaparecido.

Na área só estavam o sisudo senhor Roberto; o Marra, que é famélico convicto; o enfastiado Ivan Macaco, que só bebe; o cadavérico Gabriel, e o Tatá, que a tudo observava no seu canto do balcão, mas com o olhar já turvo, falando sozinho, enrolando as orelhas e cumprimentando um cara, passando o cartão na mão dele.

Depois que viu que aquilo não era brincadeira de esconder, Ronaldo ficou invocado com o sumiço do seu jantar, feito com tanto gosto pela bem-amada companheira. Deu o alarme, mas ninguém se acusou. Foi então que começou a rolar suspeita. “Não, não fui eu. Onde já se viu?” “Na minha casa tem comida, tá? Não preciso de um sanduichezinho fuleira pra me alimentar”. “Mas tá, não? Eu que gosto de comer com pão!”. “Teu xiri que fui eu, otário!” “Eu acho que foi o fulano”, dizia o Tatá, se esgoelando de tanto rir da parada.

Quatro horas depois a discussão continuava entre goles de cerveja, poeira levantada da varredura e o duro silêncio da Avenida FAB.

Os suspeitos mudavam de assunto, mas vez por outra ele retornava. Um olhava para os olhos do outro e todos hesitavam em sair do lugar. Se alguém não aguentasse e fosse ao banheiro já virava o principal acusado. Ir para casa, então, nem pensar.

O impasse continuou até o Ronaldo pedir pira paz e dizer que ia fechar o bar, pois já estava muito tarde. Aí todos pediram para ele anotar a despesa na conta e saíram juntos, enquanto os primeiros raios do sol apareciam no oriente. Até o seu Roberto, o mais sério de todos os suspeitos, foi para casa meio cambaleante. Mas ao dobrar a esquina da Tiradentes soltou uma risada seguida de um arroto tão grande que ecoou em toda a FAB. Até hoje a Dona Liete suspeita dele nesse roubo que ainda é um mistério a ser desvendado pelo investigador Viana.

Às vezes, é preciso “botar quente” – Crônica de Elton Tavares (Do livro “Papos de Rocha e outras crônicas no meio do mundo”)

Ilustração de Ronaldo Rony

Se tinha uma coisa que eu adorava quando bebia no Bar da Euda, era escutar as histórias do meu amigo Fernando Bedran. Fernandinho é um sábio malandro, no bom sentido, claro.

Por conta de seus “causos”, devaneios e pontos de vista paid’éguas, meu irmão, Emerson Tavares, diz que o Bedran “é melhor que tira-gosto de charque para tomar umas cervas”.

Durante uma de nossas conversas regadas a cerveja, Fernandinho, que é contra qualquer tipo de violência, contou que, certa vez, precisou usar a força. Segundo ele, em uma fase de nossas vidas é preciso “botar quente”.

Bedran contou-me que tinha vinte e poucos anos, na década de 80, trabalhava no Ver-o-Peso, velho centro comercial de Belém (PA), e estudava à noite. Por causa de suas atribuições profissionais, faltava muito às aulas.

Por conta disso, um professor começou a perseguir o nobre amigo, mesmo após explicar a situação ao educador, que se manteve irredutível. Para completar, o tal docente da escola que Bedran estudava o ridicularizava na frente dos colegas de classe. Comportamento que, segundo Fernandinho, era comum com todos os alunos, mas acentuado em relação ao Fernando. “O cara era um “pentelho escrotal arruinado, um verdadeiro cri-cri”, desabafou Fernandinho.

Passados alguns meses naquela patinhagem, Bedran se aporrinhou com a “maquinagem pesônica” do professor em relação a ele e foi indagar o educador, que logo lhe disse: “quer saber, você não assistirá mais minhas aulas. Fora daqui!”.

Fernando disse que tentou e tentou, sem sucesso, resolver a situação. A reprovação era certa, já que ele não frequentava mais as aulas do nojento professor. Foi quando ele foi meditar no boteco, depois de um dia de trabalho, e decidiu cancelar sua matrícula.

Ao adentrar na escola, rumo à secretaria, Fernando Bedran passou pela sua turma e lá estava o dito cujo dando aula. Ao olhar para o professor, o debochado abriu um cínico sorriso, com um estranho ar de vitória e superioridade.

Foi quando Fernando Bedran explodiu e disse:

Grande corno filho da puta. Mete a cara que eu vou te dá-lhe é porrada!”.

Aí ele fez a merda e, ao me contar, disse: “Elton, dei uma mina de porrada no filho da puta. E tu pensas que a galera apartou? Porra nenhuma! O pessoal vibrou com a surra que dei no frescão”, vibrou Fernandinho (e eu também!).

Resultado: Bedran foi expulso da escola, mas com a alma lavada. É, como ele mesmo disse no início da história: “é preciso ‘botar’ quente”.

Boto fé!

Essa foi só uma das inúmeras aventuras do Fernandinho, “figuraça” que alegra nossas noites quentes, assim como as cervejas geladas.

Vida longa ao espirituoso Bedran, dono de um dos melhores papos que conheço, principalmente nos botecos da cidade.

*Do livro “Papos de Rocha e outras crônicas no meio do mundo”, de minha autoria, lançado em novembro de 2021.

MACAPÁ: 200 MIL AÇOITES – Por Fernando Canto #Macapa265Anos

Foto: Juvenal Canto

Por Fernando Canto

Neste 04 de fevereiro de 2022 Macapá faz 265 anos. Aproximadamente 200 mil marés do Amazonas lhe fustigaram a orla desde a fundação até hoje, contando parte dos anos bissextos.

Por obra e graça de Ianejar este lugar é o produto da eterna luta entre o rio e a terra, ambos iluminados pela luz do equador no meio do planeta em movimento, onde a lua rebrilha o surgimento de mistérios e suscita mitos e lendas. E aqui mesmo a Mairi construída pelos homens e mulheres resiste às chibatadas d’água.

Macapá é uma terna fonte vinda do oco da terra sob a energia radiante dos solstícios e equinócios e da oscilação do efeito coriolis. Aqui as espirais de água e vento giram em sentidos contrários, sempre conspirando em diálogos contínuos.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca

Aqui somos seres a-sombrados pelo sol iridescente, cujos raios incidem sobre nossas cabeças no pino dos equinócios. Daí vem a luz que necessitamos a cada seis meses para que renovemos nosso amor por esta terra, convictos que somos de sua correspondência manifestada nas ondas das marés lançantes, ainda que seus governantes costumeiramente lhe neguem o amor que ela tanto necessita para se tornar mais bela e aconchegante.

Quisera que as 200 mil marés desse período não só lhe açoitassem a terra, mas que fossem adentro de seu corpo e penetrassem o coração e a alma para que seus habitantes, num ímpeto de emoção, bebessem sua água represada e transformada em nascente de amor e gratidão para sempre.

Foto: Juvenal Canto

Quisera que os 200 mil açoites servissem também para que não esquecêssemos da cruel colonização e da pele sofredora dos escravizados que deram o sangue e a vida para que ela e suas construções permanecessem no tempo e se tornasse um ícone da Amazônia.

Depois disso ela será, então, a bilha que saciará nossa sede à sombra de uma fortaleza, protegida por um santo e lavada pelas águas do rio mais belo, sempre abraçada e beijada por todos os que lhe querem bem.

Foto: Renato Ferreira

BILHA QUE ME SACIA A SEDE

Não morro mais de banzo
Nem sofro nos silêncios.
Nem choro por espiralados ventos de memórias.
Sou como fui sempre, parte da tua angústia, Macapá
E peça-carne do teu sofrimento.
Vínculo de ferro/elo de candura
Âncora/ferrugem/tempo oxidado
Limo esverdeado, se me queres
Pronúncia silabada que sepulto
Em teu armazém de água:
– Bilha viva e intransportável
Que me sacia a sede
À revelia do baque do cipó timbó
Que me cicuta artérias
Que nada sei, eu sei.

Apenas venho inaugurar silêncios
Romper murmúrios e espúrios sons
E desnudar-me diante de ti
Antes de fundir-me em ti em espírito.

Sobre fofoqueiros – Papo certeiro de @rubalieiro

Creio que o (a) fofoqueiro(a), além de infeliz, é medíocre e frustrado(a). Necessita falar mal do outro porque nada tem de bom para demonstrar ou falar de si. É, no fundo, um(a) invejoso(a) também, porque a vida do outro lhe parece melhor que a própria – e ainda desvia a atenção das suas faltas pessoais. O (a) fofoqueiro(a), quando no ofício de mal falar, diz mais de si que do outro. Tenho dó!

Digo isso porque já fui vítima de invencionices por gente que, no fundo, queria vivenciar o que vivo e ter das pessoas e do mundo aquilo que tenho. Ao final, o futrico só afundou a pessoa na lama da própria miséria e do mal-querer dos demais. Enfim, “sifudeu”!

É como diz a minha mãe: “galho podre cai sozinho”.

Rúbia Balieiro

O amor só é bom se doer. Será? – Crônica de Lorena Queiroz – @LorenaadvLorena

Crônica de Lorena Queiroz

Ontem a noite estava arrumando umas coisas em casa. Abri uma cerveja e deixei o Deezer tocar no aleatório. Ao fim de uma gaveta arrumada, tocou a música “Nem morta”, canção de Sulivan e Massadas, cantada por nossa amada Alcione. Nossa marrom embalou muitos cotovelos que se arrastaram no asfalto ao som de sua bela voz. Entre um gole e outro, comecei a prestar atenção à letra e me deparo com um insight que ainda não havia atentado dentro do tema que a música apresenta. Vamos lá;

Eu só fico em teus braços
Porque não tenho forças
Pra tentar ir a luta
Eu só sigo os teus passos
Pois não sei te deixar
E esse ideia me assusta
Eu só faço o que mandas
Pelo amor que é cego
Que me castra e domina
Eu só digo o que dizes
Foi assim que aprendi
A ser tua menina
Pra você falo tudo
No fim de cada noite
Te exponho o meu dia
Mas que tola ironia
Pois você fica mudo
Nesse mundo só teu
Cheio de fantasias
Eu só deito contigo
Porque quando me abraças
Nada disso me importa
Coração abre a porta
Sempre que eu me pergunto
Quando vou te deixar
Me respondo
Nem morta!

Pensei; puta que pariu! Mas que porra de relacionamento abusivo é esse, Alcione? Dois tapas na cara seguido de um ‘’ para de ser doida’! Percebi na música que, a mulher em questão sofre de uma dependência e apego emocional fodido. Não tem forças para sair de uma relação que ela sabe ser nociva à ela. ‘’ Eu só faço o que mandas, pelo amor que é cego, que me castra e domina. Eu só digo o que dizes, foi assim que aprendi’’. Trata-se de alguém que perdeu, inclusive, a identidade para caber no mundo do outro, se encaixar na expectativa alheia. Então comecei a pensar na raiz de tudo isso. Essa pobre alma nunca parou para pensar; mas pera aí, o que me faz gostar dessa pessoa? O que essa pessoa faz para que eu a ame a ponto de estar em uma situação que me castra e domina? Será o famoso amor de pica? Quantos de nós estamos ou estivemos na mesma situação por sermos a vida inteira ensinados que amor é sofrimento?

Pois bem, vamos voltar lá na literatura, Romeu e Julieta de Shakespeare. O jovem casal que vinham de famílias rivais e se apaixonam. Os dois fodidos morrem em nome desse amor. Mas, lembre-se, leitor, há quanto tempo os dois se conheciam? Conseguiu pegar meu gancho? É justamente isso, a dificuldade, a impossibilidade do relacionamento que seduziu tanto os dois e que, seduz as pessoas todos os dias, pois o ser humano aprendeu e é ensinado o tempo todo que tudo tem que ser muito sofrido para ser gostoso. O prazer no sofrimento. Se você for analisar as tramas das novelas que crescemos assistindo, é a mesma coisa, mocinho e mocinha que tem sua trajetória amorosa cheia de percalços e lutam para no fim ficarem juntos.  será que se Romeu e Julieta passassem mais tempo juntos ou se, seus pais nem ligassem de com quem eles se agarram, esse amor seria tão arrebatador?

Talvez não passasse de um fim de semana que terminaria com um; ‘’ desculpa, tava doidão”. Nos meus atendimentos com tarot, percebi que as pessoas tem esse mesmo padrão, com algumas exceções, claro. Não estou dizendo que você deve recuar na primeira dificuldade, pois acredito que as diferenças devem sim serem trabalhadas em todos os tipos de relações, mas acredito também que os motivos para se amar alguém devem ser claros pra gente.

Ah, mas o amor é irracional, a gente apenas ama! Não é bem assim, meus caros! Na minha opinião, e você compra se quiser, o amor é algo que tem que te fazer bem, o resto é apego, necessidade. Mas, ouça, não culpo você por discordar de mim, afinal, como disse nossa poetinha; ‘’ o amor só é bom se doer’’. E ele dói sim, vai doer várias vezes, pois temos carmas, diferenças que se chocam com a convivência. Só não acho que precisa doer o tempo todo, essa porra tem que virar Darma em algum momento. Pois se não, nasce aí um relacionamento abusivo. O que me assusta em tudo isso é a romantização da cagada. Mas isso não é culpa sua ou minha, só nos foi ensinado a vida inteira e é difícil quebrar alguns padrões. Ah, mas também leve em conta que eu posso estar errada, ou não. Talvez eu seja uma baita de uma preguiçosa emocional ou só uma vadia tóxica mesmo, ou não.

Eu gosto de alguns sofredores, afinal, sem eles nunca teríamos boas músicas, boa literatura e bares cheios. Mas, acredite, não confunda a beleza do amor com a necessidade do sofrimento, essa só produz alguma sofrência sertaneja. Enfim, ame, se jogue. Faça o que quiser. Quem sou eu para me meter na sua vida.
       
*Lorena Queiroz é advogada, amante de literatura, devoradora compulsiva de livros e crítica literária oficial deste site, além disso é escritora, contista e cronista. E, ainda, mãe de duas meninas lindas, prima/irmã amada deste editor.

Corrida Maluca: um exemplo PARA A VIDA – Crônica de Marcelo Guido

Crônica de Marcelo Guido

Clássicos nunca morrem, eu costumo dizer. Por muito tempo nos acostumamos a acreditar que o passado passou e não pode ser relembrado. Discordo!

Relembrando fatos da infância, divago por coisas que marcaram para sempre a minha existência. Uma delas, com certeza, são os quadrinhos, dos quais sou fã até hoje, e os desenhos animados (disco de rock, por serem especiais demais, nunca me atrevi a deixá-los de lado).

Tive muitos heróis cujo tempo, covardemente, fez questão de colocar em segundo plano em muitas fases de minha vida. Como pude esquecer, por exemplo, dos GALAXY RANGERS?, CENTURIONS, ZONO RAIDERS?

Mas antes vieram os básicos, minhas lembranças me levam aos primórdios aonde o que interessava mesmo era a diversão. Joseph Barbera e William Hanna eram especialistas nisso.

Os caras se conheceram em 1947 e tomaram um cano do Walt Disney, que prometeu contratá-los e nunca apareceu. Talvez por isso o Mickey seja tão chato.

Dessas duas mentes privilegiadas e brilhantes saíram “Tom & Jerry”, “Zé Colmeia e Catatau”, Fred Flintstone e Barney Ribble, dentre outros.

Em 1968, os caras resolveram se basear em um filme e lançar um desenho com 11 personagens principais, isso sim merece uma menção honrosa; imagina a dificuldade para que nenhum personagem ficasse em segundo plano. E assim nasceu a “Corrida Maluca”.

Inspirado no filme “A Corrida do Século” (1965), a “Corrida Maluca” era uma espécie de campeonato de carros que tinham os mais malucos participantes possíveis.

As corridas eram disputadas por esses caras no melhor estilo “vale-tudo”, e tinha de tudo… Imagine uma corrida com um carro que é um Avião pilotado pelo Barão Vermelho (carro nº 4) no mesmo Grid de largada de híbrido de tanque com carro (carro nº6), comandado por um cara chamado Meekley e com Sargento chamado Bombarda no Canhão? Ou com um cara com um carro de F1 que atente pela alcunha de Peter Perfeito (carro nº 9) (tem uma banda legal com esse nome) – era a formalização do herói perfeito, junto do Carro Mágico (nº 3) do Prof. Aéreo (um cara com feições de cientista maluco, mas que era do bem).

Ainda tinha o “Cupê Mal-assombrado” (nº 2) guiado por Medonho e Medinho, que ainda tinha uma torre (hummm) de onde saía um dragão, uma serpente, etc.; tinha o “Carrinho pra frente” (nº5) da Penélope Charmosa, o “Carro à prova de balas” (nº7), que muitos chamam de “Chicabum” e era comandado pela Quadrilha de Morte, “Serra Móvel” (nº 10) do Rufus o Lenhador, e do Dentes de Serra, a “Carroça a Vapor” (nº7) do Tio Tomás e do urso Chorão.

Todos os carros tinham as placas iniciadas com um “HN” em alusão aos criadores.

O meu preferido era o “Carro de Pedra” (nº 1) dos Irmãos Rocha (nome também de outra boa banda), que, mais tarde, deram origem ao “Capitão Caverna”. Sem contar, é claro, com a “Máquina do Mal” (nº 00) do Dick Vigarista e seu escudeiro Muttley, a Máquina do Mal, aparentemente, era o carro mais rápido e tecnológico dentre os competidores.

Apesar de tecnologicamente superior, o carro nº 00 nunca conseguiu vencer uma corrida. Muito mais pelo caráter duvidoso do seu piloto, que perdia muitas posições com planos mirabolantes e armadilhas para prejudicar os outros competidores.

A Revista “Mundo Estranho”, de julho de 2012, atribui o seguinte ranking:

• 1º Carro de Pedra/Irmãos Rocha – 81 pontos
• 2º Carro-a-prova-de-balas/Quadrilha de Morte – 74 pontos
• 3º Cupê Mal-Assombrado/Irmãos Pavor – 69 pontos
• 4º Carroça á vapor/Tio Tomás e Chorão – 68 pontos
• 5º Carro Tronco/Rufus Lenhador e Dentes-de-serra – 67 pontos
• 6º Carro de Mil e Uma Utilidades/Professor Aérao – 65 pontos
• 7º Carrinho pra Frente/Penélope Charmosa – 64 pontos
• 8º Lata Voadora/Barão Vermelho – 63 pontos
• 9º Carrão Aerodinâmico/Peter Perfeito – 60 pontos
• 10º Carro-tanque/Sargento Bombarda e Soldado Meekley – 39 pontos
• 11º Máquina do Mal/Dick Vigarista e Muttley – 00 pontos.

Essa é a moral da história: por mais que se tenha todo um aparato, você jamais conseguirá vencer se tentar trapacear. Assim é a vida…

Que os infindáveis Dicks Vigaristas continuem se dando mal. Porque, assim como na Corrida Maluca, na vida o bem sempre vence o mal.

*Marcelo Guido é jornalista, pai do Bento e da Lanna, além de maridão da Bia

…Cenário – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Luzes sombreadas. E pôr mais sombras quase aladas. Barulho de mar. Cheiro forte e azedo. Estou lendo a terceira página do texto.

O Cenário.

O Cenário é um salão cercado do barulho de mar. De poucas janelas. Apenas uma porta que range quando sopra a brisa. É uma brisa que desesperadamente quer sair. Agora o texto.

Um anjo o primeiro a chegar. Está molhado. Despe o sobretudo. Tira o chapéu. Senta-se entre duas mulheres. A da direita faz um jogo de sombras com as mãos, aproveitando a luz do lampião dependurado no fim da sala. Criando figuras de aves, pequenos lagartos, marrons de olhos verdes. A mulher sentada à sua esquerda puxa os cílios e deposita-os sobre um pouco de umidade saída de uma garrafa de Vodka gelada. Com eles constrói uma bússola cujo norte magnético é a porta por onde entram os anjos.

Eu estou de pé sob um abajur lilás repleto do desenho de peixinhos que gira aleatoriamente sem sair do lugar. Mas o cheiro de mar e o pitiú dos peixes inundam o salão. Alguém falou em dançar. Pedem que eu cante. Tímida e achando-me mal vestida dentro de um vestido desbotado, e um par de sandálias surradas, e sujas de terra, que mal esconde as unhas roídas por mim e pelo tempo. Hesito!

Agora já são oito os anjos. Começam a bater palmas num ritmo que me lembra os cânticos das mulheres do Marabaixo de Macapá, do Sirimbo do Pará, do Batuque das ilhas Bailique e Cametá… Coisas de garras, dentes e presas sedentas de sangue e sal. Não parecem anjos, parecem Demos. Eu coberta de trapos, fedida de suor, suja de óleo, de frituras e cheia do cheiro de sabão e detergentes, sinto-me desejada e feliz.

Eu era um mapa de mãos e beijos, dos bêbados daquele cais até aquele momento. Mas ali não estavam eles com seus delírios e vômitos, e espasmos de gozos incompletos. Estavam os anjos sentados em círculos nas cadeiras amareladas, batendo as mãos e olhando-me como os índios olham um totem sagrado. Não em busca de fé. Em busca do pecado.

Dancei em círculos, em retas e oblíquas. Redescobri as paralelas já traçadas em Abril de 1968. Paralelas entrelaçadas sob o impacto dos estudantes em Paris, e a falsa moral que provocou a detenção por maus costumes de um marujo que brevemente me disse amar, e que depois se deixou matar de fome e sede. Não muito longe daqui, no fim da rua Treze de Maio, atrás do Mercado Ver o Peso, outro amigo que queria que aqui estivesse passou a vida, atormentado, de dia pelo dia, à noite pelos ingleses com beijos e Oks. U’a manhã estrangulou-se não sem antes se depilar toda. Deixou de herança o par de sandálias que eu uso agora.

Um pouco depois, eu anoiteci várias vezes, ainda sob o impacto de sua morte, sob as mãos finas de unhas bem tratadas dos ingleses quando vieram me ver ali, pela primeira vez. Deflorei os ouvidos. Depois deflorei o umbigo. Por último deflorei o passado, e o presente, e o futuro. Agora com cinquenta e oito anos. Já não tenho nada a oferecer. A boca lívida. Os olhos esmaecidos e turvos. A pele eternamente cheia de um cheiro de peixe podre e as tatuagens do tempo criando manchas e sinais.

Por isso dancei e danço. Dancei até que um por um, os anjos, após abusando de mim, repetidas vezes, foram saindo. O que garimparam em mim com suas línguas mornas e seus cheiros de jasmins. Não sei. O abajur deixou de rodar em torno de si mesmo, matando os peixes afogados. As duas mulheres deixaram de brincar com suas sombras na parede e com seus cílios sobre a mesa. Beijaram-se e saíram, uma arqueada, puxando da perna, a outra anã, equilibrando-se sobre um grande salto alto. Caminharam então, cada uma para o seu lado.

Eu parei de dançar e fui até a parede, de onde arranquei a folhinha do calendário e com ela fiz um aviãozinho que atirei a esmo. Chegava um novo dia. E com ele a solidão. Estava novamente sozinha. Os cotovelos sobre a mesa. Com ela fiz um aviãozinho e atirei ao chão sobre os meus pés. Meus pés estremeceram de frio dentro da poça de água criada pela garrafa de Vodka agora também vazia como eu. Saí dali e pus fogo no salão. Ia matar-me queimada, mas lembrei dos anjos. Corri gritando por socorro desesperada, nua e descalça em direção ao cais.

CONCLUSÃO DE ROTEIRO: Estabelecer semelhanças entre o sal e o sol. Iluminar a lua e adoçar o amargo. Maquiar bem a anã e a mulher alta, arqueada. Passar a ferro as asas dos anjos (os da primeira fila). Deixar como está os demais. Obs.: Datilografar em espaço dois. Não. Espaço um. Vamos valorizar no texto a solidão. E por fim. Não pôr THE END. Pôr FIM.

Há 38 anos, a Legião Urbana lançava “Legião Urbana”– da série “Discos que formaram meu caráter” (por Marcelo Guido)

Por Marcelo Guido

Legião Urbana, o primeiro álbum da banda de mesmo nome, foi lançado em 2 de janeiro de 1985. Um disco politizado, rebelde e ao mesmo tempo romântico. Um marco na história do Rock Brasileiro.

Parece que foi ontem, mas já tem trinta e oito anos. 38 anos que a gente começou. Digo “a gente” por que eu e muitas pessoas nos incluímos nessa Legião Urbana e foi a partir desta bolacha que nossas vidas foram tocadas. Com influência mais punk, o álbum trouxe músicas que marcaram a carreira da banda.

“SERÁ”, que a “DANÇA” que querem que a gente participe é essa mesma?, Ou estamos enganados?

Seria apenas “O REGGAE”, que colocaram em uma batida lenta, para que um conformismo tomasse conta de nós. Mas temos um certo “BAADER-MEINHOF BLUES”, para lembrar que a violência é tão fascinante, apesar de nossa vida ser tão normal.

Ai, uma menina que me ensinou quase tudo que eu sei diz que eu tenho medo, mas eu lembro a ela que “AINDA É CEDO”, para me considerar um desnorteado, e estamos os dois “ PERDIDOS NO ESPAÇO”.

Eu a lembro que somos “SOLDADOS”, que pedimos esmolas, somos as sobras da “GERAÇÃO COCA COLA”, por que comemos lixo comercial e industrial e mesmo sem religião ainda somos o futuro da nação. Lembro a ela que basta fazer um dever de casa para crianças derrubarem reis.

Somos o combustível de tudo, somos o “PETRÓLEO DO FUTURO”. E realmente “POR ENQUANTO”, vendemos o’que é certo pra pessoa errada, espero crescer e aparecer.

Esse é o “TEOREMA” de nossas vidas, ou será só imaginação.

“Urbana Legio omnia vincit…” – (“Legião Urbana a tudo vence”).

*Marcelo Guido é punk, jornalista, pai da Lanna e do Bento, maridão da Bia. “…Não é me dominando assim, que você vai me entender.”

BALANÇO ANUAL – Crônica de Lorena Queiroz – @LorenaadvLorena

Crônica de Lorena Queiroz

Ao fim de cada ano, geralmente na última semana, faço um balanço dos acontecimentos, de todas as efemérides vividas e passadas ao longo desses 365 dias. Este ano aprendi a aprender. Compreendi que é preciso analisar e aprender com cada sim e não dado pela vida. O resultado de meu aprendizado é que somos eternos aprendizes de nós mesmos, aqueles de poucas certezas e muitas dúvidas. A grande sorte é que uma de minhas poucas certezas é de que não é difícil viver, mas claro, se você tiver algumas armas em seu arsenal; coração leve, coragem e malandragem. Ah, a malandragem, essa característica tão incompreendida pelos que ainda não entenderam as necessidades da vida. A malandragem nos possibilita a arcar com as outras duas armas sem tomar no cu.

Certa vez assisti um vídeo que um velho malandro diz; ‘’ Malandro não é o vagabundo, o periculoso. Malandro é um artista”. E segundo Fernando Candido, o malandro é o indivíduo que vive fora das normas estabelecidas pela sociedade, situando-se entre a ordem e a desordem. E não é assim que todos nós vivemos? Entre a ordem e a desordem de tudo que não conseguimos compreender. Malandragem te faz repousar em águas tranquilas, tal qual o salmo 23. O tal Rei Davi sabia das coisas, ele nunca passaria pelo vale da sombra da morte sem coragem, coração leve e malandragem. Flexibilidade é tudo!

Compreendi ainda que o agradecimento precisa ser um costume diário. Que cada coisa que acontece, seja bom ou ruim, acontece pra que a gente se prepare para os próximos dias que estão por vir. É necessário entender que cada ser humano só entrega o que tem, e que, se alguém não te entrega aquilo que você espera ou acha que merece, não quer dizer que não entregou tudo o que podia. A liberdade de errar e acertar é uma dadiva divina e encontrar a felicidade nos erros fará parte do processo. Tudo que vem e que vai, te ensina alguma coisa e sempre agradeça pelo que veio e pelo o que se foi. Eu agradeço a tudo e a todos que se foram, pois abriram espaço para que semelhantes chegassem. Agradeço cada lágrima e cada risada que me brindaram esse ano. Pois sem elas eu não escutaria Gal cantando Vaca profana com o mesmo significado. Tampouco entenderia o que Belchior tinha razão quando dizia que a noite fria lhe ensinou a amar mais o seu dia, pois na dor se compreende o poder da alegria e que, sim, todos temos coisas novas pra dizer.

Caro leitor, espero que este ano você tenha vivido, mudado de ideia e de ideais inúmeras vezes. Espero que tenha chorado, caído e levantado. Intenciono que tenha acertado e errado por várias e incansáveis vezes. Pois disso é feita a boa vida. Torço para que compreendas que a única coisa que não muda é a eterna mudança, como diz Gilberto Gil em Tempo rei; Tempo rei, transformai as velhas formas do viver. Ensinai-me, ó pai, o que eu ainda não sei”. E por fim, se eu puder lhe dar um conselho, viva com leveza, coragem e malandragem. Divida seu amor e seu pão até com o cão.

*Lorena Queiroz é advogada, amante de literatura, devoradora compulsiva de livros e crítica literária oficial deste site, além disso é escritora, contista e cronista. E, ainda, mãe de duas meninas lindas, prima/irmã amada deste editor.

Balanço de fim de ano – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ilustração de Ronaldo Rony

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Este senhor senta-se à mesa do café exatamente às 7h18 para um frugal desjejum. Sai às 7h20 e vai conferindo as pedras pretas e brancas do calçamento. Sua rua termina na vista pro mar, um pedaço de muro e uma trilha de terra batida que vai dar na praia. Seus pés recebem a areia com a mesma felicidade fofa com que a areia recebe seus pés. Este senhor sou eu mesmo e me reconheço nele sempre que abaixa a cabeça para fazer espelho da água e olhar seu reflexo.

Não me reconheço nele quando passa a mão na cabeça de um cão que caminha tranquilo. Não tenho amizade com cachorros, gatos, cangurus… Admiro as hienas e os elefantes, mas apenas nos documentários que passam no canal da minha madrugada. Hienas e elefantes vivem em sociedades matriarcais e isso é bom. Quando/se eu voltar, na pele de outra pessoa, tentarei ter mais afeição por animais. E seu eu vier na forma de um animal, que seja uma jubarte com sua eterna cauda mergulhando no mar.

Este senhor está se despedindo da vida (ou se despindo da vida?) ou vice-versa. Mas isso não se dará hoje ou mesmo este ano. Talvez não ocorra nenhuma ruptura nos próximos 30 anos. Quem sabe ele vai festejar sua trajetória pra muito além do tempo de seu tempo? Quem sabe expressará sua frustração por não ter feito aquela viagem maluca para os confins do Himalaia, por não ter tido a ousadia suficiente para invadir a igreja e interromper aquela cerimônia em que a mulher que amava se casava com outro homem?

Neste senhor, que o corvo, empoleirado no ombro do espantalho, disse que sou eu, está minha determinação de permanecer vivo pelo tempo que me for dado por quem maneja a ampulheta. O mesmo tempo que foi dado ao portão do quintal, à rede que ainda balança na varanda, ao peixe que comi ontem e me mantém vivo hoje. E a essa árvore, que sou eu, orvalhada nos galhos e fincada na raiz desse porto de chegada/saída que se chama… Como se chama?! Ah, sim! Diz que é a vida…